segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

AVISO

NOTA:
Por questões de trabalhos urgente precisei interromper o relato de viagem que havia iniciado. Como recebi e-mails incentivando-me a continuidade senti-me convocada a esclarecer que não esqueci, apenas adiei este projeto de intensa amizade com os (as) mulçumanas (os). Tenho, também, um antigo caso de amor com Almodóvar, esta semana recebi as cópias dos filmes iniciais da sua caminhada, avoluma-se na estante as anotações que já esbocei mas que não me atrevo ainda a divulgar. Está em curso uma aproximação com Grupos de Estudos que permite-me uma incursão mais aprofundada e merecida as obras cinematográficas que tive o imenso prazer de redescobrir e apreciar. Como avisei, continuo atenta aos Estudos Culturais. Logo que possa retorno aos projetos que se articulam e me alimentam de esperança num tempo de dura barbárie.
Seguindo e cantando, até logo mais.

domingo, 28 de novembro de 2010

5ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul

Salvador
De 03 a 09 de dezembro


Em 2010, a Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul completa cinco anos. Criada em 2006 para celebrar o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos a Mostra vem se firmando como um espaço de reflexão, inspiração e promoção do respeito à dignidade intrínseca da pessoa humana.
O Brasil tem buscado fortalecer a educação e a cultura em Direitos Humanos, visando à formação de uma nova mentalidade para o exercício da solidariedade, do respeito às diversidades e da tolerância. Como expressão artística, o cinema possui uma linguagem própria, capaz de tocar pessoas, despertar sentimentos, sensibilizar olhares e construir identidades comuns. Desta forma, a arte permite conhecer e interagir.
Inicialmente exibida em quatro cidades, a Mostra veio crescendo a cada ano. Esta quinta edição estará presente em 20 capitais brasileiras, percorrendo as cinco regiões do Brasil. No ano passado, registrou um público superior a 20 mil pessoas, em 16 cidades. A estimativa para este ano é que este número seja duplicado, pelo aumento no número de cidades participantes e pelo reconhecimento que o evento já conquistou.
A 5ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul é uma realização da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com produção da Cinemateca Brasileira, patrocínio da Petrobras e apoio do SESC-SP, da TV Brasil e do Ministério das Relações Exteriores. Com todas as sessões gratuitas, sempre em salas acessíveis para pessoas com deficiência, a Mostra é um convite ao olhar e à sensibilidade cinematográficos, que traduzem temas atuais de Direitos Humanos e despertam a reflexão e a construção de identidades na diversidade.
Prevista no eixo Educação e Cultura em Direitos Humanos do Programa Nacional de Direitos Humanos/PNDH-3, que foi apresentado pelo presidente Lula em 2009, a realização da Mostra possibilita que o cinema seja reconhecido como importante instrumento para o debate, a promoção e o respeito aos direitos fundamentais. Em sua quinta edição, a Mostra já pode ser vista como um marco consolidado no calendário anual dos Direitos Humanos em nosso País. Ela está destinada a prosseguir e se ampliar sempre mais nos próximos anos.
Participe você também desta edição comemorativa!


MAIS INFORMAÇÕES EM:
http://www.cinedireitoshumanos.org.br/2010/salvador.

Programação
03/12 - SEXTA-FEIRA


19h – Sessão de Abertura
VIDAS DESLOCADAS - João Marcelo Gomes (Brasil, 13 min, 2009, doc)
PERDÃO, MISTER FIEL - Jorge Oliveira (Brasil, 95 min, 2009, doc)
Classificação indicativa: 14 anos


04/12 - SÁBADO
13h
A VERDADE SOTERRADA - Miguel Vassy (Uruguai/ Brasil, 56 min, 2009, doc)
ROSITA NÃO SE DESLOCA - Alessandro Acito, Leonardo Valderrama (Colômbia/ Itália, 52 min, 2009, doc)
Classificação indicativa: 12 anos

15h
GROELÂNDIA - Rafael Figueiredo (Brasil, 17 min, 2009, fic)
MUNDO ALAS - León Gieco, Fernando Molnar, Sebastián Schindel (Argentina, 89 min, 2009, doc)
Classificação indicativa: 12 anos

17h
A BATALHA DO CHILE II – O GOLPE DE ESTADO - Patricio Guzmán (Chile/ Cuba/ Venezuela/ França, 90 min, 1975, doc)
Classificação indicativa: 12 anos

19h
ABUTRES - Pablo Trapero (Argentina/ Chile/ França/ Coréia do Sul, 107 min, 2010, fic)
Classificação indicativa: 16 anos


05/12 – DOMINGO
13h – Audiodescrição
AVÓS - Michael Wahrmann (Brasil, 12 min, 2009, fic)
ALOHA - Paula Luana Maia, Nildo Ferreira (Brasil, 15 min, 2010, doc)
CARRETO - Marília Hughes, Claudio Marques (Brasil, 12 min, 2009, fic)
EU NÃO QUERO VOLTAR SOZINHO - Daniel Ribeiro (Brasil, 17 min, 2010, fic)
* Sessão com audiodescrição para público com deficiência visual.
Classificação indicativa: 12 anos

15h
HÉRCULES 56 - Silvio Da-Rin (Brasil, 94 min, 2006, doc)
Classificação indicativa: 12 anos

17h
DIAS DE GREVE – Adirley Queirós (Brasil, 24 min, 2009, doc)
PARAÍSO - Héctor Gálvez (Peru/ Alemanha/ Espanha, 91 min, 2009, fic)
Classificação indicativa: 12 anos

19h
CARNAVAL DOS DEUSES - Tata Amaral (Brasil, 9 min, 2010, fic)
MEU COMPANHEIRO - Juan Darío Almagro (Argentina, 25 min, 2010, doc)
LEITE E FERRO - Claudia Priscilla (Brasil, 72 min, 2010, doc)
Classificação indicativa: 16 anos


06/12 – SEGUNDA-FEIRA
13h – Audiodescrição
PRA FRENTE BRASIL - Roberto Farias (Brasil, 105 min, 1982, fic)
* Sessão com audiodescrição para público com deficiência visual.
Classificação indicativa: 14 anos

15h
A CASA DOS MORTOS - Debora Diniz (Brasil, 24 min, 2009, doc)
CLAUDIA - Marcel Gonnet Wainmayer (Argentina, 76 min, 2010, doc)
Classificação indicativa: 14 anos

17h
ALOHA - Paula Luana Maia / Nildo Ferreira (Brasil, 15 min, 2010, doc)
AVÓS - Michael Wahrmann (Brasil, 12 min, 2009, fic)
CINEMA DE GUERRILHA - Evaldo Mocarzel (Brasil, 72 min, 2010, doc)
Classificação indicativa: 12 anos

19h
KAMCHATKA - Marcelo Piñeyro (Argentina/ Espanha/ Itália, 103 min, 2002, fic)
Classificação indicativa: livre


07/12 – TERÇA-FEIRA
13h
DOIS MUNDOS – Thereza Jessouroun (Brasil, 15 min, 2009, doc)
AMÉRICA TEM ALMA - Carlos Azpurua (Bolívia/ Venezuela, 70 min, 2009, doc)
Classificação indicativa: 12 anos

15h
VLADO, 30 ANOS DEPOIS - João Batista de Andrade (Brasil, 85 min, 2005, doc)
Classificação indicativa: 14 anos

17h
A HISTÓRIA OFICIAL - Luis Puenzo (Argentina, 114 min, 1985, fic)
Classificação indicativa: 12 anos

19h
XXY - Lúcia Puenzo (Argentina/ França/ Espanha, 86 min, 2006, fic)
Classificação indicativa: 16 anos


08/12 – QUARTA-FEIRA
13h
MÃOS DE OUTUBRO - Vitor Souza Lima (Brasil, 20 min, 2009, doc)
JURUNA, O ESPÍRITO DA FLORESTA - Armando Lacerda (Brasil, 86 min, 2009, doc)
Classificação indicativa: 12 anos

15h
HALO - Martín Klein (Uruguai, 4 min, 2009, fic)
ANDRÉS NÃO QUER DORMIR A SESTA - Daniel Bustamante (Argentina, 108 min, 2009, fic)
Classificação indicativa: 12 anos

17h
MARIBEL - Yerko Ravlic (Chile, 18 min, 2009, fic)
O QUARTO DE LEO - Enrique Buchichio (Uruguai/ Argentina, 95 min, 2009, fic)
Classificação indicativa: 14 anos

19h
O FILHO DA NOIVA - Juan José Campanella (Argentina/ Espanha, 124 min, 2001, fic)
Classificação indicativa: livre


09/12 – QUINTA-FEIRA
13h
ENSAIO DE CINEMA - Allan Ribeiro (Brasil, 15 min, 2009, fic)
108 - Renate Costa (Paraguai/ Espanha, 91 min, 2010, doc)
Classificação indicativa: 12 anos

15h
CARRETO - Marília Hughes, Claudio Marques (Brasil, 12 min, 2009, fic)
BAILÃO - Marcelo Caetano (Brasil, 17 min, 2009, doc)
DEFENSA 1464 - David Rubio (Equador/ Argentina, 68 min, 2010, doc)
Classificação indicativa: 12 anos

17h
O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS - Cao Hamburger (Brasil, 110 min, 2006, fic)
Classificação indicativa: 10 anos

19h
EU NÃO QUERO VOLTAR SOZINHO - Daniel Ribeiro (Brasil, 17 min, 2010, fic)
IMAGEM FINAL - Andrés Habegger (Argentina, 94 min, 2008, doc)
Classificação indicativa: 12 anos

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

arca russa

Assisti recentemente Arca Russa. O filme traz questões que requer atenção. Uma discussão fundamentada sobre a História Cultural Européia, dentre outras. No impedimento de realizar uma reflexão merecida ao trabalho de Aleksandr Sokúrov, transcrevo artigo do site contracampo, devidamente endereçado, um começo. Penso que funcionará para mim própria como um lembrete na difícil tarefa que me encontro de retomar anotações, articulá-las e criar focos temáticos. Lê quem quer, ainda bem.

Arca Russa,
de Alexandr Sokurov


Ruski kovcheg, Rússia, 2002

http://www.contracampo.com.br/43/arcarussa.htm

O vagar do personagem começa após um "acidente não especificado" - uma ruptura histórica? - que esvazia parte de sua identidade e de sua memória. Ele é apenas uma voz sussurante e sem imagem, como a dos narradores fantasmagóricos de Aleksandr Sukúrov, sempre no limbo entre o "ter sido" e o "continuar sendo", sem noção de seus lugares no mundo, sem consciência de si próprios e de seus contextos, perdidos em uma existência sem sentido. Assim começa Arca Russa. Com um personagem perdido, em estado de confusão, sem classe definida, sem ideologia aparente, apenas um ser sem imagem.

"Abro os olhos e não vejo nada", diz o narrador, cujo ponto de vista será sempre o da câmera. "Onde estou?", pergunta-se. Pela roupa dos oficiais, crê estar no século XIX. Ela vaga pelos corredores do Museu L´Hermitage, em São Petersburgo, e se perde nos s labirintos da História, em uma memória coletiva criada pela classe dominante, a czarista, na qual não sabe qual é seu papel naquela encenação. História como um teatro, representação/recorte da realidade. O narrador interage com os quadros ali expostos, como se fossem seres vivos (não são?), de modo a construir, pela soma dos fragmentos pictóricos, um processo artístico-histórico, ensaiado, em registro mais metafísico, em Elegia de Uma Viagem.

Entremos logo na questão do uso do plano-sequência de mais de hora e meia de duração, viabilizado por uma tecnologia digital especialmente elaborada para isso. São mais de 300 anos de História e de Arte – sem fronteiras entre uma coisa e outra - sintetizada em 30 e tantas salas do L´Hermitage. O museu torna-se um divã de um país. Todos os tempos convivem em único espaço, no qual o passado faz parte do presente, pois eternizado pela Arte e pela História, mais uma vez sem fronteiras entre uma e outra. Daí a opção pelo plano-sequência, pela imagem sem cortes, pelo fluxo contínuo, pois, por trás do impressionante e bem executado desafio técnico, existe uma pertinência estética, em sintonia com um conceito anterior à forma: a da convivência dos tempos em todos os tempos.

Há quem veja nesse procedimento algo de reacionário e manipulador. Planos sem cortes revelariam apenas um ponto de vista. Mas o corte é menos manipulador e tendencioso? Para além do conceito, a prática, tecnicamente, resulta primorosa. A iluminação varia de acordo com o ambiente. As imagens alteram a percepção de profundidade e perspectiva, ora aproximando o fundo da cena, ora distanciando-o do nosso olhar. Muito se questiona se não é mesmo um único plano-sequência, se quando a câmera fecha em uma luva, ou passa por trás de uma pilastra, não haveria um corte. Importa mesmo? Não é o efeito que vale ser avaliado? Pois a fotografia de Tillman Butner, com ou sem corte, gera efeitos interessantíssimos. E em sintonia com a proposta.

Arca Russa é coerentíssimo na obra de Sukúrov. A eternização do passado pode ser identificada, em uma chave mais espiritual e menos político-factual, também em vários outros momentos sokurovianos. A morte permanece vida, na lembrança e na dor dos que permanecem vivos, em Dolce e Mãe e Filho. Em Elegia Oriental, filma-se a morte, por meio de uma alma desgovernada (como todo narrador típico do cineasta), mas se especula, essencialmente, sobre o sentido da vida. Tudo é vida em Sokurov. Dos museus aos fantasmas. Seu conceito de História - e não custa lembrar que o diretor era professor da disciplina - é banhado na metafísica.

Não parece ser casual que, com sua formação e a paixão pela literatura, optou por se expressar no cinema. Em vez de apenas dizer, ou analisar, ou concluir, como nos livros (históricos ou de ficção), deixa questões em aberto. Exibe pelo que está fora do quadro, fala pelo silêncio, revela pela omissão e conclui com ausência de conclusão. O cinema é sim a arte da superfície, mas também pode, ao passar pela superfície da imagem, vislumbrar o invisível e o indizível. Até porque, em vez de explicar, Sukurov especula. Sua opção é pela sombra, não pela luz. Isso talvez explique a prática habitual de recolher as cores – em vídeo ou película – para acentuar o que está por trás delas.

E a plasticidade é algo muito comentado quando se fala de Sokurov. Seu fascínio pela pintura, às vezes, rende certa confusão. Tende-se a vê-lo como cineasta pictórico. Não. Sokurov não transforma o cinema em pintura, como algumas retrógadas experiências estéticas, mas sim a pintura em cinema. Há uma larga diferença nisso. A pintura é fragmento de vida para o diretor. É História. Eternização de um momento, síntese de um mundo. Algo vivo, a ser questionado, com o que se dialoga. No cinema, ela se move. Faz o tempo se tornar personagem, fala e indaga sobre qual a razão de tudo. Sem respostas

Voltemos à Arca Russa. Apenas um homem enxerga o narrador e vem conversar com ele. Fala russo, mas é francês, aparentemente. Esse personagem ataca a mitificação dos tiranos russos, em especial Pedro, O Grande, mas também é fascinado por essa tirania. O russo-francês será um guia pela excursão pela Rússia pelo L´ Hermitage. Sua binacionalidade é metafórica. Ele representa o conflito de identidade da aristocracia e da arte russa, com um pé na tradição local e outro nos ventos soprados da Europa. Essa obsessão por fazer parte do universo europeu, sem deixar de lado a xenofobia, é um traço russo muito abordado pela literatura do país, principalmente por Turgueniev, com sua investigação sobre o caráter nacional, a tal russalidade. O guia insiste: "os russos estão sempre a copiar, não têm idéias próprias". A russalidade aristocrática seria um híbrido esquisofrênico, que busca sua identidade nas identidades dos outros. Pois intereressa-lhe pertencer ao universo aristocrático, não aos limites culturais de um país à margem do centro civilizado.

Mas este é um filme que cultiva as dúvidas. A História é turva. Vê-la com nitidez seria manipulação e reducionismo. A câmera subjetiva assume a condição de um ponto de vista, de uma verdade subjetiva, anti-platônica, quase nietzschiana, que busca uma perspectiva, não um núcleo de verdades absolutas que faz tudo caber em um molde. O tom de lamento ao se olhar para a pompa czarista perdida talvez diga menos de um espírito saudoso e mais de uma reação ao cenário cinzento do momento atual e aos anos pouco coloridos do sistema soviético. Não é um filme profundo, no sentido de seu mergulho vertical, mas tem longo alcance horizontal, abarcando uma série de campos. Arca Russa abre portas em vez de fechá-las. "Estamos condenados a navegar sempre", conclui o narrador ao final. Como em boa parte do cinema sokuroviano, fala de um navegar sem ter bússola como parâmetro, pois o passado, induz o diretor, não é necessariamente farol para o futuro.
Cléber Eduardo

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

relatos de experiências



















Há na internet considerável relatos de viagens, experiências únicas para os que tiveram a sorte de aventurar-se em descobertas. Bem verdade que revelam inusitados gostos e estilos, alguns bastante simples, outros sofisticados e alguns inteiramente desprovidos de gosto. Para uns fontes de conhecimento, para outros fonte de consumo, novos rumos, novos destinos, para outros jeito de passar o tempo do tédio. Há também os que viajam com a imaginação. A seguir transcrevo uma postagem encontrada na internet lembrando que fui convidada para um chá de rosas turcas antes de viajar, aproveito para agradecer a oportunidade que tive de apreciar a sofisticação e elegância do ritual. Para quem quiser, o enderêço do blog consultado e copiado está no final do post. Um excelente chá de rosas.


Rosas turcas
As montras das pastelarias de Istambul iluminadas ao fim da tarde são irresistíveis porque é nessa hora que as baclava e os lokum brilham mais dourados e luminosos. Quase a chegar à ponte Gálata, parámos para olhar as doces geometrias numa montra e quando nos preparávamos para tirar mais uma fotografia da doçaria bem encenada, alguém vem de dentro e oferece-nos dois lokums róseos: “Provem rosas turcas!”. Apesar daquele não ser o melhor aperitivo para o jantar que se aproximava, não resistimos ao convite daquele homem que esperava expectante pela nossa opinião. A massa de açúcar foi-se desfazendo lentamente na boca e, pela primeira vez, provámos rosas que juraríamos ser vermelhas. Alguma coisa naquele sabor perfumado nos remetia para a cor forte de veludo macio.

O homem não nos queria vender delícias turcas. Pensamos que, ao ver-nos disponíveis por detrás do vidro da montra a admirar os doces patamares, lhe apeteceu conversar. E assim aconteceu: ouvimos durante mais de vinte minutos um turco de meia idade a discorrer sobre as rosas da Turquia. Soubemos então que existem mais de vinte espécies nativas de rosas turcas e que algumas delas crescem até em dunas de areia. As gul (rosa em turco) são usadas para vários fins mas destaca-se pelo seu valor económico e cultural a produção de attar de rosas que em árabe quer dizer fragrância. Colhidas ao nascer do sol, as pétalas são destiladas para se separar a água dos óleos essenciais. Foram os turcos otomanos que desenvolveram este processo e o espalharam pelas várias províncias do seu império por mais de cinco séculos. Para se produzir um kg de óleo são necessárias quatro toneladas de rosas o que aproxima o preço deste produto do preço do ouro. Tem origem na Turquia mais de 60% do óleo produzido no mundo.

A conversa prometia futuro mas o nosso compromisso para o jantar apressou o fim. Prometemos voltar um dia para comprar lokums de rosas e continuar a ouvir as histórias das rosas turcas que se combinam com a História da Turquia.

A partir desse fim de tarde, passámos a dar mais atenção ao lugar das rosas na vida e na cultura turcas. Estão presentes nos tapetes, nos azulejos, nos ornamentos em pedra e gesso em casas e palácios, na cerâmica, nas roupas preciosas dos sultões, na joalharia, nas lajes dos cemitérios … Nos mercados, as pétalas de rosas combinadas sugerem chás perfumados, os óleos das massagens frescura e relaxamento, o perfume de rosas promete memórias persistentes.

Outros testemunhos conduziram-nos à culinária: as rosas são usadas em várias receitas, destacando-se a geleia de pétalas de rosas e o pudim de Noé. A receita da geleia, excelente no pão ao pequeno almoço, e a história do Noé seguem no atalho já a seguir!

O pudim de Noé, é um dos nomes que se dá ao asure. Segundo a lenda, Noé vendo que havia poucos mantimentos na arca, ordenou que se cozinhassem todos juntos. O resultado foi excelente e, assim, teria nascido o asure. Este pudim, para além da água de rosas, inclui uma longa lista de ingredientes: feijões brancos, nozes, leite, açúcar, amêndoas, uvas, grãos de romã, flocos de trigo, arroz e muito mais! É um pudim ainda muito apreciado entre os mais velhos, mas o trabalho que dá afasta este prato tradicional das cozinhas dos mais jovens.

Para evitar muito trabalho, segue a geleia que colocará as rosas, de forma fácil, na mesa…

Geleia de pétalas de rosas

650 gr de pétalas de rosas frescas; 2 kg de açúcar em pó ; sumo de um limão

2 chávenas e ½ de água mineral sem gás; 1 clara de ovo

Lavam-se as pétalas com água e retiram-se as suas bases esbranquiçadas. Numa taça colocam-se alternadamente as pétalas e metade do açúcar. Espalha-se o sumo de limão guardando-se duas colheres de chá. Cobre-se a taça com um pano e reserva-se.

Numa outra taça, colocam-se as bases esbranquiçadas das pétalas e deita-se sobre elas 2 chávenas e ½ de água a ferver. Cobre-se com um pano. Passados dois dias, côa-se o líquido onde repousaram as bases da pétalas e coloca-se num tacho que vai ao lume com o resto do açúcar e com a clara do ovo. Deixa-se ferver até ganhar ponto de xarope. Acrescenta-se o líquido das pétalas e deixa-se ferver até ficar dourado e depois as duas colheres de chá de limão. Retira-se do lume deixa-se arrefecer e guarda-se em frascos esterilizados..

fonte: http://istambul5dias.net/?p=658

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

memórias




















(...) Seu nome significava Rosa Negra em persa, mas até onde eu podia avaliar, ninguém nas margens das quais ela mergulhava feliz no mar, e nenhuma das suas colegas no liceu francês, sabia disso_ porque seus cabelos longos e brilhantes não eram negros, mas castanhos, e seus olhos um tom apenas mais escuros. Quando eu engenhosamente lhe disse isso, ela ergeu as sobrancelhas como sempre fazia quando ficava séria de repente e, projetando os lábios só um pouco, disse que era claro que ela sabia o que seu nome significava, e que no caso dela era uma homenagem à sua avó albanesa. (...) Da forma como observara outros fazerem, abracei-a, e depois puxei-a para perto, como que por instinto, e reparei que os seus cabelos cheiravam a amêndoa. Eu adorava os pequenos movimentos dos seus lábios quando ela comia e a maneira como ela ficava parecida com um esquilo quando alguma coisa a inquietava"

trechos transcritos do Primeiro Amor de orhan pamuk, livro: istanbul_memória e cidade, são paulo:companhia das letras, 2007

imagem reproduzida do arquivo ara güller, allah old mosque, edirne, 1956.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Istanbul, Hüzün, Impressões.










































Outubro de 2010.
Estamos há um tempo sem as habituais postagens deste espaço e sem as coloquiais trocas de mensagens com meus preciosos colaboradores e experts em temáticas relacionadas à sétima arte. Desculpem-me, foi por uma bela causa (1). O motivo subjetivo liga-se a meu completo e dedicado interesse em adentrar-me pelo entendimento da civilização muçulmana, com especial atenção à civilização da Anatólia e seus sítios repletos de hüzün, extensivos à encantadora e misteriosa Istanbul. Verdade que há dez anos mantenho contacto com estudiosos e conhecedores desta paisagem mesclada de ocidente-oriente e tenho escutado músicas e poesia destas paisagens, além de tornar-me leitora interessada dos principais romancistas turcos, entre eles, Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de Literatura. Apaixonei-me pela Turquia antes de aventurar-me a conhecê-la.

Os comentários que faço desta viagem seguem uma trilha da emoção. Seus aquedutos, memoriais, monumentos, as cinzas do seu império arruinado não serão contemplados neste instante. Quero seguir pelas ruas de Istanbul, quero encontrar as casas, os bairros, os amigos imaginários, os imigrantes criativos, a cidade dominada pelas ruínas e pela melancolia de fim de império ou pelo menos do que me indicaram as fotografias de Ara Güler no seu estúdio-arquivo-museu em Beyoglü. Tentarei pelo menos. Nem sempre as circunstâncias são as mais favoráveis. O que segue são resultados de visitas guiadas, de caminhadas nem sempre na hora e no tempo que encontrava disposição de realizá-la. Contudo, busquei a franqueza daquilo que vi com os meus próprios olhos, e, salve Pamuk, quero pedir a sua compaixão para o registro que segue sobre os Istanbullus.

As impressões de turistas ocidentais guiados já foi amplamente humorizadas por Orhan Pamuk. Cabe-me dizer que pelo menos não vaguei pelas ruas de Istanbul sem antes perceber que tudo que possa dizer destas andanças pouco se aproxima de seus entranhados labirintos de bazares, palácios, mesquitas, torres, muralhas, de aquedutos famosos de uma civilização em permanência e Istanbullus misteriosos. Aviso ao leitor sugerindo um trecho dos passeios de Theóphile Gautier, escritor, jornalista, poeta, tradutor e romancista, pela arguta observação de Orhan:

(...) Comparado a Nerval, Guatier é mais habilidoso, organizado e fluente, o que não surpreende: sendo um feuilletonist, jornalista e crítico de arte que também escrevia ficção em episódios, Gautier tinha a velocidade adquirida e a vivacidade que vinha com a obrigação de escrever diariamente para um jornal (Flaubert o criticava por isso). Mas se ignorarmos os estereótipos e clichês habituais sobre sultões, haréns e cemitérios, o seu livro é uma esplêndida reportagem. Se produziu ressonâncias em Yahya Kemal e em Tanpinar, ajudando-os a criar uma imagem da cidade, é porque Gautier, jornalista calejado de, aventurando-se pelos seus bairros mais pobres para explorar as suas ruínas e as ruas sombrias e imundas, para mostrar aos leitores ocidentais que os bairros eram tão importantes quanto as vistas e os panoramas (...) Da mesma forma, vai a Üsküdar acompanhar as cerimônias místicas dos dervixes de Rufai, vaga pelos cemitérios (onde vê crianças brincando em meio às lápides das sepulturas), vai assistir ao teatro de sombras de Karagöz, visita lojas e vagueia pelos movimentados mercados da cidade, dedicando atenção profunda e entusiasmada pelos passantes (...) Como a maioria dos viajantes ocidentais, apresenta as suas teorias sobre as mulheres mulçumanas_ a sua vida enclausurada, a sua inacessibilidade, seu mistério (...) Mas nos conta mesmo assim que as ruas da cidade viviam repletas de mulheres, algumas das quais até sozinhas (Orhan Pamuk, 2007, 238-239)

O que me impressionou, à primeira olhada pela cidade de Istanbul, está registrado no seu céu azul turquesa, onde os pássaros voam alto como se quisessem tocar os milhares de minaretes que se espalham por todas as dimensões de um território desconhecido e misterioso. Enquanto a minha companheira de viagem perdia-se no labirinto das especiarias do Bazar Egípcio pus-me a desvendar os transeuntes que passavam envoltos nos seus trajes diversos, coloridos, encobertos e de olhos atentos, como a nos brindar por uma multifacetada etnia a ser conhecida, a ser apreciada. A seguir flashes da modesta Kodak, numa tarde de outubro em frente ao Bazar Egípcio.




Foto3. Mesquita ao lado do Bazar Egípcio. Tarde de outubro de 2010.

Foto 2. Movimento em frente ao Bazar Egípcio. Tarde de outubro de 2010.

Foto1. Trecho entre Bazar Egípcio e Mesquita. Tarde de outubro de 2010.


Como sabem, escrevo em estilo dropes, de menta. Cada postagem, por definição, não excede quatro laudas. A viagem vai sendo narrada por etapas, a maneira de Sherazade. Sigo em frente e até a próxima semana.


NOTA:

(1) Refiro-me a comentadores críticos de uma filmografia ainda por rever indefinidamente, tal a qualidade de seus realizadores (as). Por Allah estou com saudade de vocês.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Cinema Silencioso





















Participo virtualmente todo ano da Jornada Brasileira de Cinema Silencioso acompanhando a programação e consultando o Catálogo deste evento (1). Quando da chegada de Adolfo Gomes vindo da metrópole, mais uma chance de se observar uma vertente deste cinema de dedicados à sétima arte. O evento merece destaque. Enquanto aguardamos a publicação no blog http://bressonianas.zip.net/ com balizadas informações sobre a quarta edição desta mostra que se destaca pela proposta estética original e criativa, encaminho alguns dados que podem interessar aos amantes de cinema.

Imagem de capa do catálogo: A Carne e o Diabo (Flesh and the devil, Estados Unidos, 1926, 35 mm, preto e branco, 113 min, 20qps). Síntese do filme:
Leo von Harden e Ulrich von Eltz são ligados desde crianças por uma profunda amizade. Serve num colégio militar alemão e, em uma licença, Leo fica apaixonado por Felicitas, esposa de um poderoso conde. Num duelo, Leo mata o conde e, antes de partir para a África, pede a Ulrich que cuide de Felicitas. Ulrich, ignorante do amor de Leo por Felicitas, apaixona-se e se casa com ela. Com a volta de Leo, Ulrich divide-se entre a amizade e o amor de Felicitas- que estimula a paixão de Leo. Acusado pelo pastor Voss de manter um caso amoroso com Felicitas, Leo perde o controle de suas emoções, tenta matá-la e duela com o amigo de toda sua vida.

Comentários transcritos do Catálogo:
O filme marcou um momento decisivo da carreira e da vida pessoal de Greta Garbo. A princípio, ela não queria tomar parte do filme. Ela havia concluído The Tempress/ Terra de todos, estava cansada, e seu contrato com a Metro-Goldwyn-Mayer não lhe permitia fazer a longa viagem a Suécia que desejava. Uma carta dura da MGM a alertou sobre as sérias conseqüências que provocariam sua recusa em voltar ao trabalho. Na verdade, isso foi o ensaio da batalha que, após A Carne e o diabo, ela travou com os chefes do estúdio e que terminaram por fazer com que fosse uma das estrelas mais bem pagas de Hollywood na época. A química romântica entre Greta Garbo e John Gilbert foi o sonho de qualquer diretor, porque não era apenas interpretação. Segundo a lenda, Gilbert propôs casamento a Garbo durante a produção; ela aceitou, mas escapou no último minuto. O filme marcou o início de um dos mais famosos romances hollywoodianos de sua idade do ouro. Apesar do romance tórrido, Garbo e Gilbert não se casaram, mas continuaram a fazer filmes juntos até depois da chegada do cinema sonoro (embora a carreira de Gilbert tenha sofrido um sério abalo quando sua voz foi ouvida pela primeira vez). Garbo ficou muito impressionada com o trabalho de direção de Clarence Brown e com a fotografia de William Daniels, e exigiu continuar trabalhando com eles nos filmes seguintes na MGM. Acima de tudo, ela elegeu Daniels como seu fotógrafo ideal.

NOTA: Com esta postagem despeço-me deste espaço virtual por um período. Motivos justificados. O mais forte é que estarei viajando para participar de eventos no campo dos Estudos Culturais. No retorno buscarei os contatos dos sempre receptivos e críticos que alimentaram este blog com comentários, sugestões e reflexões.

Agradeço de coração a André Setaro, Adolfo Gomes, Guido Araújo, Jonga Olivieri, José Menezes, Mary Garcia Castro e Pedro Castro (em ordem alfabética) que estiveram lendo e comentando as postagens ou criticando duramente pontos a serem mais desenvolvidos. Não posso esquecer-me de Kátia Barreto, Flávia e Chad Riggle, Luis Duran, Roberta Ferracuti, Ana Lúcia Magalhães, Adélia Portela, Zuleide e Marlene Cardoso, cúmplices em diversos momentos desta escrita em drops.
Até a volta.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Sobre Kieslowski




















Em continuidade ao itinerário Krzystof Kieslowski, procurei aproximar-me o mais perto possível das inquietações do sagrado. Desta vez simularei uma entrevista com uma das estudiosas da sua obra. Nesta proposta parcial busquei e consegui através do Programa Comut da UFBA, localizar um trabalho de quem quis dedicar-se a pesquisar com maestria o inquieto e perseverante realizador que deixou um legado para a sétima arte (1). Segue uma breve conversa.

BLOG_ Professora qual a problemática da obra de Kieslowski, existe uma questão chave?

Andréa Martins_ Krzystof Kieslowski é um cineasta de longa tradição documentária. Entre as décadas de 60 e 70, ele realizou uma média de trinta documentários para a televisão polonesa e alguns vídeos. Com L’Amateur, seu primeiro longa metragem de ficção (1979), dá início a uma nova fase na sua carreira que culmina com a realização da trilogia: Trois couleurs: Bleu, Trois couleurs: Blac e Trois couleurs: Rouge. Todos os seus filmes ficcionais, do mais antigo aos mais recentes, se articulam em torno da mesma questão perturbadora: Como “dar a ver”, como se utilizar da imagem sem impor ao espectador o lugar de um juiz, o lugar de um voyeur? Como se utilizar da imagem sem que ela imponha uma verdade?

BLOG_ Sabendo que sua origem inicial se realiza no campo do documentário como se constrói este processo de criação?

Andréa Martins_ Kieslowski se vê constantemente tomado por questões perturbadoras e assim se expressa: “(...) quando filmo um longa metragem, sempre sei como ele terminará. Quando filmo um documentário, eu ignoro. E isto é apaixonante: Ignorar como terminará o plano que estamos filmando e, ainda, o filme inteiro. Para mim, o documentário é uma forma de arte superior à forma ficcional, pois a vida é bem mais inteligente que eu. Ela cria situações bem mais interessantes do que as que eu possa inventar...” Não é àtoa que nosso cineasta nunca se contenta com um determinado final para os seus filmes de ficção: roda geralmente vários términos.

BLOG_ As possibilidades ilimitados de términos (nos documentários e filmes de ficção), em sua obra, podem ser consideradas um recurso estilístico?

Andréa Martins_ Não se trata de um recurso estilístico, apenas. O que está em questão no conjunto da obra está para além destes artifícios de construção. Somente para o filme La Double Vie de Veronique, ele afirma ter pensado em, pelo menos, quinze finais diferentes e só não os rodou por falta de tempo. Para Kieslowski, “é só na montagem que se sabe qual é a alma do filme, e não antes, na filmagem”.

BLOG_ Gostaria de insistir nesse ponto, o da criação das imagens. Existiria uma melhor imagem para expressar um ponto de vista para este realizador?

Andréa Martins_ O problema da escolha dos finais em Kieslowski é o problema da imposição de um sentido, de escolha de um significado que uma imagem pode implicar. Nosso cineasta se recusa a organizar a imagem em torno de uma unidade significativa qualquer. Sua imagem diz pouco, quase nada. É necessário que imaginemos que façamos nossas hipóteses e nossos próprios finais. Esta recusa em seguir uma lógica narrativa determinada não se reflete apenas na possibilidade de vários finais. As trajetórias de cada personagem também estão sempre expostas a uma eventualidade qualquer, a um encontro qualquer que subverte a retidão de seus percursos e faz oscilar suas certezas mais arraigadas.

BLOG_ Alguns apressados comentaristas costumam confundir esta abertura para diferentes percursos com algo tipo “go to pelo acaso” sem perceber que há uma recusa ao fechamento dentro de um esquema lógico formal e até mesmo ideológico e moral.

Andréa Martins_ É. Na verdade não se trata de captar acasos, mas, antes, de um olhar que está absolutamente atento aos fios invisíveis, aos sinais que se tecem no decorrer de cada trajetória, no movimento de cada percurso narrativo.

BLOG_Em 1989 Kieslowski realizou dez médias-metragens para a televisão polonesa, a série O Decálogo. Pouco divulgado no Brasil, embora já distribuído em DVD, parece mostrar a recusa sistemática em relacionar cada mandamento a um filme particular. Apresenta-se, também nesta série, a escolha pela problematização, instância fundamental no movimento de sua obra.

Andréa Martins_Ao invés de ilustrar em imagens os mandamentos, Kieslowski transforma estas dez injuções em dez problemas dez vezes formulados. Não há uma única imagem a sugerir o bem e o mal, o justo ou o injusto, a submissão ou a transgressão à lei. Nosso cineasta não pensa estes dualismos fáceis. As condutas a escolher se esboçam à medida que cada personagem se vê confrontado com situações perturbadoras, inquietantes, terríveis e, a partir daí que começam os problemas... Como respeitar os princípios morais? Como respeitar as leis, os mandamentos?

BLOG_Professora, em Três Proposições para uma Imagem: A Trilogia de Kieslowski, a senhora diz que Kieslowski põe em relevo as idéias de liberdade, igualdade e fraternidade oriundas do século XVIII para pensá-las hoje, dentro de uma Europa “sem fronteiras”. Gostaria de continuar na próxima postagem esta temática na tentativa de detalhar mais o significado desses valores na obra de Kieslowski e seu entendimento de um novo mapeamento da Europa (2).

Andréa Martins_Aguardando seu contato via e-mail para avançar, mesmo porque a questão da representação cinematográfica na perspectiva do tempo e não da estrutura, através do estudo específico da trilogia de Kieslowski, sequer foi, ainda, mencionada (2).

Notas:
1.O título do trabalho consultado, a seguir, Três Proposições para Uma Imagem: A Trilogia de Kieslowski apresentado em 1995 à Universidade Federal do Rio de Janeiro por Andréa França Martins, na qualidade de Dissertação de Mestrado, foi publicada, posteriormente, pela Editora Sete Letras, RJ.

2.ATENÇÃO: esta entrevista é pura ficção, qualquer semelhança com dados da realidade devem ser recusados. O contato com a autora do trabalho, logo que possível, transformará o desconhecimento da obra de Kieslowski “na construção de um pensamento onde as certezas mais arraigadas e incorrigíveis desfalecem”.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

KIESLOWSKI






















Estou a rever o Decálogo I buscando, desta vez, dialogar com o texto de S. Zizek sobre o tema (1).
O belo filme de imagens singulares sugere uma reflexão sobre a vida, ainda que comoventes imagens da morte de Pawel, o garoto que pergunta sempre ao pai “o que é a morte” e “o que permanece depois da morte” pareça ser o fio condutor da narrativa fílmica. O filme tem inicio com imagens que antecipam a tragédia do seu desaparecimento no lago.

Transcrevo os comentários de Zizek:
“Não farás para ti imagem esculpida [...]porque eu, Iahweh teu Deus, sou um homem ciumento, que puno a iniqüidade dos pais sobre os filhos” [...] a “imagem esculpida” é materializada no computador como o deus ex-machina falso que gera ícones e assim representa a maior violação da proibição de fazer imagens. Por conseqüência, Deus pune o pai, fazendo “castigar o erro do pai no filho”, que se afoga quando patina no gelo. A “verdade” desse mandamento é a subversão dialética da própria oposição entre palavra e imagem: a proscrição das imagens leva à proibição de pronunciar o próprio nome de Deus."

A versão dos mandamentos extraídos de livros sagrados, entre eles, a Bíblia de Jerusalém, apresentando na versão cristã o primeiro mandamento, declina “Amarás a Deus sobre todas as coisas e não jurarás teu nome em vão”. Zizek chama atenção que a “verdade” do primeiro mandamento está na proibição de imagens, pois só o Deus judeu não tem imagem, todos os outros estão presentes na forma de imagens, de ídolos.

A narrativa se constrói com imagens dos espaços externos, paisagens de um vilarejo coberto de neve, imagens de uma fogueira que arde em chamas, pombos que perambulam pelas janelas. No ambiente interno, diálogos entre o garoto que interroga seu pai e sua tia Irena sobre questões da fé e da existência humana. As respostas são diferentes. Para o pai, professor universitário voltado para discussões sobre a linguagem literária, a morte deixa apenas as memórias e as lembranças dos entes queridos. Acredita e baseia-se em programas cibernéticos para medições das temperaturas e previsões do tempo, prever os degelos dos lagos, informações prestadas pela máquina que utilizadas por eles mostram mensagem significativas, “I am ready”. A máquina responde os prognósticos de descongelamento do lago e prescreve as condições metereológicas, consulta-se para guiar-se sobre seus prognósticos. Parece não saber dizer nada sobre a previsão dos sonhos. A tia Irnena, voltada para a religiosidade e os rituais da fé ao ser interrogada por Pawel sobre a vida, responde “viver significa ajudar os outros, a vida é um presente, uma dádiva”, aponta para a necessidade de aulas de religião para o pequeno. Para ela, Deus existe.

Há sinais e avisos. Um tinteiro quebra e mancha os papéis que o pai de Pawel trabalhava, a professora de inglês não deu aulas, houve descongelamento no lago. Há inquietação e o som de uma sirene aponta busca pelos arredores. Uma criança aparece, Pawel não. As últimas cenas revelam a impotência do pai frente à tragédia, sua ira contra as imagens religiosas dispostas no altar, sua agonia frente aos desígnos da tragédia.

Voltemos a Zizek, que diz: O Dacálogo 1 e o Decálogo 10 sobressaem da série: o primeiro é a história de grau zero de uma intrusão traumática do Real contingente e absurdo, sem a tensão intersubjetiva dos outros episódios, enquanto o último é uma peça satírica que introduz o cômico numa série em todo o resto sombria. A trágica morte de um garoto no descongelamento imprevisível do lago denuncia os limites da previsibilidade das máquinas do tempo. Como assinala certos planos do filme ao mostrar que as máquinas, ainda que se queira, não podem prever os sonhos.

Nota: Krzysztof Kieslowski (1941-1996) cineasta polonês, realizou uma série de filmes para a TVpolonesa baseado nos Dez Mandamentos, com o título Decálogo ( 1988). Há algumas indicações bibliográficas de análise desta série, todas de difícil localização a curto prazo. Enquanto não encontro material de análise mais denso, partilho as primeiras inquietações da consulta até então.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Da interpretação

As anotações a seguir, despretensiosas, são rascunhos para uma agenda de estudo, não apresentam soluções, encaminham perguntas. A nota de rodapé transcrita abaixo tem o objetivo de dialogar com o Decálogo, série de filmes realizados por Krzysztof Kieslowski. Qual o sentido de proceder mediante deslocamentos, próximo do que Hegel realiza em Fenomenologia do Espírito, tornar visível sua "verdade" e suas consequências inesperadas que minam suas premissas, no modo hegeliano restrito? Procede Kieslóvski no Decálogo segundo sua teologia materialista? O relacionamento do Decálogo com os Dez Mandamentos se realiza em que dimensão?

"Entre outras conjecturas sobre a relação entre a série dos Dez Mandamentos e os episódios do Decálogo de Kieslowski, a mais convincente é a afirmação de que Kiéslowski saltou o segundo mandamento, que proibe as imagens ( talvez numa concordância espontânea com o fato de o próprio Decálogo ser composto de imagens em movimento) e dividiu o último mandamento em dois:"Não cobiçaras a mulher do próximo" ( Decálogo 9), nem seus bens materiais ( "Não cobiçaras os selos do teu vizinho, no Decálogo 10). Nessa interpretação ( desenvolvida em Véronique Campan, Dix bréves histoires d'image:Le Decálogue de Krzystof Kieslowski,Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1993), o Decálogo 7 encena o primeiro mandamento. "Não terás outros deuses diante de mim": o pai é punido porque celebra o falso deus da ciência e da tecnologia. O que se perde nessa interpretação é o paradoxal "juízo infinito", que surge se lermos o Decálogo 10 como a encenação do primeiro mandamento: a equiparaçao de Deus) o ser mais alto) com os selos, o objeto material arbitrário elevado à dignidade da Coisa."

(...) O que este faz está muito próximo do que Hegel realiza em sua Fenomenologia do espírito: seleciona um mandamento e "encena-o", consubstancia-o numa situação de vida exemplar, tornando visível assim sua "verdade" e sua conseqûencia inesperada, que minam suas premissas. Quase se é tentado a afirmar que, no modo hegeliano estrito, esse deslocamento de cada mandamento gera o mandamento seguinte.

Estas notas iniciais, são provocações e motivações para agenda de estudos e leituras, não tem caráter definitivo nem de verdade, revelam intenções. Posso mudar o percurso se entender que a navegação aponta para mar revolto...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Krzysztof Kieslowski













Ainda está por se fazer um estudo cuidadoso da obra de Krzystof Kieslowski. Apenas os últimos trabalhos deste realizador encontram-se divulgados no Brasil e com pouca chance de se apreciar uma vez que não se encontram distribuidos no circuito comercial. Em Salvador, se não me engano, a única possibilidade de locação das cópias em DVD dos trabalhos mais recentes, A dupla vida de Veronique (1991), A trilogia das cores ( 1993/94) e o Decálogo ( 1988) faz-se pela perseverança da Casa de Cinema ( Rio Vermelho). Provavelmente precisaríamos de um mapeamento mais apurado pelos programas de pós-graduação e centros de estudos para levantamentos dos trabalhos realizados sobre esta filmografia com a intenção de confrontá-los.

Enquanto aguardo a aquisição de trabalho localizado na PUC/SP e que o serviço Comut das bibliotecas funcionem, passo pela tabela construída a partir do arquivo do site sensesofcinema que registra, aproximadamente, quarenta filmes realizados num período de trinta anos de inteira dedicação até a exaustão ( Kieslowski morre em 1996, após vários pronunciamentos onde diz que após a Trilogia das Cores sente necessidade de sentar-se numa cadeira e fumar seus cigarros sem parar, quase que revelando a necessidade de trégua na sua intensa criação produtiva).

FILMOGRAFIA (1966/1994)


1966 The Face
1966 The Office (Urzad)
1966 The Tram (Tramwaj)
1967 Concert of Wishes (Koncert zyczen)
1968 From the City of Lódz (Z miasta Lódzi)
1968 The Photograph (Zdjecie)
1970 I Was a Soldier (Bylem zolnierzem)
1971 Workers '71: Nothing About Us Without Us (Robotnicy '71: Nic o nas bez nas)
1971 Before the Rally (Przed rajdem)
1972 Factory (Fabryka)
1972 Refrain (Refren)
1972 The Principles of Safety and Hygiene in a Copper Mine (Podstawy BHP kopalni miedzi)
1972 Between Wroclaw and Zielona Gora (Miedzy Wroclawiem a Zielona Gora)
1973 Pedestrian Subway (Przejscie podziemme)
1973 Bricklayer (Murarz)
1974 X-Ray (Przeswietlenie)
1974 First Love (Pierwsza milosc)
1975 Curriculum Vitae
1975 Personnel (Personel)
1976 Hospital (Szpital)
1976 Calm Before the Storm (Spokój)
1976 Slate (Klaps)
1976 The Scar (Blizna)
1977 I Don't Know (Nie wiem)
1978 From a Night Porter's Point of View (Z punktu widzenia nocnego portiera)
1978 Seven Women of Different Ages (Siedem kobiet w róznym wieku)
1979 Camera Buff (Amator)
1980 Talking Heads (Gadajace glowy)
1980 Railway Station (Dworzec)
1981 Short Working Day (Krótki dzien pracy)
1982 Blind Chance (Przypadek)
1985 No End (Bez konca)
1988 The Decalogue (Dekalog)
1988 A Short Film About Killing (Krótki film o zabijaniu)
1988 A Short Film About Love (Krótki film o milosci)
1990 City Life (segment)
1991 The Double Life of Véronique (La Double vie de Véronique)
1993 Three Colors: Blue (Trois colours: Bleu)
1994 Three Colors: White (Trois colours: Blanc)
1994 Three Colors: Red ( Trois colours: Rouge)


Fonte: http://archive.sensesofcinema.com/contents/directors/03/kieslowski.html

sábado, 12 de junho de 2010

60 anos do Clube de Cinema da Bahia














PROGRAMAÇÃO COMEMORAÇÃO 60 ANOS DO CLUBE DE CINEMA DA BAHIA
De 26/06 a 01/07 –– SESSÕES DE 16:30 e 19:00 HORAS
SALA WALTER DA SILVEIRA





O Clube de Cinema da Bahia deu início a sua atividade cinematográfica com o clássico do cinema francês “Os Visitantes da Noite”, de Marcel Carné. Para comemorar o acontecimento histórico de 60 anos passados o Clube de Cinema da Bahia em colaboração com a DIMAS está trazendo de volta o filme “Os Visitantes da Noite”, para exibição às 19 horas no próximo dia 19 de junho na Sala Walter da Silveira. A seguir programação completa.


Dia 26/06
16h30

Filme:
Em Busca do Ouro (The Gold Rush , EUA-1925)
Direção:Charles Chaplin
Elenco:Charles Chaplin,Mack Swain e Tom Murray.
Duração: 83 min
Classificação:14 anos
Sinopse: Um pobre vagabundo, seguindo os rastros de outros tantos, viaja em busca do ouro no Alasca. No meio de uma tempestade de neve, ele consegue encontrar uma cabana, mas lá tem que disputar espaço com outro homem, um bandido. Jim McKay, outro que está em busca do ouro, surge e acaba salvando a vida do vagabundo, e os dois tornam-se amigos.

19h

Filme:
Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941)
Direção:Orson Welles
Elenco:Orson Welles,Joseph Cotten,Dorothy Comingore,Agnes Moorehead e Ruth Warrick.
Duração:119 min
Classificação:14 anos
Sinopse: Figura mitológica da imprensa norte-americana, o multimilionário Charles Foster Kane morre sozinho na sua extravagante mansão e dá um último sussurro: “rosebud”. Na tentativa de descobrir o significado da palavra, um repórter procura pessoas que conviveram e trabalharam com Kane. Elas relatam a vida e a ascensão dele, mas não ajudam a decifrar a charada de sua morte.



Dia 27/06
16h30

Filme:
O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, URSS, 1925)
Direção:Sergei Eisenstein
Elenco: Aleksandr Antonov, Vladimir Barsky e Grigori Aleksandrov.
Duração:75 min.
Classificação:14 anos
Sinopse: Baseado em fatos reais, conta peculiaridades da Rússia czarista, que, em 1905, viu um levante anteceder a Revolução de 1917. Estamos no navio de guerra Potenkim, com marinheiros cansados de serem maltratados, comendo carne estragada pensando que ela estava perfeita. Alguns marinheiros se recusam a comer e, então, os oficiais ordenam a execução dos “desertores”. A tensão aumenta e a situação perde o controle.

19h
Filme:
Rashmon (Rashômon ,JAP – 1950)
Direção:Akira Kurosawa
Elenco:Toshirô Mifune, Masayuki Mori e Machiko Kyô.
Duração:88 min.
Classificação:14 anos
Sinopse:No Japão do século 12, um fazendeiro e sua mulher são atacados numa floresta. Ela é violentada; ele morre. Ao longo do julgamento do caso, cada uma das quatro testemunhas, inclusive o fantasma do fazendeiro assassinado, conta o ocorrido segundo diferentes pontos de vista. Na busca da versão real, o drama questiona o próprio conceito de verdade.


Dia 28/06

16h30 e 19h
Filme:
Desencanto (Brief Encounter, GB, 1945)
Direção: David Lean
Elenco:Celia Johnson e Trevor Howard.
Duração:86 min.
Classificação:14 anos
Sinopse:Em um café numa estação de trem, a dona de casa Laura Jesson encontra o doutor Alec Harvey. Embora ambos já sejam casados, gradualmente apaixonam-se um pelo outro. Eles, então, continuam encontrando-se toda semana no mesmo local, mesmo sabendo que seu amor é impossível.

Dia 29/06

16h30
Filme:
Vidas Secas (Brasil- 1963)
Direção:Nelson Pereira dos Santos
Elenco:Átila Iório,Genivaldo Lima, Gilvan Lima e Orlando Macedo.
Duração:103 min.
Classificação:14 anos
Sinopse - Família de retirantes, Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e a cachorra Baleia, que, pressionados pela seca, atravessam o sertão em busca de meios de sobrevivência.Inspirado na obra de Graciliano Ramos

19h
Filme:
Antes da Revolução (Prima della revoluzione,Itália, 1964)
Direção:Bernardo Bertolucci
Elenco:Adriana Asti e Francesco Barilli.
Duração:115min
Classificação:14 anos
Sinopse: Parma, 1964. Fabrizio, um jovem de 22 anos, passa por uma fase de indecisão política e afetiva. Apesar de renegar a burguesia, não se sente à vontade no movimento revolucionário, pois se considera à frente das ideologias da esquerda. Ao mesmo tempo, vive um amor conturbado com sua tia.

Dia 30/06

16h30
Filme:
Deus e o Diabo na Terra do Sol (Brasil,1964)
Direção:Glauber Rocha
Elenco:Othon Bastos,Geraldo Del Rey,Sonia dos Humildes e Yoná Magalhães.
Duração:115 min
Classificação:14 anos
Sinopse:O cangaceiro Manuel e sua mulher Rosa são obrigados a viajar pelo sertão, após ele ter matado o patrão. Em sua jornada, eles acabam cruzando com um Deus negro, um diabo loiro e um temível homem. Esta é considerada a obra-prima de Glauber Rocha.

Dia 1/07

16h30
Filme:
Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, EUA - 1946)
Direção:John Ford
Elenco:Walter Brennan,Victor Mature,Linda Darnell e Roy Roberts.
Duração:97 min
Classificação:14 anos
Sinopse: Wyatt Earp é o lendário xerife de Dodge City, mas hoje ele se limita a viajar com seus irmãos carregando gado. Em uma das viagens, ele deixa seu irmão mais novo tomando conta do rebanho enquanto vai ao saloon. Quando volta, encontra o pequeno morto e decide aceitar trabalhar no cargo de xerife da cidade, tentando trazer a justiça ao local.

19h
Filme:
Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, Itália -1961)
Direção:Francesco Rosi
Elenco:Frank Wolff, Salvo Randone, Pietro Cammarata e Ugo Torrente. Duração:125 min.
Classificação:14 anos
Sinopse:O filme conta a história verídica do bandido siciliano Salvatore Giuliano, e de suas relações com a Máfia e o poder.

Nota:
Esta programação enviada pelo Professor Guido Araújo, liderança do Clube de Cinema da Bahia, encontra-se divulgada, também, em http://setarosblog.blogspot.com/
O banner, colaboração de Jonga Olivieri, ilustra a postagem.

terça-feira, 8 de junho de 2010

uma poesia de arseni tarkovski



Vida, Vida

Não acredito em pressentimentos, e augúrios
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia
Nem do veneno. Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há por que
Ter medo da morte aos dezessete
Ou mesmo aos setenta. Realidade e luz
Existem, mas morte e trevas, não.
Estamos agora todos na praia,
E eu sou um dos que içam as redes
Quando um cardume de imortalidade nelas entra.


Vive na casa_ e a casa continua de pé
Vou aparecer em qualquer século
Entrar e fazer uma casa para mim
É por isso que teus filhos estão ao meu lado
E as tuas esposas, todos sentados em uma mesa,
Uma mesa para o avô e o neto
O futuro é consumado aqui e agora
E se eu erguer levemente minha mão diante de ti,
Ficarás com cinco feixes de luz
Com omoplatas como esteios de madeira
Eu ergui todos os dias que fizeram o passado
Com uma cadeia de agrimensor,eu medi o tempo
E viajei através dele como se viajasse pelos Urais

Escolhi uma era que estivesse à minha altura
Rumamos para o sul, fizemos a poeira rodopiar na estepe
Ervaçais cresciam viçosos; um gafanhoto tocava,
Esfregando as pernas, profetizava
E contou-me, como um monge, que eu pereceria
Peguei meu destino e amarrei-o na minha sela;
E agora que cheguei ao futuro ficarei
Ereto sobre meus estribos como um garoto.

Só preciso da imortalidade
Para que meu sangue continue a fluir de era para era
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
Se a agulha veloz da vida
Não me puxasse pelo mundo como uma linha

Arseni Tarkovski in: Esculpir o Tempo, p.169.

sábado, 5 de junho de 2010

Kazimir Malevitch





















(...) A noção fundamental de elevação de um objeto cotidiano comum a obra de arte em Malevitch é que ser uma obra de arte não é uma propriedade inerente ao objeto; é o próprio artista que, ao apropriar-se do ( ou antes, de qualquer) objeto e colocá-lo em determinado lugar, transforma-o em obra de arte _ ser uma obra de arte não é uma questão de "por que", mas de "onde". E o que a disposição minimalista de Malevitch faz é simplesmente transformar-isolar- o lugar em si, o lugar vazio (ou muldura)com a propriedade protomágica de transformar qualquer objeto que se encontre em sua esfera em obra de arte. Em suma, não há Duchamp sem Malevitch: somente depois de o exercício da arte isolar o local/a moldura em si, esvaziar todo o seu conteúdo, é possível entregar-se ao ready-made. Antes de Malevitch, o urinol ainda seria um urinol, mesmo que fosse exposto na mais destacada galeria de arte.

Trecho extraído do ensaio: Matrix ou os dois lados da perversão. In: Slavoj Zizek op.cit. em postagens anteriores.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

CLUBE DE CINEMA DA BAHIA


SESSENTA ANOS DO CLUBE DE CINEMA DA BAHIA

Fundado em 30 de maio de 1950, o Clube de Cinema da Bahia teve a sua exibição inaugural e posse da primeira diretoria na noite do dia 26 de junho no auditório da Secretaria de Educação e Saúde, no Corredor da Vitória, hoje Museu de Arte da Bahia, contando na ocasião com a presença do Titular da pasta, o Secretário Anísio Teixeira.

O Clube de Cinema da Bahia deu início a sua atividade cinematográfica com o clássico do cinema francês “Os Visitantes da Noite”, de Marcel Carné.

Para comemorar o acontecimento histórico de 60 anos passados o Clube de Cinema da Bahia em colaboração com a DIMAS está trazendo de volta o filme “Os Visitantes da Noite”, para exibição às 19 horas no próximo dia 19 de junho na Sala Walter da Silveira.

No mesmo espaço Walter da Silveira, que personifica a própria história do Clube, haverá a partir de 25 de junho, durante 10 dias sempre às 19 horas, exibição de uma retrospectiva de clássicos que marcaram duas fases do Clube de Cinema da Bahia.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Tarkovski: o corpo contra o tempo (1)

Para o cineasta russo Andrei Tarkovski, em seu livro Esculpir o tempo , há uma diferença fundamental entre o cinema e a literatura: o primeiro trabalha "diretamente" com a vida, criando através de imagens reais vivenciadas pelo espectador. Por isso, para ele, o cinema não é um "sistema de signos", pois a imagem não "representa" nem "simboliza" nada. É sua própria presença na tela, com um ritmo de tempo, o que causa uma impressão em nós: "a imagem cinematográfica é essencialmente a observação de um fenômeno que se desenvolve no tempo".

Embora essa afirmação possa parecer demasiado óbvia, Tarkovski esclarece que esse "fenômeno" observado, no caso, é o resultado de uma construção do olhar do diretor e, portanto, difere dos outros fenômenos da vida. Chama a atenção ainda para o fato de que "as observações são seletivas: só deixamos que permaneça no filme aquilo que se justifica como essencial à imagem". E o olhar do diretor será o responsável por montar os fotogramas dentro desse ritmo, ou melhor: em cada fotograma, já está o ritmo do filme, de maneira que todo o material "observável" é uma construção.

No entanto, essa organização do material filmado, para Tarkovski, não se orienta por uma "simbolização" que exige uma decodificação por parte do espectador. Ao contrário, trata-se de um material de certa forma "bruto", no qual o trabalho de construção do cineasta se esconde por trás da "espontaneidade" das imagens. Acontece que, para Tarkovski, o tempo no filme se constrói "em forma de evento real", ou seja: "na forma de um evento concreto". E qual o trabalho do diretor em relação às imagens dispersas por uma quantidade de filme, de tempo filmado? Diz Tarkovski:
Qual é a essência do trabalho de um diretor? Poderíamos defini-la como "esculpir o tempo". Assim como o escultor toma um bloco de mármore e, guiado pela visão interior de sua futura obra, elimina tudo que não faz parte dela — do mesmo modo o cineasta, a partir de um "bloco de tempo" constituído por uma enorme e sólida quantidade de fatos vivos, corta e rejeita tudo aquilo que não necessita, deixando apenas o que deverá ser um elemento do futuro filme, o que mostrará ser um componente essencial da imagem cinematográfica.

Nesse trabalho artesanal, o diretor, então, rejeitaria a tentação de construir imagens que "signifiquem" algo específico ou simbolizem alguma coisa que o espectador deverá decifrar, para compor uma espécie de música com as imagens.
Tarkovski afasta-se, portanto, da tentativa de controlar o sentido e desvia-se de uma perspectiva racionalista ao não pretender dirigir os significados do filme. Trata-se, então, de uma perspectiva poética, em certo sentido, se entendermos o poético como uma forma de construção em que a racionalidade está subordinada uma forma de composição que privilegia o risco e o acaso, ou seja, uma criação do corpo.
Assim, a imagem cinematográfica, para Tarkovski, é composta fora de uma racionalidade dominadora dos sentidos. Desfaz-se a aparente contradição entre o trabalho de construção do diretor e o caráter "espontâneo" , "vivo" das imagens.

Essa "espontaneidade" da imagem cinematográfica se refere à não direção do sentido, e não a uma montagem totalmente casual.Em relação à poesia do cinema, também se desfaz outra aparente contradição, quando lemos outras passagens do livro de Tarkovski. Para ele, o cinema deve ser poético nesse sentido de uma composição quase musical, na qual os sentidos se dão pela "escultura de um bloco de tempo", cujas imagens são "reais", "concretas", longe de uma "simbolização" racional, mas capazes de provocar diversos significados no espectador, significados estes que compõem o que o autor do filme tentou criar não isento do risco e do acaso. Mas quando Tarkovski reivindica um cinema "poético" — distante das formas industriais e comerciais do cinema contemporâneo — , não entende com isso o uso de "recursos poéticos" no cinema, como a metáfora, por exemplo.

Escreve o cineasta russo:
"Cinema poético" é uma expressão que já se tornou lugar-comum. Através dele pretende-se indicar o cinema que, em suas imagens, afasta-se corajosamente de tudo o que é efetivo e concreto, semelhante à vida real, ao mesmo tempo em que afirma a sua própria coerência estrutural. Há, porém, um perigo à espreita quando o cinema se afasta de si próprio. Via de regra, o "cinema poético" dá origem a símbolos, alegorias e outras figuras do gênero — isto é, a coisas que nada têm a ver com as imagens que lhe são inerentes.
Ou seja, Tarkovski aponta para o risco de o cinema tornar-se "literário".
No caso da literatura, a palavra já é um signo: refere-se a algo específico, cujo significado já é compartilhado pelo grupo social que usa aquele código. Se digo "livro", todos os membros do grupo lingüístico que dominam esse código imediatamente formará uma imagem mental do objeto "livro". Mas para defini-lo melhor, tenho que apresentar mais especificações, para dizer se o livro é grande, ou tem capa amarela, ou é velho, ou de é ficção científica, ou é de um autor brasileiro, etc. Para Tarkovski, a imagem do livro é muito mais forte do que a palavra "livro". Ele busca não a intelectualidade da alusão, mas a emotividade da presença. Nesse sentido, aproxima-se do hai-kai, no qual a "observação direta" da vida se coloca como matéria da poesia.

Portanto, Tarkovski não busca o enredo, a descrição, mas uma atmosfera feita pela concentração de meios expressivos — não pela simbologia ou por referências culturais explícitas. O artista não deve desenvolver uma idéia explicada ao espectador, mas criar uma matéria viva, a da imagem cinematográfica. O problema para a literatura é que não há como mostrar essa "imagem" diretamente, a não ser através da palavra. Como trabalhar naquela "emotividade da presença" se a linguagem literária é alusiva, se refere a algo fora dela?
Por isso, essa outra aparente contradição de Tarkovski, a de considerar um gênero literário — o hai-kai — um exemplo para um cinema que se afasta da literatura. É que, para ele, o hai-kai é uma "observação em estado puro", sem alusões, sem símbolos além do essencial que é visto e sentido pelo poeta. Daí sua semelhança com a pintura. Tarkovski não quer empurrar para o espectador uma idéia, um caminho, mas apresentar uma situação, uma imagem capaz de provocar sua sensibilidade. Para ele, o cinema só pode ser poético. Isso não significa que a literatura deva ser "espontânea". Pelo contrário: para chegar a essa "simplicidade", a essa "pureza", o autor deve percorrer um caminho árduo, que é o de sua própria fidelidade, sua própria descoberta, sem render-se ao comércio ou às ideologias da moda. Se o autor for fiel a si mesmo, encontrará um público que, ainda que pequeno, compreenderá sua obra e partilhará suas reflexões.
Essa postura de Andrei Tarkovski me leva a pensar em duas questões em discussão na arte contemporânea: por um lado, a questão da subjetividade na criação; por outro, a idéia de vanguarda.

Em relação à subjetividade, houve períodos na arte em que ela foi supervalorizada, como no Romantismo, por exemplo. Por outro lado, na arte contemporânea muitas vezes o que foi visto como "inspiração" ou "espontaneidade" foi criticado como uma leviandade do artista, que estaria fugindo do trabalho com a linguagem, sobre a linguagem.
A partir de Tarkovski, podemos pensar que a subjetividade é parte fundamental do trabalho criador. Diz ele:
A inspiração do artista forma-se em algum lugar no mais profundo recôndito de seu "eu". Não pode ser ditada por considerações práticas exteriores; não pode deixar de se relacionar com sua psique e sua consciência; ela nasce da totalidade da sua visão do mundo.

Essa visão do mundo, portanto, não se reduz à subjetividade, mas a engloba na criação. Isso também é apontado por outros diretores. Por exemplo, numa entrevista com Robert Bresson realizada por Michel Delahaye e Jean-Luc Godard, este último se pergunta por que cortar ou não cortar o filme em determinado momento da montagem, ou seja, se pergunta pelo acaso. Bresson concorda com Godard, dizendo: "Acho, como você, que é uma coisa que deve tornar-se puramente intuitiva. Se não é intuitiva, é má". Essa intuição, no entanto, não está desligada de um trabalho. Como afirma Bresson na mesma entrevista, "eu acredito muito no trabalho intuitivo. Mas naquele que foi precedido por uma longa reflexão. E especialmente uma reflexão sobre a composição". Na mesma entrevista, Bresson afirma: "Sou pintor".

Tarkovski não acredita numa suposta racionalidade que dirigisse a criação ou controlasse seus significados. Em relação a seus filmes, ele declara:
Nos últimos tempos, tenho participado de muitos debates com os espectadores, e tenho notado que, ao afirmar que não existem símbolos ou metáforas em meus filmes, eles mostram uma incredulidade patente. Continuam a perguntar, repetidamente, qual é, por exemplo, o significado da chuva em meus filmes; por que a chuva figura em um filme após o outro, e, também, por que as reiteradas imagens de vento, fogo, água? Na verdade, não sei como lidar com perguntas desse tipo.

O contrário dessa idéia é, por exemplo, a noção de João Cabral de Melo Neto de que sua poesia "não se faz com emoção", mas é um objeto construído. Essa idéia de construção e de trabalho sobre a linguagem é cara às vanguardas em geral. Para os poetas concretistas, por exemplo, a literatura de qualidade é aquela cuja reflexão em torno da linguagem e seu trabalho de invenção seriam fatores primordiais, sendo secundária qualquer marca subjetiva no texto. Essa "consciência da linguagem" ou da "forma" marcou o trabalho de criação das vanguardas, de modo que muitas delas quiseram realizar uma operação metalingüística. Além dessa crença na racionalidade, a idéia de vanguarda também está associada ao "avanço" das formas artísticas, no sentido de dotá-las de um sentido transgressor das maneiras de criar e consumir a arte. Neste sentido, a vanguarda é duplamente utópica: porque acredita no futuro — e daí a intervenção no público, daí uma arte que provoque a reação do público -, e porque crê que o manuseio da forma se baseia numa racionalidade teórica ou de princípios. Além disso, a vanguarda sempre esteve associada a um exercício de poder, o de conquistar espaço através de uma nova estética — como se propôs a Poesia Concreta — e de lutar pela hegemonia dessas linguagens.

Nada mais longe da vanguarda do que Tarkovski. Além de afirmar explicitamente que "toda idéia de vanguarda em arte é destituída de sentido", o cineasta russo também escreve em certo momento do livro Esculpir o Tempo:
[...] cabe ao artista elaborar princípios e romper com eles. É impossível que existam muitas obras de arte que encarnem com precisão a doutrina pregada pelo artista. Em regra, uma obra de arte desenvolve-se numa complexa interação com as idéias teóricas do artista, que não podem abrangê-la na sua totalidade; a estrutura artística é sempre mais rica do que algo que possa ser encaixado em um esquema teórico.

Isto me faz pensar na questão da subjetividade no texto. Já se tentou expulsá-la (os poetas concretistas, por exemplo). Mas encarar a subjetividade não é se entregar a uma "espontaneidade" qualquer, mas sim dar importância à criação artística que não passa somente pela racionalidade, e que pode ser um caminho valioso para a "fidelidade" e a "autenticidade" buscadas por Tarkovski.
Se a literatura é uma instituição que cobra dos autores uma coerência, um sentido e, sobretudo, uma consciência do que está propondo em cada texto, se exige dos autores muitas vezes uma "explicação" da obra e uma engenharia do texto dominada racionalmente, então, voltando a Tarkovski, trata-se de abandonar a literatura.

Se a indústria cinematográfica calcada no lucro exige uma história, um enredo, uma coerência explicável pelos críticos, uma produção que seduza o espectador, Tarkovski reivindica para o cinema o trabalho com a subjetividade, com suas imagens da infância, suas marcas pessoais, sua recusa em utilizar "símbolos" a serem "decifrados" pelo espectador. Em meio à massificação e à homogeneização produzidas pela mídia, o cineasta russo procura uma singularidade capaz de entregar ao espectador o fruto de uma busca pessoal, mas que compartilha com seu público as mesmas preocupações sobre a condição humana no mundo atual.

Essa idéia de singularidade foi apontada por Félix Guattari como uma das marcas de resistência possíveis ao processo global de homogeneização da cultura pelos discursos veiculados principalmente pela mídia, no qual o trabalho artístico poderia ir contra a corrente, no sentido de ampliar a experiência do ser humano fora da mídia e do que Roland Barthes denominou de Doxa (o discurso da naturalização das coisas).

Ser escritor, nesse sentido tarkovskiano, passa, então, pela busca de uma linguagem que fuja às determinações da crítica, da moda, da mídia e dos discursos hegemônicos. Trata-se de uma linguagem singular, não porque se pretenda "original" ou "nova", mas sim porque não se adapta aos esquemas do que é considerado "literatura". Um texto assim não pode ser enviado a concursos literários, pois estes insistem na divisão em gêneros: "poesia", "conto", "romance", etc. Um texto assim não fala o que se quer ouvir de novo, mas fala o silêncio que está abafado pelo acúmulo de ruídos lançados diariamente pela mídia.

Essa busca pela singularidade pretende o afastamento do comum pela margem, fora da literatura, fora da "vanguarda", assim como o cinema de Tarkovski foge da indústria cinematográfica. Neste sentido, uma poesia "tarkovskiana" teria que se afirmar como fora da tradição, fora da intertextualidade, ou melhor: o poeta já não se definiria pelo lugar na instituição (na Literatura), mas por sua obscenidade.
Esse lugar, portanto, é de tensão. Orson Welles, em uma entrevista a André Bazin, Charles Bitsch e Jean Domarchi, afirma que trabalhava em meio a uma ambigüidade insolúvel, entre a descrença nos sistemas de pensamento (religiosos, políticos, etc.) e o impulso por acreditar em algo maior do que o ser humano, em relação ao qual teríamos que trabalhar.

Diz Orson Welles sobre a generosidade:
Para mim, é a virtude essencial. Odeio todas as opiniões que privam a humanidade do menor dos seus privilégios; se uma crença qualquer exige que se renuncie a algo de humano, detesto-a . Sou, pois, contra todos os fanatismos, odeio os slogans políticos ou religiosos. Detesto todo aquele que quer suprimir uma nota da escala humana: deve-se em qualquer altura poder fazer vibrar todos os seus acordes.
Dessa posição de uma certa marginalidade, Orson Welles trabalha num espaço de tensão pelo incômodo, afirmando: "O maior perigo para um artista é encontrar-se numa posição confortável: é seu dever encontrar-se no ponto máximo de desconforto, procurar esse ponto".

Essa mesma posição é compartilhada por Tarkovski, para quem a honestidade e a autenticidade em relação à sua própria criação supõem não fazer concessões ao público, ao mercado ou à indústria cinematográfica. Nesse sentido, podemos ler a obra de Tarkovski como uma afirmação de um certo cinema — que, na falta de uma palavra mais precisa, ele chamou de "poético"- singular, que busca a especificidade da linguagem cinematográfica. Mas, de um certo modo, poderíamos ler sua postura como uma defesa da obra de arte contra tudo o que possa desviá-la de seu caráter artístico. À sua maneira, o cineasta russo está buscando uma definição de arte, uma pesquisa dentro do campo estético.
Se retomarmos algumas formulações do teórico russo Mikhail Bakhtin, veremos que elas parecem balizar, de certo modo, o pensamento de Tarkovski, embora o cineasta não faça referência ao teórico.

Na obra Questões de literatura e de estética , Bakhtin está preocupado em definir a especificidade da obra literária como obra de arte e, portanto, em repensar a metodologia de análise das obras. Uma das questões levantadas por Bakhtin é exatamente a da forma da obra e a excessiva preocupação teórica em definir a obra de arte a partir de um formalismo extremo, o que Bakhtin chamou de "supervalorização do aspecto material". Para ele, a "estética material", na esteira de uma visão que pensa a obra como algo puramente "estético" a partir de sua estrutura formal, não dá conta de explicar a complexidade do trabalho artístico.

Escreve Bakhtin:
A estética material não é capaz de fundamentar a forma artística.
A posição fundamental da estética material, no que concerne à forma, suscita uma série de dúvidas e, no conjunto, parece inconvincente.
A forma, compreendida como forma do material somente na sua definição científica, matemática ou lingüística, transforma-se de um certo modo na sua ordenação exterior, isenta de momento axiológico. O que permanece totalmente incompreensível é a tensão emocional e volitiva da forma, a sua capacidade inerente de exprimir uma relação axiológica qualquer, do autor e do espectador, com algo além do material, pois esta relação emocional e volitiva, expressa pelo tamanho — pelo ritmo, pela harmonia, pela simetria e por outros elementos formais — tem um caráter por demais tenso, por demais ativo para que se possa interpretá-lo como restrita ao material.

Se a obra de arte se apresenta como algo material — e parte de sua constituição e inclusive de sua relação estética com o espectador passa necessariamente por esse material -, não se restringe a ele. Toda a realidade em seus aspectos cognitivos, emotivos, históricos, ideológicos, etc., perpassa o material da obra e é mais amplo do que ele. Como escreve Bakhtin: "A obra de arte compreendida como material organizado, como coisa, só pode ter significado como estimulador físico dos estados fisiológicos e psíquicos, ou então deve receber uma designação prática e utilitária qualquer". O que Bakhtin valoriza, para além da materialidade da arte e da racionalidade intencional, é a presença do corpo.

Não só o autor da obra emprega o corpo — entendido aqui como o conjunto de sensações, intuições e razões que o vinculam à realidade e aos aspectos cognitivos em relação a ela -, como também o espectador ao relacionar-se com a obra. De forma que a "fruição estética", se pensarmos a obra como realmente artística, só ocorre verdadeiramente se essa relação com a realidade passa através do material, mas não se esgota nele. Nada mais longe, portanto, do pensamento de Bakhtin, do que a idéia da "arte pela arte" ou da "arte pura". O que o teórico russo torna mais complexo e problemático é o estatuto mesmo da arte. Aí entra a questão do conteúdo. Para Bakhtin, "é o conteúdo da atividade estética (contemplação) orientada sobre a obra que constitui o objeto da análise estética".

Assim como não se pode, portanto, dissociar a forma do conteúdo, tampouco se podem separar a razão da emoção, o corpo do intelecto, a vida da obra. Neste sentido, podemos ler o pensamento de Tarkovski como uma tentativa de recuperação do corpo sobre o excessivo formalismo no cinema, seja por razões teóricas, seja por razões puramente comerciais (ou utilitárias, como aponta Bakhtin).
A crítica de Tarkovski à racionalização da "mensagem" cinematográfica — como quando impugna a idéia de montagem de Eisenstein por seu caráter simbólico — vai ao encontro da crítica bakhtiniana do formalismo da crítica. Assim como Tarkovski critica a transposição da literatura para o cinema, Bakhtin critica a "literatura" como obra cujo conteúdo não é intrínseco à forma, mas sim um dado "acrescentado", moldado numa forma de maneira artificial com base numa racionalidade do autor.

Escreve Bakhtin:
Existem obras que realmente não têm nada a ver com o mundo, mas somente com a palavra "mundo" num contexto literário, obras que nascem, vivem e morrem nas folhas das revistas, sem ultrapassar as páginas das edições periódicas contemporâneas e sem nos conduzir a nada que se encontre além dos seus limites. O elemento ético-cognitivo do conteúdo, que apesar de tudo lhes é indispensável como elemento constitutivo da obra de arte, não é haurido diretamente por elas do mundo do conhecimento e da realidade ética do ato, mas das outras obras de arte, ou é construído por analogia com elas.

Esse mundo real, que faz parte da obra de arte como outra realidade, mas que mantém com o real as relações forjadas pelo autor da obra de arte — através de uma materialidade, sim, mas que a ultrapassa para estabelecer vínculos cognitivos, afetivos, etc. -, em suma, um mundo que passa pelo corpo, esse real não se determina na obra nem em sua experiência estética como dado material planejado e controlado intelectualmente pelo autor; senão, seria uma obra vazia, formalista. Neste sentido é que podemos ler o pensamento de Tarkovski como uma problematização do fazer cinematográfico, como uma busca dessa obra de arte que não se afasta do corpo, que não quer se impor ao espectador como uma verdade — formalista ou não -, mas que pretende problematizar a própria linguagem como meio de estabelecer uma relação, um diálogo com o espectador fora das razões comerciais. Portanto, quando Tarkovski fala em "observação direta" do real — referindo-se ao hai-kai -, não está defendendo um cinema "documental", mas sim a liberdade de se contar com o acaso da ação do corpo.
Cinema de autor, sim, mas não de autoridade (baseada no currículo do diretor, em suas idéias teóricas ou num formalismo), cinema artístico no sentido de integrar os diversos elementos da vida e da linguagem para construir um objeto que pode ser equívoco, mas verdadeiro — não no sentido ideológico, mas no sentido de um fazer artístico aberto às indefinições do ser humano-; cinema, enfim, que se afasta de um discurso intelectual que pretende exercer o poder. Neste sentido, creio que o cinema proposto por Tarkovski se aproxima mais do feminino, em oposição à masculinidade do poder.

Como disse Orson Welles:
Os únicos bons artistas são femininos. Não admito a existência de um artista cuja personalidade dominante seja masculina. Isto não tem nada a ver com a homossexualidade; mas, intelectualmente, um artista deve ser um homem com aptidões femininas. Como também apontou Ernesto Sábato ao referir-se ao trabalho de criação artística como profundamente feminino em seu caráter de não-dominação, não-exercício do poder ou da conquista, mas de problematização da existência humana. É nesse sentido que vislumbro o cinema e o pensamento de Andrei Tarkovski, que parece estar dizendo uma frase de Clarice Lispector: "Eu não sou intelectual, eu escrevo com o corpo" .
(1) Texto disponível em http://renatotapado.com/artigos/tarkovski-o-corpo-contra-o-tempo/.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Esculpir o Tempo























Retrato de uma Jovem, provavelmente de Leonardo da Vinci, no filme O Espelho.

"Amo muito o cinema. Eu mesmo ainda não sei muita coisa: se, por exemplo, meu trabalho correspoderá exatamente à concepção que tenho, ao sistema de hipóteses com que me defronto atualmente. Além do mais, as tentações são muitas: a tentação de lugares-comuns, das idéias artísticas dos outros. Em geral, na verdade é tão fácil rodar uma cena de modo requintado, de efeito para arrancar aplausos...
Mas basta voltar-se nessa direção e você está perdido. Por meio do cinema, é necessário situar os problemas que, ao longo dos séculos, foram objetos da literatura, da música e da pintura. É preciso buscar, buscar sempre de novo, o caminho, o veio ao longe do qual deve mover-se a arte do cinema"
Trecho da contra-capa de Esculpir o Tempo, Andrei Tarkovski ( 1932- 1986).

terça-feira, 18 de maio de 2010

Nostalghia_Andrei Tarkovski























Continuando a revisitar a obra de Tarkovski encontrei uma leitura interpretativa de Nostalghia (1983), realizada por Slavoj Zizek que nos pareceu uma abordagem inédita. Slavo Zizek refere-se ao papel da figura feminina representada por este realizador ao qual considera marcado pela oposição mulher-mãe. Detendo-se na representação da figura da mulher nesta filmografia, chama atenção para questões emblemáticas na obra tarkovskiana. Seguramente que a presença da mulher neste filme é marcado por metáforas , além disso Tarkovski dedica-o à sua mãe. Entre várias cenas onde prevalece o diálogo mulher-mãe, há uma de especial beleza, que me chamou atenção. Passa-se no interior de uma catedral no norte da Itália, em que a tradutora que acompanha o escritor russo, Eugênia, diz ao sacerdote que não sabe rezar nem sequer sabe ajoelhar-se, seguem-se imagens que apresentam uma iconografia religiosa com a presença de Nossa Senhora das Dores, envolvida por um manto que se abre na altura do ventre de onde saem revoadas de pássaros tornando o ambiente repleto de luzes e gorjeios. A câmara realiza um longuíssimo plano, com velas acesas e trinado de pássaros, cena de inspiração espiritual e mística (não consegui ainda localizá-la no youtube). Eugênia, diz Zizek, é não-mãe, a mulher que apenas materializa uma fantasia masculina. Zizek está trabalhando, como sabemos, com uma perspectiva psicanalítica e como toda interpretação, revela um ângulo de análise que não exclui outras abordagens, até mesmo novas leituras com perspectivas essencialmente de caráter estético e/ou teológicas, por exemplo (1). A seguir, trechos de Zizek.

“(...) o universo de Tarkovski encontra sua expressão mais clara em Nostalgia, cujo herói, o escritor russo que deambula pelo norte da Itália em busca de manuscritos de um compositor russo do século XIX que ali vivera, está dividido entre Eugênia, a mulher estérica, um ser carente que tenta desesperadamente seduzi-lo para obter satisfação sexual, e sua memória da figura maternal da mulher russa que abandonara. O universo de Tarkovski é fortemente centrado no homem e marcado pela oposição mulher-mãe. A mulher provocante e sexualmente ativa (cuja atração se manifesta numa série de códigos, como os cabelos longos e despenteados de Eugênia em Nostalgia) é rejeitada como uma criatura histérica e falsa, e posta em contraste com a figura maternal, com seu cabelo preso e penteado. Para Tarkovski, quando uma mulher aceita o papel de ser sexualmente desejável, está sacrificando o que tem de mais precioso, a essência espiritual de seu ser; ela desvaloriza a si própria e assume uma existência estéril. O universo de Tarkovski está impregnado de uma repugnância mal dissimulada pela mulher provocante; e esse figura, inclinada a incertezas histéricas, ele prefere a presença tranqüilizadora e estável da mãe. Essa repugnância é claramente visível na atitude do herói (e do realizador) perante a longa e histérica avalanche de acusações contra ela proferida por Eugênia antes de abandoná-lo.

É dentro desse contexto que devemos explicar o recurso de Tarkovski a planos longos e estéticos (ou planos que permitem apenas uma panorâmica lenta ou um travelling). Esses planos podem funcionar de dois modos opostos, ambos presentes em Nostalgia: ou se baseiam numa relação harmoniosa com seu conteúdo, marcando a reconciliação espiritual tão ansiada e encontrada, não na elevação gravitacional da Terra, mas na rendição completa a sua inércia (como no plano mais longo de toda a sua obra, em que o herói russo atravessa com lentidão extrema, levando uma vela acesa, a piscina vazia e gretada, a prova absurda que o defunto Domênico lhe ordena que realize para conseguir sua salvação; é significativo que, no final, quando o herói atinge o outro lado da piscina, após uma tentativa fracassada, ele caia morto, pelo de satisfação e sentindo-se reconciliado); ou, o que ainda é mais interessante, assentem-se num contraste entre forma e conteúdo, como o longo plano da explosão histérica de Eugênia contra o herói, uma mistura de gestos sedutores sexualmente provocantes e observações de desprezo. Nesse plano, parece que Eugênia protesta não só contra a indiferença fatigada do herói, mas, de certo modo, também contra a indiferença tranqüila do longo plano estático, que se mostra imperturbável perante sua explosão (...)

O problema com Tarkovski é sua opção evidente pela interpretação jungiana, segundo a qual a viagem exterior é apenas a exteriorização e/ou projeção da viagem iniciática interior para as profundezas da psique.

Nota:

(1) A obra de referência de Zizek, Jacques Lacan em A ética da psicanálise, é ampliada pelas leituras de Judith Butler, Jacques-Alain Miller, entre outras, voltados para a temática feminina.