terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

andreas dresen: mestre da ironia













País Silencioso ( Stilles Land), 1992
Andreas Dresen


RDA, outono de 1989.
O filme mostra a importância da televisão via satélite, milhares de telespectadores em busca das imagens clichés da felicidade capitalista e as dificuldades de um elenco de atores da RDA em encenar uma peça de Samuel Beckett, Esperando Godot no momento em que há mudanças decisivas na Alemanha com a Queda do Muro, novembro de 1989. Encenar Samuel Beckett naquelas circunstâncias representa uma tomada de posição dos atores frente aos acontecimentos da Queda do Muro.
Ao começar a nova temporada artística num teatro de província alemão decadente, um diretor apresenta a seu elenco um novo colega. O jovem diretor, Kai Frinke, pretende encenar a peça Esperando a Godot de Samuel Beckett. Na primeira reunião da companhia se produz um escândalo: um ator interrompe o discurso do diretor pedindo que se diga algo sobre o que acontece na Hungria e na embaixada de Praga. É tempo em que na embaixada de RFA, em Praga e na Hungria, há numerosos fugitivos da RDA tentando conseguir permissão de saída do Oeste. O diretor e o Secretário do Partido não se envolvem com o incidente. Kaí Frinke se põe a trabalhar com entusiasmo sem deixar-se intimidar pelas circunstâncias. Severas dificuldades causam falta de entusiasmo aos atores da companhia. Os ensaios são pesados e exaustivos. Para o diretor o paralelo entre a situação política e a peça marca o momento: trata-se então de ensaiar e sobretudo apressar a situação desesperada de espera. Quando o protagonista principal, Horst, lhe pergunta onde existem saídas, não sabe responder. Os meios de comunicação da RDA minimizam a agudez da situação e investem contra o Oeste. Os atores buscam emissões da “televisão ocidental” no teatro afetando o trabalho dos ensaios. A Kai Frinke não interessa como se desenvolve a situação atual, conta a encenação. Mas concorda em participar de uma resolução do elenco que exige uma discussão pública e com tal motivo é incluída uma apresentação pública com o escasso público do teatro. A situação política se agrava. Os cidadãos se manifestam, e organizam matinés nas igrejas. Theo vai a Berlim para conseguir uma antena de TV e é detido temporariamente. Egon Krenz, o sucessor de Erich Honecker como Secretário Geral do Partido Socialista Unificado da Alemanha-SED, aparece na TV e fala das mudanças. O fato induz Kai Frinke tenta desenvolver uma concepção mais real da sua encenação. Antes da estréia, 9 de novembro, cai o Muro de Berlim. Uma avaria impede que o elenco se diriga à Berlim num microônibus. A peça estréia afinal, poucos espectadores aparecem, as pessoas tem outros interesses. A ajudante de direção deixa o elenco e vai para Hamburgo e a peça é retirada de cartaz. Kai Frinke decide quedar-se.
As formas de participação nos acontecimentos políticos poderiam se circunscrever às encenações ou deveriam ir mais além em manifestações públicas e atos de protestos que demonstrassem as posições dos atores? Quais os limites de participação? É o diretor jovem da peça, o Kai Frinke, um alienado político por não envolver-se ativamente nas ações de protestos públicas e voltar-se para o mundo do teatro? Qual o significado de encenar-se Samuel Beckett, Esperando Godott numa conjuntura de conflitos e de mudanças da vida política e econômica da Alemanha? O filme País Silencioso traz uma mensagem de inquietação para um tempo sem respostas.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

A ORIGEM DOS MUNDOS










The origin of the world. L'Origine du monde,1866. Paris. Musée D'orsay.

Depois de um longo silêncio em que a luta pela sobrevivência afastou-me das postagens sobre a cultura cinematográfica, trago a esta página o texto do Jorge Coli. Leitora permanente de seus informados e analíticos textos editados na Folha de São Paulo pude perceber, pela resposta ao meu e-mail, que se trata de um interlocutor que nos honraria em participar do diálogo. A seguir a transcrição de seu texto.

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A mostra Courbet é muito bela: beleza da matéria, dos tons graves e surdos, do silêncio meditativo sobre os mistérios telúricos, vegetais ou corpóreos
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
T ermina em Paris uma retrospectiva do pintor Gustave Courbet [1819-77]. Ela irá agora para o Metropolitan Museum de Nova York [de 27/2 a 18/5]. Mostras monográficas importantes reúnem quadros dispersos nos museus do mundo inteiro: é um grande prazer vê-los e compará-los. Têm ainda o sentido de fazer um balanço, de renovar a compreensão, a intuição, do papel que representam hoje esses grandes mestres. As obras de arte possuem um núcleo estável no qual se entrelaçam as pulsões criadoras. No entanto, elas se modificam. Primeiro, fisicamente: o material envelhece e o aspecto se altera com o tempo. Há também deslocamentos que mudam a percepção e afetam o olhar: caso evidente é o das obras religiosas transportadas para os museus. São mutações que diminuem certas características para ampliar outras.
As obras sofrem outras perturbações, originadas pela sucessão dos olhares que, de geração em geração, pousaram sobre elas. Nunca são vistas "nelas mesmas"; são sempre, por assim dizer, traduzidas para a cultura de quem as contempla. Textos críticos, teóricos, históricos sintetizam as sensibilidades de cada geração. Trata-se de enfoques que aderem à obra. Mesmo quando negados ou contestados, continuam pressupostos, ativos e, de um certo modo, passam a fazer parte da própria criação.

Seixo
A retrospectiva Courbet é muito bela. Beleza da matéria, dos tons graves e surdos, do silêncio meditativo sobre os mistérios telúricos, vegetais ou corpóreos. Beleza da gravidade pictural que vai além da idéia, do conceito, da formulação lógica. Courbet escreveu uma vez: "Faço as pedras pensarem".
Nem ele nem o espectador pensam sobre a pedra, é a pedra que pensa, exatamente como no poema de João Cabral de Melo Neto: "Uma educação pela pedra: por lições;/ Para aprender da pedra, freqüentá-la;/ Captar sua voz inenfática, impessoal (...) Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,/ Uma pedra de nascença, entranha a alma".

Inflexões
Os quadros se sucedem nas salas. São paisagens, marinhas, naturezas-mortas, nus femininos, cenas de caça. São as telas que representam a nascente do rio Loue, que atravessa a Franche-Comté, região em que Courbet nasceu, se criou, e à qual permaneceu sempre ligado. Tudo admirável. Porém, se esse aspecto mais fundamente metafísico vem sublinhado, o outro Courbet, o Courbet político, militante socialista, é reduzido a quase nada nesta retrospectiva.
Muitos quadros relevantes, com traços sociais ou de interpretação problemática, estão ausentes: "As Peneiradoras de Trigo", "O Incêndio", "Os Lutadores", "O Mendigo", a singular remadora, em maiô contemporâneo, sem falar dos "Quebradores de Pedra" e do "Retorno da Conferência", obras destruídas, mas que causaram grande impacto quando expostas pela primeira vez e que subsistem em esboços e gravuras. Talvez os curadores busquem evitar as interpretações políticas que, de Proudhon a estudiosos atuais, marxistas e feministas, ingleses ou americanos, têm, em grande parte, dominado as análises sobre o pintor.

Fresta
Em 1977, comemorando o centenário da morte de Courbet, houve outra exposição importante. Contra a vontade dos curadores, ordens poderosas proibiram, por obscenidade, a apresentação do quadro "A Origem do Mundo", que figura um sexo feminino em close. Hoje, é o ponto mais alto da mostra. À volta dele, na sala, gravitam as mais belas mulheres nuas que o artista nos deixou.