sexta-feira, 27 de junho de 2008

Estudos Culturais, Racismos e Cinema






















Estas breves anotações realizadas durante o Curso Crítica da Cultura/Estudos Culturais do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade/Facom-Ufba, sob a coordenação da Profa. Dra. Eneida Leal Cunha, tem o objetivo de colocar algumas inquietações dando continuidade ao debate e refletir pontos de vista e incursões ainda em elaboração, própria de quem deseja aproximar-se de um campo de estudo tenso, não hegemônico e, portanto, desafiante.

É conhecido de que a questão multicultural, termo utilizado universalmente e que se expandiu de forma oscilante e repleta de significados, requer inúmeros cuidados ao ser utilizado e requer uma crítica que possibilite a desconstrução do termo-chave (Hall, S. 2003). Não temos intenção de repetir as inúmeras críticas e advertências que os pais criadores dos Estudos Culturais já fizeram, com propriedade, apontando os inúmeros conflitos e disputas internas neste território, tendendo a diluí-los e confrontá-los noutros discursos que insistem em manter sua prevalência e autonomia (Hall, S. 2003). Neste debate, queremos enfatizar a necessidade de uma armação teórica para desmontar e operar sobre o conhecimento, mostrar como se estruturam as hierarquias de poder, evidenciar e desmontar os diferentes discursos e seus processos de manutenção de dominação e hegemonia, marcando os espaços relevantes e de indispensabilidade da teoria, leia-se práxis, buscando fazer prevalecer uma teoria que produza efeitos no real (Bhabha, H. 1998).

Operando nesta direção, em 1975-76, durante o Curso no Collège de France, Michel Foucault apresenta uma brilhante aula sobre a teoria clássica da soberania que serve de quadro para as análises não só da guerra, mais particularmente, da guerra das raças. Mostra como durante todo o século XVIII o tema raça vai ser retomado e ressignificado, como algo diferente do racismo de Estado, em tempos modernos. O tema do poder teorizado por Foucault nos oferece base para compreensão dos diferentes mecanismos de aparecimento, distinção, hierarquização e qualificação das raças consideradas “puras” e “superiores” em contraposição às” impuras” e “inferiores”, nos permitindo pensar a questão do racismo nas distintas sociedades modernas. A construção da racialidade e o papel estruturante do racismo nas sociedades modernas encontra nesta análise alguns elementos chaves para compreensão de um tema recorrente nos Estudos Culturais (Foucault, M. 1999). Falamos do debate da etnicidade e racialidade em contextos multiculturais internacionais e nacionais e como se apresentam nas sociedades modernas.

O racismo, condição indispensável e vital para exercer o direito da vida e da morte dos súditos pelo efeito da vontade soberana, segundo a teoria clássica de soberania vigente no século XIX, baseava-se na relação do tipo biológico “quanto mais às espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados”, a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior, do degenerado, do anormal, constituiu-se em discurso vital para a defesa da vida mais sadia e pura nas esferas políticas que se desenvolveram em grande parte nos séculos XVIII e XIX. Problemas da produção, da natalidade, da morbidade, de vida, acentuadas no início do século XX vão requerer a introdução de mecanismos mais racionais e seguros instalando uma nova tecnologia de poder, o biopoder, diz Foucault. Essa biopolítica ao se instalar, estabelece mecanismos de regulações globais que se exercem através de uma série de instituições, aparelhos de disciplina e de Estado. Neste quadro, o racismo nas sociedades modernas que funciona
e se desenvolve baseado no biopoder, apresenta características mais profundas do que uma velha tradição e uma nova ideologia, não está ligado apenas às mentalidades, vincula-se, especificamente, à técnica do poder. Para Foucault, os Estados considerados assassinos são os mais racistas, ver, por exemplo, a destruição das outras raças como uma das faces do nazismo que generalizou o biopoder e o direito soberano de matar. A sustentação do discurso racista nesta perspectiva, ganha modalidades diferentes a depender de conjunturas históricas e diversidades de arranjos sociais e culturais apresentados pelas sociedades modernas.

Os discursos colonialistas como aparatos de poder tem-se constituído pontos da agenda de estudos de conhecidos e interessados professores/pesquisadores dos Estudos Culturais, nas suas diferentes modalidades e interesses. São conhecidas as incursões em profundidade dos estudos de Eduard Said examinando os discursos europeus que constituem “o Oriente” como uma zona do mundo unificada em termos raciais, geográficos, políticos e culturais. Embora se considere o pioneirismo e originalidade desta teoria, a articulação da questão do desejo e do poder, tomando a leitura do estereótipo em termos de fetichismo, amplia-se e avança nas análises empreendidas por Homi Bhabha, ao analisar a questão dos estereótipos e do racismo. Nestas, são demonstradas que o estereótipo, a discriminação e o discurso do colonialismo são estratégias discursivas e psíquicas que precisam ser mais mapeadas em suas funções e modos de representações complexos (Bhabha, H. 1998).

O exame dos discursos racistas em diferentes narrativas tem fundamentado não só estes estudos como tem demonstrado a visibilidade do tema numa variedade de suportes encontrados tanto na literatura nacional como internacional. No Brasil, entre outros, a coleção História da Vida Privada oferece um conjunto de exemplos de como o tema da raça além de ser um tema tabu, tem prevalecido como idéia de branqueamento não só na literatura de ficção, como em contos para crianças, nos discursos políticos que circularam, principalmente, nos anos 30. Nestes, em grande parte, utiliza-se o processo de miscigenação para sustentar os argumentos da condição de degenerescência da raça. O conceito de raça e harmonia racial aparece nesses discursos de forma estabilizada e naturalizada de forma a negar o preconceito. Representação de um tipo particular de racismo, denominado por alguns autores como racismo silencioso (Schawrcz, L. 1998). Outros trabalhos, por sua vez, tem-se ocupado em demonstrar a construção do discurso colonial que predomina na produção da imagem eurocêntrica (Stam, R. 2006).

Sobre as facetas do racismo silencioso, Kabengele Munanga acrescenta: O racismo brasileiro na sua estratégia age sem demonstrar a sua rigidez, não aparece à luz; é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente em seus objetivos. Essa ideologia é difundida no tecido social como um todo e influencia o comportamento de todos_de todas as camadas sociais e até mesmo as próprias vítimas de discriminação racial. Discutir a questão da pluralidade étnica, e em especial da sua representação nas instituições públicas e nas demais instituições do país, ainda é visto como um tabu na cabeça de muitas pessoas, pois é contraditória a idéia de que somos um país de democracia racial (Munanga, K. 1996:215).

A cinematografia alemã possui um expressivo conjunto de obras que discutem a questão dos estereótipos e discriminações raciais, situando o racismo de Estado como uma poderosa máquina de triturar corpos e fabricar as raças arianas superiores e megalomaníacas. Um primor de exemplo encontra-se na trilogia de Hans-Jürgen Syberberg, denominado Hitler, um filme da Alemanha (Hitler, Ein Film Aus Deutschland, 1977). O filme utiliza três personagens marcantes- Karl May, Richard Wagner e Adolf Hitler- e desmonta a “encenação” Hitler, a “arte” e o espetáculo do nazismo, das grandes concentrações de massa, dos desfiles, da propaganda e do cinema. Através de uma colagem que se aproxima dos princípios estruturais da música, Syberberg tenta explicar Hitler e o nacional socialismo em suas raízes e contextos mitológicos, confrontando-o com os marcos da história e da cultura alemã, num trabalho de poderosa originalidade e de intenções aterradoras, como comentam seus críticos, em ensaios publicados em The New York Rewiew of Books, 21 de fevereiro de 1980 (consultado em texto impresso). A película compõe-se de quatro partes, com sete horas de duração, repleto de densas referências à história cultural da Alemanha, em que o lado subjetivo do fascismo, as orientações místicas, os irracionalismos são permanentes no discurso do cineasta que cria um “espetáculo no tempo presente” como assinala Susan Sontag na sua crítica ao Hitler de Syberberg.

Devo finalizar essas breves notas, uma vez que o instrumento de divulgação na web via blog requer limites de espaço. Vários fios ficaram soltos. Gostaria de convidar a quem se aventurar pela leitura destas anotações, para o contraponto necessário ao diálogo, elos que possibilitam melhores interpretações.

Referências citadas:
1.HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
2.BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 1998.
3.FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
4.STAM, Robert e SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
5.SCHARCZ, Lília. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
6.MUNANGA, Kabengele. O negro recusa a assimilação. In: Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986.
7.Goethe-Institut Salvador-Bahia. Seminários On Line. Hans-Jürgen Syberberg. Aula 3. Outubro de 2007. Cf. HTTP://www.goethe.de/ins/br/sab/pro/semin5/s5aula3.htm