segunda-feira, 19 de julho de 2010

KIESLOWSKI






















Estou a rever o Decálogo I buscando, desta vez, dialogar com o texto de S. Zizek sobre o tema (1).
O belo filme de imagens singulares sugere uma reflexão sobre a vida, ainda que comoventes imagens da morte de Pawel, o garoto que pergunta sempre ao pai “o que é a morte” e “o que permanece depois da morte” pareça ser o fio condutor da narrativa fílmica. O filme tem inicio com imagens que antecipam a tragédia do seu desaparecimento no lago.

Transcrevo os comentários de Zizek:
“Não farás para ti imagem esculpida [...]porque eu, Iahweh teu Deus, sou um homem ciumento, que puno a iniqüidade dos pais sobre os filhos” [...] a “imagem esculpida” é materializada no computador como o deus ex-machina falso que gera ícones e assim representa a maior violação da proibição de fazer imagens. Por conseqüência, Deus pune o pai, fazendo “castigar o erro do pai no filho”, que se afoga quando patina no gelo. A “verdade” desse mandamento é a subversão dialética da própria oposição entre palavra e imagem: a proscrição das imagens leva à proibição de pronunciar o próprio nome de Deus."

A versão dos mandamentos extraídos de livros sagrados, entre eles, a Bíblia de Jerusalém, apresentando na versão cristã o primeiro mandamento, declina “Amarás a Deus sobre todas as coisas e não jurarás teu nome em vão”. Zizek chama atenção que a “verdade” do primeiro mandamento está na proibição de imagens, pois só o Deus judeu não tem imagem, todos os outros estão presentes na forma de imagens, de ídolos.

A narrativa se constrói com imagens dos espaços externos, paisagens de um vilarejo coberto de neve, imagens de uma fogueira que arde em chamas, pombos que perambulam pelas janelas. No ambiente interno, diálogos entre o garoto que interroga seu pai e sua tia Irena sobre questões da fé e da existência humana. As respostas são diferentes. Para o pai, professor universitário voltado para discussões sobre a linguagem literária, a morte deixa apenas as memórias e as lembranças dos entes queridos. Acredita e baseia-se em programas cibernéticos para medições das temperaturas e previsões do tempo, prever os degelos dos lagos, informações prestadas pela máquina que utilizadas por eles mostram mensagem significativas, “I am ready”. A máquina responde os prognósticos de descongelamento do lago e prescreve as condições metereológicas, consulta-se para guiar-se sobre seus prognósticos. Parece não saber dizer nada sobre a previsão dos sonhos. A tia Irnena, voltada para a religiosidade e os rituais da fé ao ser interrogada por Pawel sobre a vida, responde “viver significa ajudar os outros, a vida é um presente, uma dádiva”, aponta para a necessidade de aulas de religião para o pequeno. Para ela, Deus existe.

Há sinais e avisos. Um tinteiro quebra e mancha os papéis que o pai de Pawel trabalhava, a professora de inglês não deu aulas, houve descongelamento no lago. Há inquietação e o som de uma sirene aponta busca pelos arredores. Uma criança aparece, Pawel não. As últimas cenas revelam a impotência do pai frente à tragédia, sua ira contra as imagens religiosas dispostas no altar, sua agonia frente aos desígnos da tragédia.

Voltemos a Zizek, que diz: O Dacálogo 1 e o Decálogo 10 sobressaem da série: o primeiro é a história de grau zero de uma intrusão traumática do Real contingente e absurdo, sem a tensão intersubjetiva dos outros episódios, enquanto o último é uma peça satírica que introduz o cômico numa série em todo o resto sombria. A trágica morte de um garoto no descongelamento imprevisível do lago denuncia os limites da previsibilidade das máquinas do tempo. Como assinala certos planos do filme ao mostrar que as máquinas, ainda que se queira, não podem prever os sonhos.

Nota: Krzysztof Kieslowski (1941-1996) cineasta polonês, realizou uma série de filmes para a TVpolonesa baseado nos Dez Mandamentos, com o título Decálogo ( 1988). Há algumas indicações bibliográficas de análise desta série, todas de difícil localização a curto prazo. Enquanto não encontro material de análise mais denso, partilho as primeiras inquietações da consulta até então.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Da interpretação

As anotações a seguir, despretensiosas, são rascunhos para uma agenda de estudo, não apresentam soluções, encaminham perguntas. A nota de rodapé transcrita abaixo tem o objetivo de dialogar com o Decálogo, série de filmes realizados por Krzysztof Kieslowski. Qual o sentido de proceder mediante deslocamentos, próximo do que Hegel realiza em Fenomenologia do Espírito, tornar visível sua "verdade" e suas consequências inesperadas que minam suas premissas, no modo hegeliano restrito? Procede Kieslóvski no Decálogo segundo sua teologia materialista? O relacionamento do Decálogo com os Dez Mandamentos se realiza em que dimensão?

"Entre outras conjecturas sobre a relação entre a série dos Dez Mandamentos e os episódios do Decálogo de Kieslowski, a mais convincente é a afirmação de que Kiéslowski saltou o segundo mandamento, que proibe as imagens ( talvez numa concordância espontânea com o fato de o próprio Decálogo ser composto de imagens em movimento) e dividiu o último mandamento em dois:"Não cobiçaras a mulher do próximo" ( Decálogo 9), nem seus bens materiais ( "Não cobiçaras os selos do teu vizinho, no Decálogo 10). Nessa interpretação ( desenvolvida em Véronique Campan, Dix bréves histoires d'image:Le Decálogue de Krzystof Kieslowski,Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1993), o Decálogo 7 encena o primeiro mandamento. "Não terás outros deuses diante de mim": o pai é punido porque celebra o falso deus da ciência e da tecnologia. O que se perde nessa interpretação é o paradoxal "juízo infinito", que surge se lermos o Decálogo 10 como a encenação do primeiro mandamento: a equiparaçao de Deus) o ser mais alto) com os selos, o objeto material arbitrário elevado à dignidade da Coisa."

(...) O que este faz está muito próximo do que Hegel realiza em sua Fenomenologia do espírito: seleciona um mandamento e "encena-o", consubstancia-o numa situação de vida exemplar, tornando visível assim sua "verdade" e sua conseqûencia inesperada, que minam suas premissas. Quase se é tentado a afirmar que, no modo hegeliano estrito, esse deslocamento de cada mandamento gera o mandamento seguinte.

Estas notas iniciais, são provocações e motivações para agenda de estudos e leituras, não tem caráter definitivo nem de verdade, revelam intenções. Posso mudar o percurso se entender que a navegação aponta para mar revolto...

sexta-feira, 9 de julho de 2010