sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

CINEMA LATINOAMERICANO













A postagem de hoje reflete algumas motivações de velhos tempos. O desejo de dialogar com a majestosa Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe no que diz respeito ao verbete sobre Cinema, de comentar do novo (re) encontro com Jorge Luis Borges na capital portenha e de tentar incursionar pelo cinema argentino. Desculpem a ousadia, mas estou sendo sincera.

Dada as gentilezas entre pesquisadores que sabem trocar suas produções, tenho em minha estante o trabalho de Afrânio Mendes Catani que examina a trajetória da Companhia Cinematográfica Maristela (1950-1958), onde estuda os principais problemas do cinema industrial paulista e explora o papel da burguesia industrial na impulsão do movimento cultural desencadeado na São Paulo do pós-guerra. Pois bem, Afrânio apresentou-me o verbete de cinema da enciclopédia, comentou sobre alguns trabalhos e, similar a uma enciclopédia, sabia de todos os filmes e roteiristas, domínio de um extenso mapa para incursionar pela cinematografia latino-americana, em especial, pela cinematografia que me interessava no momento, a produção argentina (1).

Conforme registros de consulta, o cinema chegou à América Latina em 1896, após sua primeira exibição pública em Paris, acompanhado de equipamentos de filmagem, projeção e profissionais da área, predominantemente os italianos. Na Argentina, no começo do século XX, as primeiras filmagens couberam a Eugenio Py, francês, Atílio Lipizzi, italiano que fundou a Companhia Cinematográfica Ítalo-Argentina e Max Glucksmann, austríaco, que estabeleceu o sistema de distribuição vital para o período sonoro. A estes pioneiros somaram-se, Mario Gallo, Edmundo Peruzzi e Federico Valle, italianos que apareceram com o surgimento das primeiras salas exibidoras.

Os primeiros estúdios com laboratórios chegaram com Julio Raúl Alsina, uruguaio ligado à distribuição e exibição das películas. No período do cinema mudo, entretanto, formaram o quadro de diretores, dentre os principais, Edmo Cominetti, Nelo Cosimi, José Agustín Ferreyra, Roberto Guidi, Julio Irigoyen e Leopoldo Torre Ríos.

De 1930 a 1950, a Argentina viveu sua pujante indústria cinematográfica. No início dos anos 30 foram inauguradas várias produtoras, entre elas, Argentina Sono Film, Lumiton e Estudios San Miguel, além de pequenas e médias empresas. Neste período, o cinema argentino, seguindo o modelo de Hollywood, apresentou variadas películas, entre elas: Viento Norte,1937 e Prisioneros de La Tierra, 1939, de Mario Soffici; La Guerra Gaúcha, 1942 de Lucas Demare; La Dama Duende, 1944, de Luis Saslavsk; Las Aguas Bajan Turbias, 1951, de Hugo Del Carril; mais de quarenta filmes de Fernando Ayala e mais de trinta produções de Leopoldo Torre Nilsson . Dentre as principais atrizes figurantes, destacaram-se: Libertad Lamarque, Tita Merello, Amelia Bence, Laura Hidalgo, Mecha Ortiz, Zully Moreno, Delia Garcés, Paulina Singerman e Mirtha Legrand.

Em meados da década de 50, com a formação de cineclubes, associação de classe, lançamento de revistas de cinemas e surgimento de uma geração de curta-metragem, vários nomes ligados ao cinema vão aparecer e, também, destacadas produções, entre elas, Tire Dié, 1958 e Los Inundados, 1961, de Fernando Birri que marcaram os tempos da Escuela de Santa Fé, coordenada por Birri e voltada para o cinema documental.
Nos anos 60, a cinematografia argentina revela-se em destacadas produções, entre elas, El crack, 1959, de José A. Martinez Suárez; Los de La Mesa Diez, 1960, de Simón Feldman; Tres Veces Ana, 1961, de David J. Kohon; Los Jóvens Viejos, 1962, de Rodolfo Kuhn; Intimidad de Los Parques, 1965, de Manuel Antin; Crónica de um Niño Solo, 1965, de Leonardo Flavio. Surge, também, o chamado cinema independente com o Grupo de Los Cinco e o Grupo Cine Liberción, caracterizado pela política de resistência. São produções deste período: Mosaico, La Vida de Una Modelo, 1968, de Néstor Paternostro; Tiro de Gracia, 1969, de Ricardo Becher; The players vs. Angeles Caídos, 1969 de Alberto Fischerman; Juan Lamaglia y Señora, 1970, de Raúl De La Torre; La Hora de Los Hornos, 1968, de Octavio Getino; El Camino Hacia La Muerte Del Viajo Reales, 1971, de Gerardo Vallejo.

Nos anos 70 continua a saga cinematográfica, sendo produzidos, entre outras películas: Güemes, La Tierra em Armas, 1971, de Leopoldo Nilsson; Juan Manuel, 1971, de Manuel Antin; Argentino Hasta La Muerte, 1971, de Fernando Ayla; Bajo El Signo de La Patria, 1971, de René Mugica; Crónica de Una Señora, 1971, Heroína, 1972, El Inferno Tan Temido, 1980, de Raul de La Torre. De La Torre, também, adaptou o romance de Manuel Puig, Publish angelical, 1982. Marcaram ainda as produções de Leonardo Favio com Juan Moreira, 1973, Nazareno Cruz e Lobo, 1975 e Soñar, Soñar, 1976. Leopoldo Nilsson conquistou o Urso de Prata no Festival de Berlim, com Los Siete Locos, 1973.

Meados dos anos 70 para os anos 80, uma das primeiras diretoras do moderno cinema argentino Eva Landeck, uruguaia, destaca-se com Gente em Buenos Aires, 1974; Maria Luisa Bemberg com Camilla, 1984; Luis Puenzo com La Historia Oficial premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, 1985; Carlos Sorin com La película Del Rey, 1986, premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza; Eliseo Subiela com Hombre Mirando al Sudeste, 1987.

Deste levantamento certamente incompleto, provavelmente, alguns filmes deixaram de ser mencionados, observa-se a crescente e expressiva produção, sendo alguns merecedores de prêmios. Trata-se de uma filmografia com predominância da direção masculina com temáticas que enfatizam aspectos histórico-culturais e sociais. Como assinala T.Chacón:
Em um cierto sentido general, y más aun em nuestro país, la actividad cinematográfica há sido ejercida históricamente por varones, y obviamente, el punto de vista masculino há predominado em las realizaciones. Así también tenemos que agregar la concepción patriarcal, hozo que los que se atrevieron hacer cine adoptaran, casi sin excepción, este enfoque, promoviendo um modelo de identificación de carácter sexista, prejuicioso y distorsionado(2).

Faço um parêntese agora para conversar, en un cierto sentido, com Jorge Luis Borges. Reencontro o escritor argentino nascido em Buenos Aires em 1899, no Ateneo Grand Splendid, na Santa Fe, 1850. Embora ele esteja por todas as largas avenidas e calles de Buenos Aires, encontro-o no Gran Café Tortoni acompanhado de Alfonsina Storn Y El Mar e Calos Gardel, sendo visitado por Susan Sontag (1933-2004), Susan Sarandon e outras figuras que vieram de longe conhecê-lo e apreciar sua obra. Entre elas, Discusión, Historia Universal de La Infamia, Ficciones (que ganhou o Permio Nacional de Literatura, 1956) Historia de La Eternidad, El Jardim de Senderos que se Bifurcan, El Aleph, Outras Inquisiciones, El Hacedor, Elogio de La Sombra, El Informe de Brodie, El Libro de Arena, El Oro de Los Tigres, La Rosa profunda, La Cifra, Los Conjurados e muito mais, suas poesias. Em sua homenagem andando pelos Bosques de Palermo, em La Recoleta, Corrientes e arredores, ouvimos, novamente, seus poemas.

AS RUAS
As ruas de Buenos Aires já são minhas entranhas. Não as ávidas ruas, incômodas de turba e de agitação, mas as ruas entediadas do bairro, quase invisíveis de tão habituais, enternecidas de penumbra e de ocaso e aquelas mais longínquas privadas de árvores piedosas onde austeras casinhas apenas se aventuram, abrumadas por imortais distâncias, a perder-se na profunda visão de céu e de planura. São para o solitário uma promessa porque milhares de almas singulares as povoam, únicas ante Deus e no tempo e sem dúvida preciosas. Para o Oeste, o Norte e o Sul se desfraldam_ e são também a pátria_as ruas; oxalá nos versos que traço estejam essas bandeiras( 3).


Nestas ruas, encontramos além do escritor, representantes do moderno cinema argentino. Em Solo Cine, Rodriguez Peña, 402, precisamente. Como já percebemos, o cinema argentino expressou uma certa visão de mundo onde há predomínio de um ponto de vista masculino e patriarcal, há uma certa hegemonia da técnica narrativa centrada nas histórias de época com conotações psicológicas, sentimentais e melodramáticas, com exceções.

Queremos, por supuesto, comentar outro encontro. Desta vez, com a obra de Maria Luisa Bemberg (1922-1995) e sua cinematografia. Diretora, produtora, escritora, ativista de movimentos feministas, fundadora da União Feminista Argentina, Maria Luisa Bemberg deixou um legado de mérito e reconhecimento do seu trabalho. Dentre suas principais realizações, destaca-se: Crónica de Una Señora, 1970 (Prêmio de Interpretação Feminina no Festival de San Sebastián); Triângulo de Cuatro, 1975 (Prêmio outorgado pela Sociedade Argentina de Escritores); Momentos, 1981 (Prêmio de Interpretação Feminina no Festival de Huelva e Chicago; Señora de Nadie, 1982 (Prêmio outorgado pela Sociedade Argentina de Escritores e pelo Festival de Taormina e Panamá; Camila, 1985 (Oscar de Melhor Película Estrangeira outorgado nos Festivais Karlovy Vary e La Habana); Miss Mary, 1986 ( Prêmio de Melhor Película, Atriz e Cenário pelo Festival de La Habana e Festival de Veneza); Yo, La peor de todas, 1990 ( Prêmio no Festival de Chicago, de Cartagena e Havana (4).

Assistimos Camila, Señora de Nadie e Momentos em cópia DVD. Sem dúvida, o trabalho de Maria Luisa Bemberg demonstra inventividade, criatividade e ruptura em direção a uma moderna cinematografia que retrata os conflitos sociais e coloca as vozes femininas em primeiro plano. Así, Bamberg, com su cámara y Poniatowska com su pluma, se propusieron dar luz a determinados rostros históricamente olvidados y dar voz a determinantes silêncios milenários (op.cit). Temos que terminar estas notas, já tão alongadas para este espaço, continuaremos, porém, nossa breve incursão ao cinema porteño, que tanto nos inspira para pensarmos sobre a linguagem cinematográfica, desta vez diretamente na tela mágica.


NOTAS:
1.Latinoamericana: Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe.Coordenador Geral Emir Sader. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, 2006.
2.Cineastas argentinos contemporâneos: identidad, estilo e lenguaje. Texto de Tristán Chacón, consultado na web in: tristan[ arroba]belgrano.unc.edu.ar.
3.Borges, Jorge Luis. Obras Completas
. Vol.1. São Paulo: Globo, 2000. A Companhia das Letras acaba de lançar a Coleção Biblioteca Borges sob a coordenação de Davi Arrigucci Jr e Jorge Schwartz, quase trinta volumes estarão disponíveis para os amantes da literatura mundial contemporânea.
4.Cineastas argentinos contemporâneos, op.cit.

sábado, 17 de novembro de 2007

Claude Lelouch: Crimes de Autor











Um título e um convite ao cinema.
Roman de Gare, 2007. Crimes de Autor. Como não ?
Sexta-feira, às 17:05, na Sala de Arte do MAM, depois de ter apreciado um pôr do sol na Baía de Todos os Santos que deixa qualquer mortal em estado de graça, dirijo-me a sala acompanhada de três gatos pingados e uma amiga apreciadora da beleza e da inteligência, sem esnobismos.
Lembrava-me de outros filmes do Claude Lelouch e de recente entrevista que assistira na globonews quando da visita ao Brasil pelo autor para participar da 31ª Mostra Internacional de Cinema (São Paulo, out/nov 2007). Lembranças de filmes, entre outros, Um homem, Uma mulher (Un Homme et Une Femme, 1966), A aventura é uma aventura (L'Aventure ces’t l’Aventure, 1972), Retratos da Vida ( Les Uns et Les Autres, 1980) expressões e sentimentos de emoção e esperança de toda uma geração que acreditou em utopias e nas relações humanitárias.


O filme Crimes de Autor provoca vários debates, um deles é o de pensar o processo da criação literária. Quem são mesmo os autores das obras literárias e quais os desejos que os movem nas suas criações? A criação de uma novela é um processo coletivo? Quem são os seus verdadeiros autores?

A trama do filme se desenvolve, mais intensamente, entre três personagens marcantes, a figura de Judith Ralitzer, escritora de sucesso em busca de um novo best-seller, Dominique um misterioso ghostwriter que dirige, aparentemente, sem rumo pelas estradas da França e Huguette, uma mulher sonhadora e conflitada, abandonada pelo namorado num posto de gasolina.

Claude Lelouch, concedendo entrevista em 28 de junho de 2007, no Festival de Conhaque (voltado para filmes policiais) ocasião em que presidia o júri, comenta que seu novo filme, Roman de Gare (traduzido no Brasil por Crimes de Autor) é, também, uma homenagem à literatura. Fala que seu filme representa suas quatro paixões: o amor que sente pelas pessoas, pelas imagens, pelas palavras e pela música. Este filme, diz ele, fala destas paixões e da novela, é através da literatura que considero que se possa sempre dissimular. Por isso, acrescenta, escondi-me sob um pseudônimo que revelasse meu amor pela literatura, pelas palavras, pelas frases e, sobretudo pelos diálogos. Fiz o Roman de Gare como se fosse meu primeiro filme, diz ainda, com todos os riscos possíveis,dentre os artísticos aos financeiros, e esta é uma viagem de grande solidão que se espera traga prazer a muitas pessoas (1).

Ao perguntarem sobre a trilha musical do filme, ele comenta: A música sempre foi um ator importante nos meus filmes e um dia ela terá o papel principal. Faz cinqüenta anos que me preparo para este filme e penso que chegarei o mais cedo que puder a formulá-lo. Há um coral de seis milhões de indivíduos sobre a terra e cada um de nós tenta cantar e contar suas pequenas histórias individuais onde há rios subterrâneos entre todas elas. Em Roman de Gare a música de Gilbert Becaut cria uma atmosfera de envolvimento e expressão.

Há muito a dizer sobre Crimes de Autor, mas curioso, ao voltar do cinema fiz uma busca pela web tentando encontrar dados que me permitisse fazer uma postagem mais elaborada e fundamentada da filmografia de Claude Lelouch, sem muito sucesso. As sinopses disponíveis não marcaram os pontos que considerei relevantes, sequer encontrei destaques do que considerei os eixos temáticos relevantes, ou seja, que evidenciam a singularidade e inspiração do cineasta tomando como expressão temática a literatura e a música, como peças chaves para seu filme. Resolvi consultar o André Setaro. Segue a resposta, que divulgo na intenção de partilhar os comentários antenados do Setaro, uma vez que não encontrei análises detalhadas.
Cara Stela,
Pensei em escrever um artigo para o blog a revisitar a filmografia de Claude Lelouch, realizador de minha admiração, mas desprezado pela chamada crítica especializada, o que considero uma injustiça. Leon Cakoff, crítico paulista, organizador da Mostra Internacional de São Paulo, fez-lhe homenagem especial com a sua presença na capital paulista. Mas os jornais pouco deram divulgação e, inclusive, numa atitude descabida, a Folha se negou a entrevistá-lo.
Consideram-no virtuosista, superficial. Não concordo. Lelouch tem uma maneira muito particular, muito emocional, de fazer cinema, e poucos são os cineastas que sabem usar a partitura musical com tanta eficiência, com tanta habilidade. Seus filmes sempre se destacam pelo poder de encantar, de envolver, e, creio o cinema sempre está a reinar. Ainda não vi Crimes de autor por falta de tempo, ainda que tenha grande interesse, o que pretendo fazer logo que chegue de viagem (vou a Conquista para um festival de cinema).
Trabalho analítico sobre este grande diretor no Brasil não existe. Mas tenho certeza que é apreciado no exterior. Dê uma olhada em seu site oficial:
http://www.lesfilms13.com/ E neste link: http://www.allocine.fr/tags/default_gen_tag=les+essentiels+de+Claude+Lelouch.html
Um abraço do
André Setaro

Pois bem, estas anotações preliminares de hoje revelam muito mais meu interesse em debruçar-me sobre uma filmografia ainda a ser mais analisada do que um resultado substancioso de um trabalho de pesquisa. Por outro lado, foi tão expressivo, em quantidade e qualidade, o que encontrei no site oficial do autor que não resisti a vontade de pelo menos indicar pelos cartazes, lembranças que provocam interesse em rever os filmes nos próximos trabalhos (2).


Notas:
1. Roman de Gare: Reencontre avec Claude Lelouch IN:
http://www.allocine.fr/article/
2. Filmografia citada no site como Les essentiels de Claude Lelouch: Roman de Gare,2006; Le Courage d’aimer, 2004; Les Parisiens, 2004; Les Misérables, 1994; Tout ça...pour ça!, 1992; La Belle Histoire, 1992; Il y a dês jours...et des lunes, 1990; Itinéraire d’um enfant gâté, 1998; Atlention bandits!, 1986; Un Homme et Une Femme: vingt ans déjá, 1986; Edith et Marcel, 1982; Les Uns et lês autres, 1980; A nouns deux, 1979; Si c’était à refaire, 1976; Le Bom et lês méchants; L’Aventure c’est l’aventure, 1972; La Bonne année, 1973; Smic, Smac, Smoc, 1971; La vie “amour, la mort”, 1963; Un Homme et Une Femme, 1966.
3. Encontram-se no início do post alguns cartazes dos filmes indicados na nota anterior.

sábado, 10 de novembro de 2007

Notas de Estudo: Nouvelle Vague


François Truffaut: escritos sobre cinema.

Todos sabem da importância e influência que a Nouvelle Vague exerceu sobre a cinematografia mundial, ao surgir na França no final dos anos 50, modificando e criando uma nova linguagem cinematográfica e trazendo inúmeros representantes que marcaram e divulgaram uma nova concepção de fazer cinema. Um movimento de renovação da linguagem fílmica, de criatividade, mais voltado para a expressão do que a comunicação, trazendo um enfoque para temáticas do homem contemporâneo, podendo-se afirmar que houve um cinema antes e outro depois da Nouvelle Vague (1).
Não pretendemos repetir as análises já realizadas, são inúmeras, sobre este movimento e suas repercussões na linguagem cinematográfica. Nesta postagem de hoje temos a intenção de evidenciar a presença de um representante deste movimento, expresso na figura do cineasta que chama atenção não só pelo talento e influência que exerceu nas gerações posteriores, como pelas anotações e escritos onde deixou registradas suas percepções e idéias não só do fazer cinema como da própria condição de cineasta e de amigo dos inúmeros companheiros de jornada. François Truffaut foi um dos cineastas franceses que mais escreveu sobre cinema. Em janeiro de 1975, ele expõe suas idéias e interesse por cinema no livro “Os filmes da minha vida”, revelando não só a sua dedicação à sétima arte como o seu envolvimento com o mundo do cinema (2).

Sempre me perguntaram em que momento da minha cinefilia desejei tornar-me diretor ou crítico e para falar a verdade não sei; sei apenas que queria aproximar-me cada vez mais do cinema. Um primeiro estágio consistiu em ver muitos filmes, um segundo em anotar o nome do diretor ao sair do cinema, um terceiro em rever freqüentemente os mesmos filmes e em determinar minha escolha em função do diretor. Naquela época de minha vida, porém, o cinema agia como uma droga, ao ponto do cineclube que fundei em 1947 ostentar o nome pretensioso, mas revelador de Cercle Cinémane (Cícirculo Cinemaníaco). Acontecia-me assistir o mesmo filme cinco ou seis vezes no mesmo mês e ser incapaz de contar corretamente o roteiro porque, nesse ou naquele momento, uma música que se elevava uma perseguição na noite, o choro de uma atriz me entusiasmavam, me fazia decolar e me levavam para mais longe que o próprio filme.

Como sabemos, Truffaut nasce em 1932 e com 52 anos ao se despedir deste mundo deixa uma produtiva obra de mais de vinte e seis filmes, um conjunto de escritos e anotações que revelam seu pensamento não só sobre cinema, mas suas percepções sobre a vida e sobre as relações humanas. São textos que foram publicados, no Cahiers Du Cinéma, entre outros veículos de divulgação, e como crítico e polemista virulento que foi, escreveu não só sobre diretores (Alfred Hitchcoke, Jean Renoir, Orson Welles, Charlie Chaplin e outros) também sobre autores como André Bazin e Pierre-Henri Roché e atores com quem trabalhou, entre eles, Jean-Pierre Leaud, Isabelle Adjani, Faunny Ardant.

Em 1959, Os Incompreendidos marcará uma temática voltada para a infância e seus conflitos, centrada na figura de Antoine Doinel, um estudante parisiense de treze anos, sonhador e turbulento. Comentado sobre seu filme, Truffaut diz:

Aos quinze anos, fiquei internado no Centro de Menores Delinqüentes em Villejuif, tendo sido detido por vagabundagem. Era pouco depois da guerra, havia um recrudescimento da delinqüência juvenil, as prisões infantis estavam cheias. Eu conhecia muito bem o que mostrei no filme: a delegacia com as putas, o camburão, a “gaiola”, a identificação judiciária, a prisão, não quero me estender sobre o assunto, mas posso dizer que o que conheci era mais duro que o que mostrei no filme (3).

Mas não apenas a infância e a juventude mereceram a reflexão do cineasta, Truffaut voltou-se também para a expressão dos sentimentos humanos mais pungentes, revelando uma atenção especial para o que se costuma assinalar como “uma tradição dos grandes cineastas do coração”. Neste métier, a mulher ocupou um certo lugar.

Ora, até o presente os filmes foram feitos por homens para homens; Ingmar Bergman talvez tenha sido o primeiro a abordar certos segredos do coração feminino. E Hiroshima, meu amor poderia muito bem ser o primeiro filme feito verdadeiramente para mulheres, em todo caso o primeiro a nos mostrar não uma boneca encantadora ou uma vamp, mas uma mulher de verdade. Pela primeira vez no cinema, a igualdade da mulher fica evidente desde a primeira imagem até a palavra “Fim”. Em geral menos preguiçosa que os homens, dando provas de uma sensibilidade mais viva e mais agilmente alerta, as espectadoras fazem o esforço que for preciso para acompanhar o jogo do cineasta (...). Em outras palavras, provavelmente são as mulheres que mantêm, no cinema, esse caráter de troca que parece ser, até o presente, privilégio exclusivo do teatro.

Sobre Jeanne Moreau, protagonista de Jules e Jim (1962) Truffaut comenta que ao contrário de atores e atrizes que só conseguiam atuar em conflitos e tensões, num campo de sinistras lembranças, Jeanne Moreau se movia pela compreensão da fragilidade humana deixando-se envolver pela generosidade, ardor, cumplicidade num trabalho de criar e projetar emoções fortes e sentimentos luminosos. Trabalhar com Moureau não o fazia pensar apenas no flerte, mas no amor, comenta.
Em 1969, escrevendo para Unifrance Film Magazine, Truffaut refere-se ao trabalho A Sereia do Missisipe que tem como protagonista principal Catherine Deneuve. Deixa-se, então, revelar suas estratégias de sedução com protagonistas femininas, no caso, a busca da musa bela da tarde. Vejamos:

Eu criara uma imagem de Catherine antes das filmagens de senso de atriz e de que este vinha antes de seu interesse pelo filme. Suspeitava que fosse perfeccionista, logo, sempre desiludida. Não acreditava que estivesse previamente apegada ao filme e, em função excessivamente com detalhes e que pediria explicações e justificações a todo momento. Em suma, a despeito do desejo que eu tinha de trabalhar com ela, me atirava àquele filme com certas prevenções que ela adivinhou imediatamente. Enquanto Catherine estava filmando Um dia em suas vidas nos Estados Unidos, escrevi-lhe para Hollywood e lhe enviei avisos dissimulados como “Em meus filmes, trabalha-se com bom humor” ou então “É proibido achar que faremos uma obra-prima. Tentaremos fazer um filme vivo”.

Por outro lado, a crítica cinematográfica exercida por François Truffaut, polêmica e áspera, atrelou-se à defesa do lema da “política de autores”, ou seja, um filme vale o que vale quem o faz. O filme não era apenas a soma de vários elementos, os protagonistas, os temas, os recursos disponíveis, à linguagem cinematográfica, mas estava ligado à personalidade e talento de seu condutor. Acreditava que o cinema podia emocionar com o mínimo de recursos possíveis e a improvisação tinha um papel especial.

Incansável e persistente conhecedor da filmografia mundial, nos livros que nos deixou seus escritos sobre cinema, François Truffaut menciona e faz referências a mais de trezentos filmes que são apresentados no final de uma das edições sob o título Lista de filmes citados. Nestas indicações um bom roteiro para quem se dedica a memória e retrospectiva dos grandes diretores de cinema. Nestas breves anotações sequer mencionamos o apreço de Truffaut por André Bazin (uma espécie de pai espiritual), às suas primeiras críticas de cinema e a extensa correspondência que desenvolveu com toda uma geração de realizadores inventivos e produtivos que marcaram o movimento da Nouvelle Vague. Mais um motivo para rever seus filmes e apreciá-lo, também, pelos seus escritos.
Cena do filme Jules e Jim( 1962).


Notas:
1. O que foi, afinal, a Nouvelle Vague por André Setaro. Texto divulgado no Curso de Introdução ao Cinema, outubro de 2007. Publicado anteriormente no site Coisa de Cinema em 3/5/2004.
2. Truffaut, François. Os filmes da minha vida. Tradução: Vera Adami. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
3. Truffaut, François. O prazer dos olhos: textos sobre cinema. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005
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sábado, 3 de novembro de 2007

Cinema Alemão


Anos 20: Metrópolis, Fritz Lang (1926, Alemanha).

Marca do expressionismo alemão, construção de alegorias e composições geométricas monumentais, diz-se que esse longa metragem impressionou tanto a Adolf Hitler que consultou Fritz Lang da possibilidade de trabalhos para o nazismo.

Mas de que trata mesmo Metrópolis?
Um paradigma da repetição assinala Ismail Xavier(1). A narrativa se movimenta numa alusão ao tempo futuro, porém sugere uma circularidade mítica que se vale da analogia como parâmetro de reflexão. Uma alegoria retratada desde a retórica clássica, pretendendo criar nexos entre uma analogia que se desenvolve ao longo de um percurso conectando-o, porém mantendo distinto, num mundo narrado e num universo de referência histórico ou mesmo de natureza conceitual. Trabalha-se no eixo do presente e do futuro. Uma cidade imaginária que tem a dimensão de um laboratório e ilustração de um problema vivido nos anos 20, para o qual se apresenta um diagnóstico e uma solução.
Os termos dessa analogia extraídos de vários contextos sócio-culturais ganham um nível de complexidade de modo a estabelecer uma relação entre passado e futuro definida por narrativas e referências iconográficas do passado. Desta maneira, estão subsumidos em Metrópolis, a tradição bíblica (o Velho e o Novo Testamento), o romance medieval, a mitologia germânica, tragédias e melodramas de vigança, uma constelação de elementos e de dados iconográficos de efeitos notáveis, a imprimir uma feição kitsch e a compor seu corpo fílmico. Vários campos de analogias convidam a leituras em busca de princípios de coerência, de mobilização de um campo teórico para identificar na arquitetura do filme as proposições de sentido e alegorias aí presentes(2).
O filme de Fritz Lang, diz Xavier, tem uma composição monumental que ultrapassa a mensagem enunciada no seu final, há um descompasso entre a mensagem intencionada e a experiência estética, o que aponta uma discrepância entre a riqueza de elementos compositivos que excedem o teor da parábola. Essas tensões estão presentes no filme, entre a narrativa e os efeitos plásticos, entre a palavra e a imagem, mas não se pode tomá-los unicamente com estranhamento uma vez que compõem um discurso disposto a exibir tais tensões como uma coleção de referências notórias.
A construção do espaço alegórico da cidade na abertura do filme e o modelo de alegoria que se instala quando a narrativa se desenvolve demarca a análise empreendida pelo que Xavier considera como a sua seqüência chave: o relato de Babel. Esta seqüência ocupa uma posição nuclear, diz ele, porque propõe um sentido particular para as construções monumentais que interagem com o lado sentencioso do filme, mas também porque assinalam como a alegoria impregna a composição visual de Metrópolis.
A magia e a ciência moderna estão presentes, na apresentação do robô, no laboratório como terreno dos fatos prodigiosos, nas substâncias líquidas em frascos misteriosos, uma cenografia que apresenta uma aparência de arcaísmo que se encontra com o gótico e o high tech, num universo de máquinas que sugerem uma concepção da luz como eletro-magnetismo. O futuro encontra a Idade Média. A tradição versus a modernidade. No laboratório de Rotwang a cortina se abre para que o metal em forma humana se movimentasse diante de espectadores atônitos antecipando um futuro que talvez os exclua. Tudo é premonição fatalista, impregnado do espectro de morte insinuada pela imagem metálica do robô e presença de caveiras. O metal tende a se transformar como força operativa na figura da feiticeira, metamorfoseada em Maria. O robô provoca fascínio e terror, a identidade entre a máquina e a figura feminina também se instala. Várias são as interpretações que mobilizam a psicanálise e a história social para as análises dos seus sentidos políticos subjacentes (3). Não é nosso propósito adentrarmos por esta vertente de análise, uma vez que especialistas voltados para estas ciências estão mais interessados e familiarizados e já as dispuseram para consulta, a quem por elas se interessarem.
Importa aqui, trazer a análise do Ismail Xavier ao tomar uma sequência emblemática: a alegoria de Babel. A lenda de Babel em Metrópolis é muito mais do que um modelo de referência, ela se faz parábola dentro da parábola, diz ele, para que o filme possa explicitar os termos da sua analogia entre o futuro e o passado mítico.


Em toda seqüência de Babel o agenciamento de palavras e imagens, pela seqüência ou justaposição, e até mesmo por suas lacunas, repete ou avança certos motivos que são centrais no destino da cidade do futuro, exibindo-os de forma mais depurada. É um momento em que a vontade de alegoria se faz plena, não só porque seja esta a intenção de Maria, mas porque na sua própria forma a seqüência insiste numa dimensão de “escrita hieroglífica” que chega ao esquematismo do emblema: justaposição de imagem e inscrição verbal cujo fundo pedagógico não afasta as tensões próprias a tais cotejos onde a experiência visual tende a escapar da linha estrita definida pelas palavras. Há um jogo de espelhos pelo qual a lenda de Babel forma uma versão reduzida do relato maior que dá conta dos fatos em Metrópolis, para que a analogia se faça uma quase identidade, uma repetição que o filme trabalha de modo particular, solo para que a mesma frase edificante arremate a pregação, aqui e no final do filme.


Como assinalado antes, um paradigma da repetição. Gostaríamos de continuar rastreando a análise, mas o espaço que estamos nos movendo tem os seus limites. Escolhemos apenas uma e só apenas uma seqüência, a seqüência que nos pareceu emblemática, deixando de comentar outras importantes alegorias modernas utilizadas, como o relógio que organiza o trabalho, o sino que convoca os espíritos, o trabalho como danação, a imagem da rebelião das massas e tantas outras que compõem o corpo fílmico.
O filme de Lang é polêmico, uma composição visual que dispõe peça de uma alegoria e traz a forma de uma experiência estética. O filme apresenta uma cidade imaginária e a forma da composição de tal monumento. Ao inscrever Babel como chave de codificação do seu discurso sobre o moderno, Metrópolis introduz um movimento reflexivo sobre a problemática do monumento, a busca do espetacular envolvendo um diálogo com espaços arquitetônicos em grande escala. Compõe uma alegoria moral de inspiração bíblica tornando Babel, a construção de uma imagem desejável.

O acirrado debate que o filme provoca, merece algumas linhas a mais:


Embora não contemporâneos, os filmes de Griffith e Lang são dois exemplos extraídos de um contexto histórico que, desde o início do século até a Segunda Guerra, se definiu por uma competição acirrada, esforço de hegemonia nos mercados e exacerbação dos nacionalismos que transformou as Exposições Universais, ponto de celebração do progresso, em terreno de rivalidades entre os países da Europa e os Estados Unidos . (...) Os filmes em questão constituem dois projetos tipicamente babélicos, em termos de saga da produção, do resultado monumental e do desastre financeiro. Enquanto projeto explícitos de exibição de uma força, eles mostraram muito bem o contexto de competição em que se insere esse impulso em direção ao monumento enquanto afirmação de uma identidade, construção de uma imagem desejável.


O filme Metrópolis, encontra-se submerso num quadro de notório conflito de interesses e de ressentimentos, de rivalidades nacionais do período entre guerras, isto é o que esta na raiz de Metrópolis como superprodução high tech, analisa Xavier.

Devo finalizar essas brevíssimas notas apenas iniciadas. Ficaram muitos fios soltos o que me provoca uma imensa vontade de ao rever o filme, refletir mais sobre a corrente do expressionismo alemão no qual o filme encontra-se inserido.



Notas:
1. Ismail Xavier. A alegoria langiana e o monumental: a figura de Babel em Metrópolis. In: História e Cinema. Maria Helena Capelato [et al ] São Paulo: Alameda, 2007.
2. Ver em análises do filme Metrópolis, cf: Tom Gunning. The Films of Fritz Lang: allegories of vision and modernity. Londres: BFI Publishing, 2000.
3. Roger Dadoun. Metropolis: ville-mère, Mittler, Hitler. Revue Française de Psychanalse 1( 1974) e Andreas Huyssen. The Vamp and the Machine: Fritz Lang’s Metropolis in After the Great Divide: Modernism, Mass Culture, Postmodernism. Bloomington, Indiana University Press, 1986.

sábado, 27 de outubro de 2007

Guia de Cinema


Um mapa em construção: as obras primas do cinema.

Para esta postagem consultei como referência três publicações distintas. Devido à densidade e qualidade do material, terei por imposição de limitar-me a breves e sucintos comentários, restringindo-me aos primórdios do cinema. Se houver disposição e tempo para permanecer nesta trilha, seguirei, pelos anos trinta, noutra postagem. É prudente não fazer promessas, preciso dispor de tempo para locar, assistir e reassistir centenas de filmes que permanecem ainda inéditos e atuais.

A primeira publicação consultada, editada na França em 1987 e reeditada no Brasil em 1991, elaborada por Claude Beylie, foi divulgada pela Editora Martins Fontes( 1). A segunda, Eyewittness Companion: Film, editado em 2006 nos Estados Unidos e relançado no Brasil pela Jorge Zahar Editor recentemente, indicada na coluna do Caderno Mais da Folha de São Paulo como um dos dez melhores livros, um Guia Ilustrado sobre Cinema( 2). E, por último, um artigo sobre cinema divulgado na Revista Bravo de outubro de 2007, sobre o chamado novo cinema ou cinema do futuro.

Tenho como objetivo construir um mapa de estudo que permita selecionar, dentre inúmeras seleções de filmografias indicadas e escolhidas como as melhores de todos os tempos, aquelas que parecem indicativas de um modelo de cinema, por criar ou produzir uma revolução na sétima arte. Dizendo de outro modo, a intenção é selecionar uma filmografia que represente um marco na história do cinema, partindo de indicações dos que estão mais envolvidos com o métier, ou seja, estudando e pesquisando neste campo. Ou, mais diretamente, pretendemos localizar os melhores guias indicadores das melhores e mais relevantes obras do cinema. Dando início a este mapa, ainda em construção, trabalhamos com quadros elaborados a partir de sequências temporais, valorizando os critérios encontrados nas publicações indicadas: filmes-etapas que constituíram um marco na evolução da arte ou da técnica cinematográfica, produções aclamadas por um vasto consenso e que atestam o estado de espírito de uma época, expressão consideradas originais e subversivas de uma determinada época ou período.


Quadro I_ Diretores e Filmes_ 1895/1919
1895 Louis Lumiére. A chegada do trem na estação
1901 Ferdinand Zecc. História de um crime
1902 Georges Méliès .Viagem à Lua
1903 Edwin S. Porte. O grande roubo do trem
1908 Charles Le Bargy e André Calmette. O assassinato do duque de Guise
1914 Giovanni Pastron. Cabíria
1915 Cecil B. DeMille . Enganar e perdoar
1915 Louis Gasnier. Os mistérios de Nova York
1915 David Wark Griffith. Nascimento de uma nação
1915/16 Louis Feuillade. Os vampiros
1916 David Wark Griffith. Intolerância
1919 Robert Wiene O gabinete do doutor Caligari
Fonte: LES FILMS-CLÉS DU CINEMA, Paris ,1987.


Neste quadro, pode-se reconstruir a história do cinema segundo a presença de pioneiros que marcaram a sétima arte, seus filmes e suas engenhosas técnicas que contribuíram para fazer avançar a arte cinematográfica. Há vários e inúmeros estudos, pesquisas e análises fílmicas que permitem examinar mais detalhadamente esse período. Aqui, encontram-se em destaque: Louis Lumiére e David Griffith, este ultimo apresentado em dois filmes, Nascimento de uma nação e Intolerância.


Quadro II_Diretores e Filmes_1920/1930.
1921 Benjamin Christensen . A feiticeira através dos tempos
1922 Robert Flaherty . Nanook, o esquimó
1922 Friedrich Wilhelm Murnau . Nosferatu
1924 René Clair . Entreato
1924 Mauritz Stiller. A saga de Gösta Berling
1924 Erich Von Strohei . Ouro e maldição
1924 Raoul Walsh . O ladrão de Bagdá
1925 Serguei Mikhailovitch Eisenstein . O encouraçado Potemkin
1925 Henri Fescourt. Os miseráveis
1925 Charles Chaplin. Em busca do ouro
1925 Ewald André Dupont. Variedades
1926 Vsevolod Pudovkin. A mãe
1927 Friedrich Wilhelm Murnau . Aurora
1927 Clarence Brown . A carne e o diabo
1927 Buster Keaton e Clyde Bruckman . A general
1927 Fritz Lang. Metropolis
1927 Abel Grance . Napoleão
1928 Jean Epstein . A queda da casa de Usher
1928 Frank Borzage. O rio da vida
1928 King Vidor. A turba
1928 Carl Theodor Dreyer. O martírio de Joana d’Arc
1928 Paul Fejos. Solidão
1928 Victor Sjöström . Vento e Areia
1929 Marcel L’Herbier. O dinheiro
1929 Dziga Vertov. Um homem com uma câmara
1929 Georg Wilhem Pabst . Lulu
1929Luis Buñuel. Um cão andaluz
1930Aleksandr Dovjenki . A terra
Fonte: LES FILMS-CLÉS DU CINEMA, Paris, 1987.


Nos anos vinte houve uma intensa produção fílmica, sendo que nos últimos anos do período pode-se observar de cinco até seis filmes realizados por ano. Podemos observar, também, a presença de cineastas que se tornaram expressões de reconhecimento e mérito no cenário mundial: F. Murnau, Fritz Lang, Rene Clair, Serguei Eisensntein, Charles Chaplin, Luis Buñuel, entre outros. Alguns deles, apesar de importante marcos do cinema mudo, ficaram inteiramente desconhecidos, dentre várias dificuldades, entre elas, impedimentos na distribuição e circulação dos seus filmes, como é o caso, por exemplo, de O martírio de Joana d’Arc do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, contribuíram para um completo desconhecimento de seus trabalhos.
Este último filme divulgado na Oficina de Introdução ao Cinema, coordenada por André Setaro, revela a maestria da linguagem cinematográfica do cinema mudo, além de mostrar a relevância da técnica em close para exprimir a narrativa fílmica.

Sobre o Guia Ilustrado, valeria examiná-lo. Os critérios de seleção dos filmes são distintos, tomam-se recorde de bilheteria como parâmetros para indicar os mais relevantes. Critérios polêmicos e discutíveis. Entretanto, há uma farta documentação ilustrada distribuída nas suas quinhentas e tantas páginas. Vale conferir.

E o novo cinema, o cinema do futuro na percepção dos articulistas da da Revista Bravo, isso é assunto para nova postagem. Sigamos.


Notas:
1. Claude Beylie. Professeur à l'Université de Paris-I, critique et historien de cinéma. Vice-président du syndicat français de la critique de cinéma, membre du jury du Prix Louis Delluc, fondateur de la Cinémathèque Universitaire. Acollaboré à de nombreuses revues de cinéma et publié une vingtaine d'ouvrages. De 1977 à 1991, a été rédacteur en chef de l' "Avant-Scène Cinéma".http://www.editionsducerf.fr/html/fiche/ficheauteur.
O livro do Claude Beylie encontra-se esgotado. Há um exemplar do Professor André Setaro, que gentilmente colocou-o à disposição, para consulta
.

2. Guia Ilustrado Zahar Cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007.

sábado, 20 de outubro de 2007

Cinema Clássico II


Que Viva México de Sergei Eisenstein!

Nos anos 80 e 90 o cinema revolucionário soviético visitou algumas salas de aula da academia universitária. De uma delas falo com mais intimidade, uma vez que por longo tempo acompanhei como docente os Cursos de Graduação na Área das Ciências Humanas. Nestas salas de aulas aprendemos a valorizar e entender que a linguagem cinematográfica oferecia um suporte importante para fundamentar a teoria sociológica, de melhor operar a complexidade de seus conceitos e abordagens aplicados às diferentes formações sociais.


Sergei Eisenstein (1898-1948) e sua obra nos brindaram com algumas sessões, provavelmente nem tão bem traduzidas e contextualizadas, porém com imagens tão verdadeiras e poéticas que valeria trazer mais uma vez, menos como saudosismo de um tempo perdido, mais como base para somar-se a um conhecimento atual e moderno do cinema contemporâneo.


Um apaixonado pelo cinema, assim ele se apresenta em Anotaciones de um Director de Cine. Porém, ligado à visão de cinema combativo, testemunho de compromissos com uma ordem social, guiado pelo princípio da utilidade revolucionária da arte.


La Idea de La paz general no pode ser sufocada por La egolatria y El egoísmo de certos países y Estados que se hallan dispuestos a pisotear el bienestar general em aras de la própria avidez. El cine­­­_la más avanzada de las artes­­­_deberá ser también el más avanzado em esa lucha. Que muestre pues a los pueblos la via de la solidariedade y la unanimidad por la que hay que moverse y marchar( 1).


Não esqueçamos que Eisenstein pertenceu a uma geração de artistas que recebeu influências das vanguardas européias do início do século e participou do desabrochar de um movimento cinematográfico inovador que contribuiu para revolucionar as técnicas de cinema da União Soviética e do mundo, aperfeiçoando e desenvolvendo a técnica da montagem.


La hermosa palabra “montaje” significa la acción de armar algo. La palabra, si bien todavia, no se puso de moda, tiena todas las condiciones em potencia para transformar-se em corriente( ...) Así aparece el término “montaje de atracciones”( 2).


Seu cinema sofreu reflexos das transformações no cenário político da União Soviética e da atmosfera de controle e submissão ao Estado, em que os cineastas não podiam escolher os temas de seus filmes e seus projetos de trabalho eram submetidos à apreciação do Partido, cada roteiro tinha que ser analisado por repartições de censura antes de ser liberado e a equipe de produção muitas vezes indicadas por burocratas segundo critérios “políticos rasteiros” (3).


Sua filmografia é por demais conhecida, dentre os principais, destaca-se A greve (1924), O Encouraçado Potekin ( 1925), Outubro ( 1927), A Linha Geral ( 1929), Que Viva México ( 1931) inacabado; O Prado de Bezhin( 1935) inacabado; Alexandre Nevski ( 1938); Ivã, O terrível ( 1944-1945) em duas partes.


E Que Viva o México!


Em Maio de 1930, Eisenstein realiza uma viagem à Europa e à América do Norte com intenção de estudar o cinema sonoro e, certamente, livrar-se das pressões políticas que estava submetido. Dentre os trabalhos deste período, consta o projeto recusado de realizar um filme para a Paramount intitulado “Uma tragédia americana”, que segundo determinados estudiosos, mostrava-se não adequado à realidade do cinema americano.


Diz-se, também, que encorajado por Robert Flaherty e Diego Rivera começou a trabalhar em "Que viva México", sendo convidado por um político americano, candidato ao governo da Califórnia, para realizar o filme em dezembro de 1930, com fundos de Upton Sinclair. O filme pretendia resgatar a história daquele país das suas origens até a atualidade.


Consta que este projecto, que prometia tornar-se o mais importante e ousado do cineasta, salvo não tivesse um desfecho trágico por razões financeiras, chegou a ser parcialmente cancelado. Embora lhe tenha sido dito que o material filmado seria enviado para Moscou para ser montado, nunca chegou a ser visto de novo.


Eisenstein além de não ter acesso ao material filmado teve muitos problemas com a indústria cinematográfica, controlada por Boris Choumiatsky. Mediante os diversos cerceamentos ao seu trabalho, sofre de problemas de depressão nervosa (4).


Apesar de tantos impasses na história da montagem do filme, Que Viva o México revisto hoje, nos oferece imagens de tanta beleza e emoção que permanece como um clássico de um cinema construído sob o jugo do autoritarismo que vai além da dominação ideológica pela sua força de sentimentos e criação.


Alcino Leite Neto expressa uma idéia com a qual sintonizamos quando diz: A visão dos filmes de Eisenstein depois do fim da URSS (União das Repúblicas Soviéticas) e do colapso do comunismo coloca ao espectador, sem dúvida, um problema de ordem ideológica. Ele foi um dos grandes realizadores da propaganda comunista soviética. As imagens, no entanto, são tão belas e comoventes, a elaboração tão grandiosa, a invenção plástica tão rica que espectador nenhum fica insensível a elas.


Notas:
1. Serguei Eisenstein. Anotaciones de um Director de Cine. Editorial Progresso Moscu. Traducido del russo por Vicente E. Pertegaz. 1944.
2. Sergei Eisenstein, p.39.
3. Cf. Revolução e Contra-Revolução na trajetória de Eisenstein de Cristiane Nova. Texto extraído de site em internet.
4. Cf. idem.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Conversas Sobre Cinema: Pensatas
















Temos o imenso prazer de postar hoje um bate-papo sobre cinema.
Escolhemos o Jonga Olivieri http://jongas.blogspot.com/ que foi-nos apresentado através do blog do Andre Setaro. Jonga, de forma simpática e bem-humorada, tem escrito suas opiniões e idéias sobre as postagens que venho fazendo sistematicamente aqui neste blog, contribuindo para melhor estudo das relações entre cultura e política tomando como referência o cinema.

Enviei as perguntas e êle gentilmente as respondeu, antes porém disse: Na verdade, o André sabe muito mais de cinema do que eu. Nem se compara! Sou um curioso. Uma formiguinha diante dele. Sei alguma coisa e pesquiso sobre o assunto. Amo mesmo o assunto. Mas é que o Setaro é uma das pessoas que mais conhecem (e compreendem) cinema em toda a sua extensão neste país. Eu sempre digo pra ele, que ocupou a (competente) cadeira de Walter da Silveira. Você é feliz de estar freqüentando esta Oficina por ele organizada. Garanto que vai sair de lá sabendo muito mais que eu...

Um novo cinema, é possível? Escrevendo um ensaio em 1995, Susan Sontag, diz: Os cem anos do cinema parecem ter a forma de um ciclo de vida: um nascimento inevitável, o contínuo acúmulo de glórias e, na última década, o início de um declínio irreversível e degradante. Mas, profecia (...) se o cinema puder ser reestruturado, o será apenas mediante o nascimento de um novo tipo de amor ao cinema.

Pensar o cinema hoje, dialogar para encontrar as possibilidades de sua reestruturação, sem pretensão de encontrar todas as saídas para os labirintos em que está submerso, porém buscando dialogar, pelo menos isso, com os que dizem amar a sétima arte.

Blog: O que significa cinema para você?

Pensatas: Cinema é arte, entretenimento. Cinema é cultura, antes de mais nada. Conhecer cinemas de outros países é conhecer como vivem, o que pensam. É uma expressão universal de fácil assimilação.

Blog: Quais os seus melhores filmes ? eles influenciaram suas idéias?

Pensatas: São tantos e tão difíceis de enumerar e citar. “Cidadão Kane”, poderia ser um que foi muito marcante. O lado emocional infuencia, e muito. Quando assisti “O cão andaluz” e “A idade do ouro” em uma sessão única no MAM do Rio de Janeiro, foi uma emoção tão forte, que somente quando os revi, anos depois, pude observar detalhes com mais atenção. Mas, autores são determinantes. Fellini, Resnais, Glauber, Visconti, Bergman, são diretores que deixaram marcas, não só em mim, mas em todos os que gostam da sétima arte.
Quanto a influenciar idéias, sempre ajudam. Todos esses autores são humanistas, todos pensam (ou pensavam) na intimidade, no social. Cada um a seu modo, mas pensavam. Tiveram que deixar alguma contribuição ao pensamento. Sem dúvida nenhuma.

Blog: Qual a função do cinema na contemporaneidade ? A sétima arte tem um papel importante no mundo? Qual?

Pensatas: O cinema atravessa um período de crise. Uma crise de entressafra. Capito? A tecnologia, o computador, certas facilidades o estão colocando contra a parede. Muito de sua linguagem e gramática, estão sofrendo uma ruptura. Será bom? Será ruim? Só o tempo pode dizer. Aquilo que para mim é “subversivo”, posso estar achando porque não estou conseguindo assimilar mudanças muito rápidas e radicais.
O ser humano tem a tendência de estabelecer critérios que podem lhe ser uma limitação. Mais ainda: uma camisa de força. Por isso, ao ver toda esta mudança no cinema eu paro pra pensar, observar. E, por enquanto não concluir nada. Mais uma vez, só o tempo poderá depurar, filtrar o que é bom e o que é ruim do que está acontecendo.
Quando você pergunta sobre a importância do cinema no mundo, eu digo que é só olhar ao nosso redor. Está certo que a televisão hoje, até mais do que o cinema nos leva a qualquer lugar, naquele instante, ao vivo e a cores. Mas o cinema tem uma nobreza que a TV ainda não tem. Digo ainda, porque a HDTV vai transformar muito este cenário. Lembro-me de ter lido, há mais de quinze anos atrás, que no “futuro” íamos assistir filmes transmitidos por satélites simultaneamente para todo o mundo. Na época eram palavras que soavam a um visionário. E hoje? Alguém duvida?

Blog: Quais os principais problemas do cinema hoje?

Pensatas: Exatamente, como disse um pouco na resposta anterior. Tem que evoluir. Tem que depurar. Tem que filtrar o que é bom e o que não é nas inovações tecnológicas que vão aparecendo. Foi assim com o advento do som. Foi assim com a cor, com o cinemascope. É assim com a tecnologia digital. No início tem o deslumbramento da descoberta. O exagero dos modistas. Agora, sem sombra de dúvida um problemaço é o desaparecimento de grandes diretores sem que apareçam outros tão bons quanto eles. É necessário que surjam. É premente que apareçam. E eu não os vejo... isto é preocupante demais.

Blog: O que você considera os maiores perigos e as maiores possibilidades da indústria cinematográfica hoje?

Pensatas: Cair na tentação do “tecnicismo” barato. Enveredar pelos caminhos mais simples do simplesmente apertar botões. Não renovar sua “inteligentsia”, acomodando-se no marasmo de produções tolas, idiotas, barulhentas e vazias. O cinema é um fenômeno da cultura de massas. Ou foi. Porque hoje, as salas são cada vez menores, o público cada vez mais desatento à função real da cinematografia. Fruto da alienação predominante no capitalismo ‘pós-moderno” em que vivemos.


P.S. Continuaremos o diálogo com estudiosos(as) da sétima arte, iniciado nos seminários on line e pretendendo continuidade, com mais sistemática e seriedade, sem distinção de escolas e vertentes, com os que amam e se interessam pela linguagem e produção cinematográfica.
Salvador, outubro de 2007.

sábado, 6 de outubro de 2007

Clássicos do Cinema


A obra de Carl Theodor Dreyer: breves anotações.

Sem dúvida, a oportunidade de conhecer os filmes do diretor de cinema dinamarquês Carl Theodor Dreyer associado aos comentários críticos do André Setaro, permitem uma investigação mais aguçada e instigante sobre este diretor e sua obra cinematográfica. Com as chaves destas indicações, consultamos os dados disponíveis no curto tempo que dispomos na Oficina de Introdução ao Cinema. O que segue são breves notas desta caminhada ainda em construção (1).

Carl Theodor Dreyer (1889-1968) tem sido apresentado nos textos consultados, como um diretor voltado para a temática da religiosidade, da espiritualidade e da redenção. A densidade de sua obra localiza-se, principalmente, nos anos 20, embora exista certa continuidade na sua produção que se finda em 1964, com a realização de Gertrud. Os dados disponíveis da sua biografia assinalam seu processo de adoção por uma família dinamarquesa luterana, tendo recebido o nome do seu pai adotivo e sido fortemente marcado pelas heranças familiares. Ocupou funções em antigos e importantes jornais da Dinamarca (Berlingske Tindende e Politiken) realizando seu primeiro filme aos vinte e nove anos (The president, 1919).

Tomemos o filme A paixão de Joana D’Arc (La Passion de Jeanne D’Arc, 1928) nas palavras do seu próprio autor. Seu interesse pelo tema da virgem de Orleans relacionava-se ao processo de canonização de Joana D’Arc, em 1920, na França, e a possibilidade de acesso ao material histórico, embora, diz ele, Anatole France e Bernard Shaw tiveram também o mesmo interesse pela virgem. Sabia da demanda que comportava um projeto desta natureza, das incursões que teria que realizar para mover-se pelo período renascentista. Foi preciso reconstruir processos, estudar os documentos, mas pareceu-lhe que a dimensão temporal não era o grande dificultador. Diz ele: Eu quis interpretar o sagrado para o triunfo da alma sobre a vida (2).

Com este propósito, a escolha da técnica em close-ups pareceu-lhe o caminho mais fértil. O close-up como instrumento para facultar ao espectador adentrar-se nas expressões reveladoras dos personagens e, assim, poder captar seus espíritos. Alcançar a verdade a ser dita, ou seja, evidenciar o processo de beatificação. A técnica dispensava as maquiagens habituais e glamorizações. My actors were not allowed to touch makeup and power puffs (3).

Renée Marie Falconetti (1892-1946) foi a escolhida para o papel de Joana D’Arc. Há que se reconstruir ainda a biografia desta artista. Sabe-se que trabalhou como comediante em palcos de teatro antes de ter sido convidada para o que viria a ser seu único filme. Encontra-se disponível em DVD, em locadora na cidade, entrevista sobre passagens de sua trajetória em que menciona a radicalidade do método de obter tamanha expressividade. Para Dreyer, porém, Falconetti com a sua corajosa Joana D’Arc, conseguiu exprimir o que chamou de “the martyr’s reincarnation”.

A obra de Dreyer merece ser mais investigada. Para André Setaro sua temática centrada no ser humano, observa valores voltados para a tolerância, a bondade, o sofrimento, o amor e a pureza espiritual, enfatizando os aspectos da fé e da relação do homem com Deus. Sua técnica narrativa construída pela herança do expressionismo alemão e principais criadores do cinema soviético, traz uma marca própria e inigualável evidenciada, principalmente, após o filme A paixão de Joana D’Arc.

Finalizando, devo dizer que já escrevi neste blog brevíssimo texto sobre o impacto do filme quando da sua primeira exibição nesta tela do meu computador. Como bem próprio de iniciantes querendo expressar seus comentários sobre o observado, somente agora pude perceber o quanto me escapou da técnica narrativa, observação que se constrói a medida do paciente e cuidadoso envolvimento com a linguagem cinematográfica.


Notas:
(1) Dor e Beleza em Carl Theodor Dreyer por André Setaro. Texto divulgado na Oficina de Introdução ao Cinema. Outubro de 2007.
(2) The passion of Joan of Arc. Essay by Carl Theodor Dreyer. Reprinted by permission of the Danish Film Institute, Copenhagen, Denmark, 2000.
(3) Idem.
Acima, cena de La passion de Jeanne D'Arc, 1928.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Oficina de Introdução ao Cinema


Plagiando cadáver com batatas degustado ao molho inglês (1)



A Oficina de Introdução ao Cinema coordenada por André Setaro, ainda em seus encontros iniciais, anuncia um marco para descobertas na sétima arte. Uma caminhada pela filmografia dos clássicos, fundamentada pelos comentários de quem dedica- se a buscar os sentidos desta linguagem, indicando-nos que a chave está em desvendar os elos da sintaxe e os elos semânticos, ou seja, perceber que o cinema contém uma nobreza que está subsumida em sua estrutura audiovisual, em seus elos de linguagem.

Nesta direção, nada como seguir as pistas de um filme base para análise, em que os aprendizes possam educar seu olhar tão bombardeado pelo exagero das histórias_ a podridão em que estamos submersos_ para que possam perceber as sutilezas da nobreza estilística e similar ao arqueólogo na busca dos índices, possam descobrir as Fugas. Nada mal para começo de percurso, ou seja, sair dos limites dos cânones da fábula para adentrar-se no âmbito das narrativas, sem esquecer de que estão imbricadas e compõem-se por elos.

O ensaio que tenho a honra de plagiar o título modificando-o, nos apresenta o mago do suspense num dos seus melhores filmes da sua fase final, Alfred Hitchcock (1899-1980) e Frenesi (Frenzy, 1972). (2) Com as ferramentas da crítica literária e da literatura comparada, Davi Arrigucci Jr. nos apresenta uma das melhores análises fílmicas que já li recentemente e possibilidades de articular os elos de linguagem que André Setaro mencionava na abertura da Oficina.
Hitchcock, como nos foi apresentado, deve ser levado a sério e considerado sob a perspectiva da arte, ainda que os procedimentos e artimanhas eivadas de meios cômicos, tal como a ducha de água fria que desprende vapor quente, do assassinato a sangue frio, dentre outros, nos dão conta de um artista moderno de infalível ironia e espírito paródico, que tem por princípio técnico o desmanche de toda seriedade elevada. (3)

Seu cinema expressa a arte de saber construir a destruição_ a arte de destruir_, ou seja, a arte de contar bem uma história e construir um enredo convincente com elementos multifacetados, dispersos e heterogêneos, que dêem conta de possíveis elucidações de um crime, ou talvez, implicados na violência de um assassinato, por exemplo.

Frénésie, palavra francesa para designar um estado mental violento à beira do delírio ou loucura, o filme Frenesi apresenta uma narrativa que irá brincar o tempo todo com várias expressões francesas referentes à paixão amorosa e gastronômica, uma soupe de pouisson inventada pela mulher do detetive da Scotland Yard, um crime de passion atribuído ao ex-marido da proprietária de uma agência de matrimônios separados após dez anos de casamento, repugnantes caille aux raisins e pieds de porc à La mode de Caen servidos ao marido, misturados ao tema central do filme, a seguir, uma série de crimes cometidos por um estrangulador de mulheres, numa caçada que se efetiva pelo uso de uma gravata. O terror apavora Londres, em meio a hortaliças, flores, frutas, legumes, cereais e sobretudo batatas, do grande mercado de Covent Garden à tradicional e elegante praça da Royal Opera House e antigo jardim da Abadia de Westminster.

Passeando com desenvoltura pela biografia e obra de Hitch, Davi Arriguci Jr recorta algumas sequências emblemáticas do filme nos permitindo perceber o método de trabalho do autor e sua sabedoria destrutiva: o corpo estranho que surge às margens do Tâmisa com um nó de gravata literalmente em volta do pescoço acompanhado por um travelling de abertura majestoso, a câmera navega em sobrevôo ao longo do rio, sempre do alto, até que então começa a descer, enquadra e passa debaixo da ponte de Londres de alças erguidas, arrastando-nos com ela nessa visão de cima, por sobre as águas (...).

O nó da gravata que Richard Blaney rearruma em frente ao espelho preparando-se para o trabalho e o laço que o prenderá contra a sua vontade no emaranhado crime e que serve também de instrumento para os assassinatos, fazem parte da ironia dramática tecida por Hitchcock, que certamente não estava despercebido desta fonte, acrescida também da criação de atmosfera propiciada pela música, assinala Arriguci. O nó da gravata, assim concebido, representa um elemento decisivo de armarração interna do enredo enquanto forma artística.

Além do nó da gravata, mais significativo ainda, o alfinete preso à gravata, exerce a função de criar uma caracterização marcante do estrangulador, Bob Rusk, que usa um R com um duvidoso brilhante preso à gravata. Personagem benevolente e paternal mostra-se atento às solicitações e tem a pretensão de elegância e distinção escondendo a vulgaridade e grosseria que o demarca. Analisando os elementos da sintaxe do filme, como um arqueólogo em perseguição aos índices encontrados, Arriguci lembra que o detalhe do alfinete da gravata_magnetiza diversos campos semânticos contíguos_do modo de ser, do ambiente do mercado, dos produtos da alimentação e da comida, da sexualidade, do casamento, do crime, da violência_ articulando-os numa síntese única.

O suspense, o terror e o medo, ingredientes marcantes em Hitchcock, distintos nas diferentes cenas que evidenciarão o estupro e o assassinato de Brenda Blaney, é mais uma afronta à regra, pois anunciado e preparado em conta-gotas, vai-se apresentando aos poucos em gestos repetidos, à vista do espectador. O assassino anuncia seu desejo de condenação de morte à vítima: você é meu tipo de mulher. O violador repete a palavra lovely, diante de uma vítima que busca refúgio numa oração inútil. A ousadia transgressora dessas imagens, diz Arriguci, introduz na cena a difícil poesia do macabro e lembra Edgard A. Poe dos começos da aprendizagem de Hitchcock.

A fusão do macabro e cômico virá a seguir, a próxima vítima Barbara “Babs” Milligan, ao ser assassinada será oculta num saco de batatas. E a célebre frase repete-se: “Não sei se você sabe, Babs, mas você faz meu tipo de mulher.” As inúmeras interpretações das cenas seguintes não serão desenvolvidas neste espaço, mesmo porque repletas de decifrações e jogos de linguagem, um convite à leitura e diálogo para iniciantes na arte de analisar e perceber os elos da sintaxe e da semântica cinematográfica.


NOTAS:
(1) Estas breves notas foram formuladas a partir da Oficina de Introdução ao Cinema, após leitura do ensaio “Cadáver com batatas e molho inglês” de Davi Arriguci Jr. divulgado pelo coordenador da oficina.
(2) Alfred Hitchcock nasceu em Leytonstone, em Essex (atual Londres). Filho de Emma e William Hitchcock, seu pai vendia frutas e verduras, e ele tinha mais dois irmãos. Recebeu uma rígida educação católica na escola londrina St. Ignatius College, cujo ensino era baseado nos ensinamentos do jesuíta Inácio de Loyola. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfred_Hitchcock.
(3) Os extratos de trechos extraídos do ensaio e citado nestas breves notas estão destacados em itálico no corpo do texto.

Setembro de 2007. Stela Borges de Almeida.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Mostra Kenji Mizoguchi.




Cinéfila desde que nasci considerei com disposição a oportunidade de atender ao convite que divulgava a mostra do mestre japonês, mesmo porque raras vezes os filmes clássicos, desta natureza, são exibidos no circuito local e as mostras imperdíveis ainda permanecem no eixo Rio-Sul.


Adianto que ainda não li os artigos dos críticos de cinema e comentaristas do assunto, de modo que vou tecer impressões primeiríssimas, ressalvando que não sou estudiosa e conhecedora da sétima arte, apenas uma apaixonada amadora da tela. Para os filmes subsequentes da mostra, consultei os jornais locais e as fichas técnicas dos filmes.


A Música de Gion (Gion Bayashi, 1953)


Este filme transportou-me para o universo feminino japonês na perspectiva de Mizoguchi. Quase todo ambientado em planos internos, narra à história de iniciação de uma jovem (gueixa) nos mistérios da aceitação e resistência das relações amorosas com o sexo masculino. Trata-se de inserir uma jovem na emocionante aventura com o outro sexo, ritual que envolve um conjunto de aprendizados que requerem talento e preparação para os encontros e embates. Não é qualquer encontro. Representa a primeira relação amorosa com um influente empresário de Kioto, no qual a jovem precisa mostrar-se preparada para a difícil arte do amor. Não se trata de uma escolha pessoal e de encantamento, sinaliza o processo de iniciação em que delicadeza, sedução, beleza, entre outras virtudes, fazem parte do aprendizado.


A película em preto e branco, captando efeitos de luz e sombras, apresenta os personagens num jogo de movimentos lentos e suaves, convidando o espectador à observação dos ambientes, da indumentária, dos gestos e teatralidade das situações apresentadas, dos costumes e tradições japonesas milenares e permanentes. Uma beleza de cenários humanos em movimento.
Centrado nas condições sócio-econômicas que vivia o Japão no período, o filme denuncia as relações de pobreza e subserviência que atingia principalmente as mulheres, impondo-lhes aceitar os limites das relações de poder, reverenciando sempre o mais forte, no caso, facultar aos que detinham posses suas escolhas amorosas. A resistência de Moyei, a jovem iniciante, é retratada numa cena engraçada fazendo a platéia manifestar seu primeiro sorriso. O empresário trava uma luta corporal com Moyei e num plano seguinte reaparece numa cama de hospital com faixas que lhe envolvem a boca, mostrando a impossibilidade de usar sua língua, pelo menos em curto prazo.
Porém, a saída da precariedade e condições de pobreza para a família de Moyei vai-se impondo e a pressão para conduzi-la a aceitação da condição de gueixa determinará sua história e tal como à da sua irmã mais velha, a tradição prevalecerá.

Oharu, a vida de uma cortesã (Saikaku ichidai Onna, 1952)

Acompanhar a mostra exige dedicação. Não consegui acompanhar o rítmo da programação, a distribuição dos filmes requer um cuidadoso trabalho de articulação entre agências do governo e consulados, de modo que o acesso aos filmes se não acontece no circuito previsto, torna-se inviável. Contei com a atenção e fácil comunicação do coordenador da mostra que me possibilitou assistir uma versão do filme, com legendas em inglês.
Oharu, narra a história de uma prostituta no Japão do século XVII, suas recordações e seus desejos. Mizoguchi inspirou-se no romance A vida de uma mulher sensual_ Koshoku Ichidai Onna de Saikaku Ihara (1642-1693), uma obra clássica voltada para análise das relações entre os sexos, sob uma perspectiva crítica.
Refugiada da polícia num antigo templo, Oharu já velha, observa estátuas de samurais e recorda antigos amores, fazendo-nos conhecer sua trajetória. Fora uma jovem atraente enquanto dama de companhia no Palácio do Imperador, cortejada pelo nobre samurai Katsunosuke. Morto este num encontro clandestino vê-se banida com a família tornando-se dançarina e, posteriormente, concubina do importante senhor feudal Matsudaira.
Com o nascimento de um herdeiro, vê-se afastada e devolvida à casa paterna, que a submete à venda. Oharo torna-se cortesã. Permanece nesta condição até que um dos seus clientes será desmascarado como falsário. Busca, então, emprego em casa de um comerciante que irá despedi-la ao descobrir seu passado de cortesã. Breves momentos de paz irão aparecer em sua vida quando decide casar-se com Yakichi, comerciante honesto que será posteriormente assassinado por bandidos. Com Fumikichi, um empregado do comerciante, vive certo período até que este rouba do patrão para tentarem fugir, sendo presos. Com esta trajetória tumultuada por mortes, banimentos, prisão, já envelhecida e doente, Oharu passa a mendigar pelas estradas alimentada pelo desejo de encontrar seu único filho que se tornou o novo senhor do clã Matsudaira.
Belíssima película em preto e branco dos costumes da época, Oharu ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de 1952. Aos cinéfilos ocidentalizados permite um conhecimento das relações de domínio e poder entre os sexos num Japão medieval e nos indica a singeleza e violência dos traços de uma cultura oriental marcada pela tradição. Novamente, neste filme, nos sensibilizam os quadros construídos pela câmara atenta do Mizoguchi. Os planos internos nos interiores dos templos, as seqüencias que acompanham as falas das cortesãs e suas disputas pelo predomínio da beleza, quer trajando suas melhores indumentárias de seda ou quer maquiando-se para agradar seus senhores, são revestidas de imaginação e sedução.

Contos da Lua Vaga (Ugetsu Monogatari, 1953)

As notícias sobre a mostra foram veiculadas nos jornais da cidade com destaque para o filme Contos da Lua Vaga. Referências, principalmente, para o trato poético que Mizoguchi constrói neste filme sobre a representação da história de duas famílias dedicadas a produzir peças em cerâmica. A vida de um oleiro pobre entregue a uma misteriosa dama e à suntuosidade de seu castelo, seus enfrentamentos em plena guerra civil japonesa, revela uma atmosfera de encantamento, permeada por uma assombrosa capacidade de plasmar em imagens em movimento o universo onírico e fantasmagórico de um Japão mergulhado em sangue. (cf. A Tarde, Caderno 2, de 28.07.2007. Adalberto Meireles in O cinema de Mizoguchi). O evento mereceu também destaque do André Setaro, o que significa prestar mais atenção ao assunto. Com o título Supra-sumo de Mizoguchi na Walter da Silveira, Setaro permite ao leitor além de informar-se sobre a mostra, atentar para a singularidade do mestre da cinematografia japonesa e da importância de acesso a uma obra histórica de valor nesta cidade (cf. Tribuna da Bahia, 26.07.2007).
O filme ambientado durante a guerra civil japonesa, em 1583, apresenta uma família que vive do fabrico de utensílios de cerâmica viajando pelas redondezas do Lago Biya, a leste de Kyoto, enfrentando os saques e pilhamentos usuais no período, para vender seus produtos. Dada as dificuldades da empreitada, Genjuro, o pobre oleiro, decide prosseguir viagem com seu cunhado Tobei e mandar de volta para casa sua mulher e filho. Por sorte, os oleiros vendem todas as peças de cerâmica a uma requintada e rica dama que admirada fica encantada pelo trabalho convida Genjuro para conhecer sua mansão. Morando sozinha com uma criada, Wakasa e Gengero envolvem-se num encontro cheio de sedução esquecendo de voltar para casa.
Quanto a Tobei, aproveita a venda das peças para realizar o sonho de tornar-se samurai. Embora sob protestos de sua mulher, compra armas e apodera-se da cabeça de um general decapitado e entrega- o como troféu a um exército inimigo. Deste feito, torna-se general, porém a façanha custa-lhe caro, descobre que sua mulher foi obrigada a prostituir-se, fazendo-o recuar nos seus projetos. Ambos, Genjuro e Tobei, dão conta que se envolveram em fantasias. Genjuro percebe que Wakasa é uma representação fantasmagórica e volta para sua mulher que o acolhe, porém a relação não será mais a mesma.

Há dois níveis de representação, os fatos que acontecem na realidade e os fatos que são produtos de visões e acontecimentos surreais, ambos mesclados numa prodigiosa fusão. As imagens em preto e branco, a beleza e o mistério da confecção das peças em cerâmica que não são destruídas pelos saques dos soldados do Império, a alegria da família do oleiro ao verificar que suas peças tinham sobrevivido ao massacre, tudo isso e muito mais conferiram ao filme o prêmio Leão de Prata no Festival de Veneza em 1953 e a Medalha de Ouro do Festival de Edimburgo, em 1955.

Os amantes crucificados (Chikamatsu Monogatari, 1954)

A narrativa construída inspira-se em uma peça teatral do dramaturgo Monzaemon Chikamatsu (1653-1742) sobre uma história de amor ambientada numa sociedade japonesa medieval em declínio. Neste relato de história de amor impossível, Osan e Mohei serão os protagonistas centrais submetidos aos valores morais predominantes em Kyoto, no final do século XVII.
Ishun, o Grande Impressor, encarregado da decoração do palácio imperial e da publicação de calendários, detém um cargo que lhe dá direito ao uso da espada como os Samurais e o monopólio dos calendários que lhe garante uma renda substancial. Ishun usa dos seus privilégios com arrogância, em sua vida amorosa, porém, sua esposa Osan encontra-se insatisfeita e descontente.
Osan, para resolver dificuldades de seu irmão Doki que quer resgatar uma dívida, pedirá ajuda a Mohei, empregado na oficina do seu marido. Mohei tentará usar a assinatura do Grande Impressor e será descoberto confessando sua culpa sem mencionar o pedido de Osan. Otama, criada da casa apaixonada por Mohei, o defenderá afirmando que ela provocou o incidente. Este incidente acenderá a fúria do Grande Impressor que mandará prender Mohei.
Osan informada que o marido vinha tentando seduzir a criada, Otama, decide surpreendê-lo e desmascarar a infidelidade trocando de quarto com ela. Durante a noite, porém, Mohei escapa da prisão e vai ao quarto de Otama, encontrando Osan. Surpreendidos, são obrigados a fugir e permanecerão encantados e perdidos de amores às margens do Lago Biwa. Apaixonados, decidem correr o risco de enfrentar a cruel e sangrenta perseguição de Ishun.
A crucificação dos amantes revela o entrelaçado jogo amoroso dos apaixonados que transgridem os códigos de uma sociedade em declínio e são submetidos aos castigos que lhes levarão à morte. A poesia de Muzoguchi mostrada na tela no enlevado e melodramático encontro de amantes nos possibilita contemplar e perceber, mais uma vez, sua maestria num belo filme de amor e morte.

O Intendente Sansho (Sansho Sayu, 1954)

O filme tem como fonte o romance de Ogai Mori (1862-1922) que, por sua vez, foi inspirado em conto popular conhecido como Anju e Zushio. Diz a tradição que no final do período Heian, século XI-XII, Tamaki, esposa de Masauji Taira, peregrinava pela praia de Echigo acompanhada por seu filho Zushio, sua filha Anju e uma criada, uma vez que seu marido encontrava-se exilado por tentar defender camponeses pobres. Nesta jornada serão enganados por mercadores de escravos e Tamaki é obrigada a separar-se de seus filhos sendo conduzida à longínqua Ilha Sado. Seus filhos serão vendidos como escravos ao cruel intendente Sansho e a criada se mata.
Dez anos depois, chegará aos domínios do intendente Sansho uma escrava vinda da Ilha Sado que sabe cantar uma canção triste conhecida de Zushio e Anju, é um lamento triste que evoca seus nomes. Os irmãos descobrem, então, que a escrava havia aprendido a canção com uma mulher que a cantava todos os dias na ilha. Certos que se trata de sua mãe, resolvem preparar suas fugas. Na impossibilidade de fugirem os dois, sem que sejam percebidos, Anju atrai os guardas e deste modo, sacrificará sua vida. Zushio conseguirá refugiar-se em Kyoto e apelando para o conselheiro do imperador demonstrará que é filho de Masuji Taira, considerado defensor dos camponeses e escravos.
Nomeado governador de Tango, uma província onde ficava o campo de trabalho do intendente Sansho, Zushio liberta todos os escravos, confisca a propriedade, posteriormente, renunciará ao cargo de governador e seguirá para a ilha Sado à procura de sua mãe. O encontro reveste-se de dor.
Belíssimo filme repleto de poesia. O lamento triste de Tamaki de chamada dos filhos ecoa pelos arredores da ilha até o campo onde eles se encontram, parece transcender à dura realidade em que se encontram escravizados, mostra uma mãe partida pela dor. O filme recebeu o Leão de Prata em 1954, Mizoguchi recebe pela terceira vez consecutiva o prêmio do Festival de Veneza.

A nova saga do clã Taira. O herói sagrado. (Shin Heike Monogatari, 1955).

Inspirado no romance de Eiji Yoshikawa, o filme narra a ascensão e queda do clã Taira e seus enfrentamentos com o clã Geiji. Neste filme, podem-se acompanhar os embates sangrentos e cruéis entre os diferentes clãs na busca da supremacia do poder e domínio, mostrando a supremacia econômica e política do Japão do século XII.
Chamou-me atenção um plano do filme que evidencia a força do chefe do clã ao expulsar um grupo de monges pesadamente armados com seus sabres e que recuam em retirada em massa acuados pelo comando, em gritos de ordem, do chefe rival. O efeito visual desta cena é de fazer inveja a Spielberg.

THE END

A mostra, sem dúvida, trouxe para aos cinéfilos e amantes da sétima arte a oportunidade única de rever, para alguns, ou ver pela primeira vez, para outros, o talentoso trabalho do cineasta japonês. Motivada pelo desejo de querer escrever sobre o tema para poder pensar mais sobre o cinema e suas relações com a cultura e a política, fiquei indecisa e tímida. Resolvi consultar especialistas na temática. Gosto de ouvir os iniciados. E assim, concluo, qualquer pessoa pode amar Kenji Mizoguchi, pensava Gramsci, desde que lhe seja dada condições para perceber a estética da sua poesia. A estrutura da obra cinematográfica, bem isso é outra coisa e continuarei perguntando ao André Setaro.
Acima, cena do filme Contos da Lua Vaga, 1953.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Cinema Mudo. Dinamarca_1927.






O martírio de Joana D’Arc
(La passion de Jeanne D’Arc, 1927).

Pérola do cinema mudo, filmado na França em 1927, desaparecido em sucessivas destruições e proibições, finalmente encontrado numa instituição psiquiátrica na Noruega, mostram os letreiros iniciais do histórico filme de Carl T.Dreyer (1889-1968) recuperado em 1981, numa cópia dinamarquesa do original.

Os autos do processo consultados na Biblioteca de La Chambre, Paris, servirão de testemunho do julgamento de Joana D’Arc por uma corte de juízes da Igreja, registrando o seu penoso e conflitante embate diante de representantes da Igreja, dispostos a arrancarem seu pedido de arrependimento e negação do que consideram um insulto à fé cristã. Seu pecado: Joana D’Arc acredita ser uma serva enviada e filha de Deus. Seu castigo: pelo sacrilégio será queimada viva na fogueira.

O filme mudo, composto pela técnica de closes de rosto, grande maioria das cenas, representava um método para atender ao misticismo e realismo segundo André Bazin, consistindo em tomar o rosto como um documento de expressão. Neste caso, o rosto de Renée Maria Falconetti (1892-1946), atriz de teatro convidada por Dreyer, simboliza o calvário a que está submetida a personagem diante de uma confraria disposta a arrancar-lhe sem piedade uma confissão de arrependimento e culpa pelos pecados que a julgam ter cometido. Seu rosto está dilacerado pela dor, a comunicação dos sentimentos faz-se pelos grandes olhos da personagem, num rosto com traços masculinos, cabelos cortados bem rentes, lágrimas que de vez em quando denotam sua aflição.

Joana D’Arc responde aos seus algozes, jura dizer a verdade, não mais do que a verdade. Querem saber se ela veio para salvar a França, se Deus odeia os ingleses, se o anjo tem asas, se estão vestidos ou nus, se é Deus que a ordena vestir-se como homem, que recompensa espera receber de Deus. O inquérito longo passa pelo escárnio e fúria dos seus algozes. Joana D’Arc tem apenas 19 anos, não sabe ler, está amedrontada diante de tantas acusações.
Em processos inquisitoriais há sempre os personagens maus e os bonzinhos, na realidade e na ficção. Um padre bonzinho tenta conquistar sua atenção, dizer-lhe da sua simpatia. Tenta convencê-la a confessar, não ir para a prisão. Há também os estrategistas, falsificam a assinatura do rei para tentar obter seu arrependimento. Mas a filha de Deus quer apenas a ajuda do Pai. Quer assistir uma missa e professar sua fé cristã. Sem a sua confissão, resta-lhe apenas a câmara de tortura.

A tortura não apenas se faz pelo interrogatório, mas acompanhada pelo escárnio, pela ameaça do fogo do inferno, pela calúnia e acusação de ser representante do diabo, de ter visões do Satã, de ser abandonada sozinha e rejeitada. E a crença firme da acusada: Sozinha, sim, mas com Deus. Resiste às acusações, não se entrega.

O processo demorado leva-a a exaustão. Fraca e abalada Joana D’Arc submete-se à sangria e aceita os sacramentos oferecidos. Como absolvição, não mais será queimada viva, apenas destinada à prisão perpétua. Antes, se não assinar sua declaração de culpa, não será absolvida. Resiste novamente, não assinará. Arrepende-se de ter se submetido às ameaças dos seus algozes. Teve medo de morrer na fogueira, continuará afirmando que é uma enviada de Deus, sua filha. Aceita o martírio.
O processo de preparação para a morte mostra a firmeza de Joana D’Arc para o encontro com Deus no paraíso, acredita que seu martírio levará à sua libertação. Libertação da agonia a que se encontra submetida. Seus algozes exultam. O povo que assiste contesta: Queimaram uma santa!
O filme mudo, em película preto/ branca, fala pelas imagens. Nesta cópia restaurada a trilha musical envolve o espectador no mundo renascentista do século XV, traz dignidade e sobriedade às cenas. A Escola dos Annales vai-se beneficiar, posteriormente, nos seus estudos historiográficos, da atenção à linguagem cinematográfica como um documento valioso para reconstrução da memória e das conjunturas, seguramente será Marc Ferro um dos mais entusiasta defensor desta idéia.

O filme além de reconstruir um documento histórico pelas atas e minutas de um processo de julgamento renascentista, por si só de um valor historiográfico exemplar, denuncia a violência cometida pela Igreja nos atos inquisitoriais. Prática que nos acompanha por milênios. A cópia do filme consultada nos oferece ainda dois depoimentos encantadores: uma entrevista da filha de Renée Falconetti (Joana D’Arc) e um texto de André Bazin comentando o filme.