quinta-feira, 29 de abril de 2010

Andrei Tarkovski






















Continuando a leitura do Andrei Tarkovski, reproduzo do seu filme STALKER, a ótica interpretativa de Slavoj Zizek. Uma forma que encontrei para criar um diálogo com as categorias e conceitos esboçados por Zizek, foi tentar confrontar com outras leituras interpretativas, mas ainda me pareceu um percurso incompleto. No momento ainda não disponho de todos os elementos da narrativa cinematográfica deste realizador, um trabalho que tecerei aos poucos e na medida em que dispuser de pontos de referências, ainda não concluídos. Do meu ponto de vista, o desafio de aceitar a provocação ainda inconclusa põe-me em terreno pedregoso, porém aproxima-me de um modus operandi que só poderei avançar se me dispuser a enfrentar os riscos da caminhada. Segue extratos do texto.


STALKER
(...) outra obra prima de fição científica de Tarkovski, fornece o contraponto para essa Coisa demasiado presente: o vazio de uma zona proibida. Numa região cinzenta e anônima, um lugar conhecido como a zona foi visitado vinte anos antes por uma entidade estranha e misteriosa ( meteorito, alienígenas...) que deixou resíduos. Acredita-se que as pessoas que penetram nessa zona, isolada e vigiada por guardas armados, desapareceram. os stalkers são aventureiros que, mediante um pagamento adequado, conduzem as pessoas à zona e à misteriosa câmara no coração dessa, na qual nossos desejos mais profundos são supostamente satisfeitos. O filme conta a história de um stalker - um homem comum com mulher e uma filha deficiente que tem o poder sobrenatural de mover objetos à distância-, que leva à zona dois intelctuais, um escritor e um cientista. Quando finalmente chegam à câmara, eles, por falta de fé, não conseguem formular seus desejos, enquanto o stalker, por seu lado, parece obter uma resposta para seu desejo de melhora da filha.

(...) Os próprios stalkers são apresentados fundamentalmente como personagens aventureiros; não como indivíduos devotados a uma busca espiritual tormentosa, mas como rapinadores que preparam expedições de pilhagem, tal como os árabes organizavam incursões nas pirâmides- outra Zona- para ocidentais ricos. E, de fato, as pirâmides não seriam, de acordo com a literatura científica popular, vestígios de uma inteligência extraterrestre? Assim, a Zona não é um espaço fantasmático puramente mental onde encontramos ( ou no qual projetamos) a verdade sobre nós próprios, mas ( como Solaris no romance de Lem) a presença material, o Real de uma alteridade absoluta incompatível com as regras e leis do nosso universo.

(...) Em Stalker, tal como em Solaris, a "mistificação idealista" de Tarkovski consiste no fato de ele recuar perante essa alteridade radical da Coisa sem sentido e reduzir o encontro com a Coisa à "viagem interior" em direção à nossa vontade.

(...) Para um cidadão da defunta União Soviética, a noção de uma zona proibida suscita ( pelo menos) cinco associações. A zona é: (1) o gulag, isto é, um território prisonal isolado; (2) um território envenenado ou tornado inabitável por qualquer catástrofe tecnológica ( boquìmica, nuclear...)como Chernobil; (3) a área exclusiva onde vive a nomenklatura; (4) um território estrangeiro de acesso proibido ( como Berlim ocidental inserida em plena RDA); (5)uma área atingida por um meteorito ( como Tunguska, na Sibéria). A questão é que, evidentemente, a pergunta: "Então, qual é o verdadeiro significado da zona?" é falsa e enganadora. De fato, o que caracteriza o que existe para lá do limite é a própria indeterminação, e existem diferentes conteúdos positivos que podem preencher o vazio.

Stalker é um bom exemplo dessa lógica paradoxal do limite que separa nossa realidade cotidiana do espaço fantasmático. Em Stalker, esse espaço fantasmático é a misteriosa "zona", o território proibido onde o impossível acontece, onde os desejos secretos se concretizam, onde podemos encontar dispositivos tecnológicos ainda não inventados em nossa relaidade de todos os dias etc. Numa leitura materialista de Tarkovski, temos de insistir no papel construtivo do limite. Com efeito, essa zona misteriosa é efetivamente idêntica a nossa realidade comum; o que lhe confere a aura de mistério é o próprio limite, isto é, o fato de a zona ser considerada inacessível, proibida.



Tenho a impressão de que como provocação, para uma leitura interpretativa do filme, enuncia-se o percurso que Zizek pretende expor para realizar seu ensaio sobre Andrei Tarkovski, especificamente, sobre os filmes Solaris, Nostalgia, O Sacrifício, e, finalmente, Stalker. Sua analise averigua como o tema da Coisa apareçe dentro do espaço diegético da narrativa cinematográfica tomando como referência Jacques Lacan que define a arte a partir de sua relação com a Coisa: em seu seminário A Ética da Psicanálise. Lacan afirma que a arte enquanto tal está sempre organizada em torno do Vazio central da Coisa impossível-real. Lembra Zizek que esta afirmação deve ser interpretada como uma variação da velha tese de Rilke segundo a qual a beleza é o último véu que cobre o horrível.

Vou parar por aqui, tenho a impressão que encaminhei, só e somente, um longo percurso de conversas sobre o tema. E melhor ainda, outras interpretações possíveis sobre os inquietantes e provocadores filmes do cineasta russo Andrei Tarkovski. Vamos indo, sabemos que para dar conta, há de se caminhar mais, sempre mais.

terça-feira, 20 de abril de 2010






















Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno, este é o título do recente livro de Slavoj Zizek , que recebi de presente em janeiro e só agora pude tentar ler. Slavoj, como sabem, é um teórico iugoslavo que tem dedicado reflexões sobre o novo pensamento da esquerda e ocupado páginas das principais revistas de cultura no Brasil, participando de freqüentes debates em destaque em várias universidades européias e norte-americanas (1).

Sua biografia encontra-se amplamente divulgada em revistas de cultura e na internet (2). Nasceu em 1949, em Liubliana, capital da Eslovênia, a mais próspera das províncias da antiga República da Iugoslávia e a primeira a se tornar independente em 1991. Formou-se em Filosofia e Ciências Sociais em 1971 e em 1975 apresenta a tese: A relevância prática e teórica do estruturalismo francês. Trabalhou no Comitê Central da Liga Comunista da Eslovênia, ocupou-se em redigir discursos e acompanhar a formação do discurso nacionalista sérvio e da construção da região de Kosovo. Seu caminho teórico vai de Marx a Hegel, dizem os analistas dos seus trabalhos. Suas posições críticas situam-no entre o socialismo iugoslavo e o interesse do capital ocidental pela emancipação da Eslovênia, engajando-se na resistência cultural e política em torno da Nova Cultura Eslovena. Por NSK (Nova Cultura Eslovena) entende-se um grupo constituído por uma ampla frente de resistência à burocracia, envolvendo o teatro, a música, as artes plásticas e a Escola Lacaniana da Eslovênia.

Zizek formou-se num ambiente em que a teoria crítica da Escola de Frankfurt ou a fenomenologia de Martin Heidegger eram utilizadas como amálgamas ideológicos pelo Partido Socialista Iugoslavo. Sua formação teórica em Paris na década de 80 voltou-se para o estudo da psicanálise, buscando entender acerca das relações entre Hegel e Lacan, começando a sedimentar seus interesses pela crítica da cultura, prática política e por tratar a cultura com uma interlocução com o universo popular do cinema, com a teoria feminista e com o ativismo multiculturalista. Seus textos, amplamente divulgados na internet, tornam suas reflexões conhecidas por um público mais amplo, que passam a dialogar com suas posições nada dogmáticas, entre elas, afirma: “nada é o que parece ser”.

A seguir transcrevemos, parcialmente, sua entrevista divulgada recentemente à:
euronews: O senhor é convidado do Festival de Cinema de Sarajevo… qual é o papel dos filmes e do cinema na sociedade de hoje?

Slavoj Zizek: Primeiro, eu continuo a ser um marxista à moda antiga. Portanto, eu acho que o cinema é hoje um campo de batalha ideológica, alguma batalha decorre aí e até podemos ver isso claramente no que respeita à horrível Guerra dos Balcãs. Temos alguns filmes acerca disto que são autênticos, mas, infelizmente, os maiores sucessos não o são. Esse é o caso do “Underground” do Emir Kusturica. Eu acho que esse filme é quase uma trágica – eu não diria que é uma falsificação equívoca – no sentido em que: “Que imagem é que esse filme te dá da ex-Jugoslávia?” A de uma parte do mundo maluca, onde as pessoas fornicam, bebem e lutam todo o tempo. Ele exibe um certo mito que o Oeste gosta de ver aqui nos Balcãs: este mítico outro, que permanece durante um longo período.

euronews: Como explica este fenómeno?

Slavoj Zizek: Pode dizer-se ironicamente que os Balcãs estão estruturados como o inconsciente da Europa. A Europa põe e projecta todos os seus segredos sujos, obscenidades e por aí fora nos Balcãs. É por isso que a minha fórmula para o que está a acontecer nos Balcãs não é como as pessoas usualmente dizem que são apanhadas nos seus velhos sonhos, que não podem enfrentar a realidade ordinária pós-moderna. Não, eu diria que elas são apanhadas nos sonhos, mas não nos seus sonhos – nos sonhos europeus. O filósofo francês Gilles Deleuze disse uma coisa maravilhosa: “Se fores apanhado nos sonhos dos outros, estás feito”. Portanto, o cinema deve mostrar precisamente que este folclore excêntrico em alguns lugares pode fazer parecer que somos todos parte de um mundo global.

euronews: Sarajevo é também uma cidade simbólica para o multiculturalismo, mas tem uma opinião muito particular acerca da tolerância multicultural, não tem?

Slavoj Zizek: Eu acho que aqui já tivemos o suficiente desta ideologia multicultural, que para mim, pelo menos, é frequentemente um racismo invertido, designadamente quando as pessoas vêm cá. Normalmente, multiculturalistas diriam: “Oh, eu quero entender como tu és diferente”. Não, o que se deve entender fundamentalmente é que eles aqui não são diferentes – apenas coisas diferentes lhes aconteceram e para o tornar tolerável para nós, que gostaríamos de ter evitado a guerra, no Ocidente fizemos as pessoas diferentes. O que precisamos hoje em dia é de códigos de conduta, não de mais entendimento. Eu acho que nos deveríamos opor totalmente a esta chantagem liberal de que temos que nos entender uns aos outros. Não, o mundo é demasiado complexo, não podemos. Detesto pessoas. Não quero entender as pessoas. Quero ter um certo código em que eu não entendo o teu estilo de vida e tu não entendes o meu, mas podemos coexistir.

euronews: Por que razão podemos sentir aqui, em Sarajevo, desilusão, após a detenção de Radovan Karadzic?
Slavoj Zizek: A verdadeira tragédia é, como alguns inteligentes políticos bósnios realçaram, que basicamente Karadzic teve sucesso. O seu programa foi que uma grande parte da Bósnia deveria ser reservada e etnicamente limpa para os sérvios. Foi isto que efectivamente aconteceu: a República Srpska é 51 por cento do território e tem menos 10 por cento dos outros, não sérvios. Portanto, a ironia é… isto é como César morreu, César ganhou… para isto é demasiado tarde. Esta é a hipocrisia: condena-se o homem, o projecto vingou.

Peço desculpas aos que se interessaram, mas preciso interromper a entrevista uma vez que o espaço da postagem dropsniana requer moderações. Tomei o cuidado de indicar as fontes nas notas abaixo para os que tiverem interesse em continuar acompanhando as idéias do esloveno. Sequer cheguei a comentar o capítulo do livro que iniciei a postagem, me refiro ao capítulo especial _Andrei Tarkovski ou a Coisa Vinda do Espaço Interior_um brilhante ensaio sobre os filmes definitivos de Tarkovski, entre eles, Solaris, Nostalgia e O sacrifício. Assisti estes filmes nos anos 70/80 e, provavelmente, reassistidos hoje à luz dos fundamentos de uma teoria de cinema em construção, redirecionam nosso olhar à uma nova poética da linguagem cinematográfica. Ou não?

Notas:
1.Zizek, Slavoj. Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno. São Paulo: Boitempo, 2009.
2.Cult. Revista Brasileira de Cultura. Nº118-Outubro/2007. Ano 10. São Paulo-SP. WWW.revistacult.com.br

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Godard e o Socialismo
























Enquanto aguardamos o mais novo filme de Godard chegar ao Brasil há uma chance de se saber mais sobre o grande cineasta buscando adquirir o novo livro lançado na França por seu biógrafo. Para isso torna-se necessário certas condições prévias, entre outras, alguma reserva em euro na conta e chance de ler as 944 páginas em francês antes que o dilúvio ocorra. Para quem é paciente e não sofre de consumismo exagerado, resta outra opção mais comum entre os mortais, informar-se pelo MAIS e aguardar. A seguir o extrato da entrevista publicada na FSP.

São Paulo, domingo, 11 de abril de 2010
O biógrafo Antoine de Baecque diz em entrevista à Folha que tentou desvendar a vida real por trás do mito; prestes a fazer 80 anos, Godard lança o novo filme, "Socialismo", em maio, em Cannes.

LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
Um é o cineasta mais estudado, debatido e polêmico da França, um dos criadores da nouvelle vague. Seu nome é uma espécie de palavra-slogan que significa cinema.
O outro é um historiador e jornalista, especialista no movimento de vanguarda do cinema francês da virada dos anos 50/60, autor de uma biografia de Truffaut (em coautoria com Serge Toubiana, ed. Record), ex-diretor da revista "Cahiers du Cinéma" e ex-editor de cultura do jornal "Libération".
Quando Antoine de Baecque resolveu fazer a biografia de Jean-Luc Godard, o cineasta não se mostrou entusiasta. Dizia que sua obra é que interessa, não sua vida. Mas a editora Grasset comprou imediatamente a ideia.
O resultado é uma obra de 944 páginas -"Godard"-, em que o nome está sutilmente dividido (GOD numa linha, ARD, na outra).
Trata-se de um livro magistral sobre a vida e a obra de um dos maiores cineastas do século 20, que fará 80 anos em 3 de dezembro e cujo primeiro filme, "Acossado" ("À Bout de Souffle"), foi lançado exatamente há 50 anos, em março de 1960. E já nasceu clássico, revolucionando a linguagem cinematográfica.
Assim como Godard, De Baecque lê o "L'Equipe", diário especializado em esportes. O jornal está sobre a mesa de centro em sua casa, enquanto recebe a Folha para esta entrevista exclusiva.
Apesar de autor da primeira biografia de Godard a ser escrita na França, De Baecque não viu a obra que o cineasta vai apresentar em maio, em Cannes. "Socialisme" [Socialismo, com lançamento no Brasil previsto para 2011] tem no elenco a cantora Patti Smith, o filósofo francês Alain Badiou e o historiador palestino Elias Sanbar.
O filme deve, sem dúvida, provocar polêmica. Afinal, não é esse o maior prazer do controvertido Godard?

FOLHA - Quem é Jean-Luc Godard?
ANTOINE DE BAECQUE - Como ele mesmo diz, "eu sou uma lenda viva". É um mito. Acho que ele tem razão, Godard diz a verdade. O que é uma lenda viva? É um nome -Godard- que significa cinema no mundo inteiro; é uma espécie de palavra-slogan que quer dizer cinema. Foi algo que aconteceu muito rapidamente, e ele viveu grande parte de sua vida sob esse peso. A partir disso, era preciso tentar ver o que havia por trás. O interessante é esquecer um pouco a lenda, confrontá-la com os fatos e atos de uma vida.
FOLHA - O que encontrou além do mito?
DE BAECQUE - Não há na vida de Godard segredos que expliquem seu personagem, seu destino, sua genialidade. Não é como Truffaut... Este era um bastardo, que tinha uma espécie de trauma de infância que fazia com que o pequeno Truffaut estivesse sempre presente, não muito longe do homem que se construiu justamente para superar esse trauma, o fato de não ter tido pai e não ter sido amado. Em Godard, não há segredo de família, exceto quando se fala de rupturas, pequenas decisões em sua vida que explicam o personagem -sobretudo a ruptura com a família, quando decidiu fazer cinema.
FOLHA - Por que precisou romper com a família para fazer cinema?
DE BAECQUE - Godard vem de uma grande família protestante, rica, culta, uma espécie de aristocracia do espírito. Na França, os Monod são uma grande família, que queria uma cultura nobre para o filho mais velho -e não o cinema. Essa ruptura foi acompanhada de uma série de outras, muitas vezes violentas em relação ao meio familiar, o que tornou Godard um adolescente ladrão. Furtou muitas coisas de muitas pessoas, inclusive em família. Por exemplo, um livro original autografado por Paul Valéry, que roubou da grande biblioteca de seu avô -a grande figura da família e amigo daquele poeta. Furtou um livro da coleção do avô para vender. Isso culminou em seu banimento pelos Monod. Foram essas rupturas que fizeram com que Godard se construísse como Godard. Ele renegou muito a si mesmo, mudou bastante de rumo, numa contradição permanente consigo mesmo. De certa forma, isso faz parte de sua própria mitologia, algo que ele mesmo dissera em entrevistas.
FOLHA - O interessante no livro é acompanhar a realização de cada filme, suas relações com os produtores, com os atores. Tudo isso torna a biografia uma fonte inesgotável para os cinéfilos.
DE BAECQUE - Sim, mas também é uma biografia de cineasta. Espero mexer com o discurso estabelecido dos godardianos. Sobre ele, existe um discurso onipresente, extremamente importante, que respeito, que li e que até mesmo contribuí para criar. Mas gostaria que o livro destruísse essa ideia forte -a de que a vida de Godard não tem importância e de que seus filmes podem ser compreendidos sem passar por ela.
FOLHA - Como surgiu a ideia da biografia?
DE BAECQUE - Eu já havia tido contato com Godard, tinha feito entrevistas com ele quando dirigia os "Cahiers du Cinéma" e quando fui editor de cultura do "Libération". Nas entrevistas, ele é o contrário de um bom assunto biográfico: não gosta de falar de sua vida, não gosta que falem de si e é muito desconfiado. O que me levou a escrever o livro foi essa dificuldade.
FOLHA - Foi a editora quem encomendou o livro ou o sr. o propôs?
DE BAECQUE - Fui eu que propus, dizendo que tinha vontade de fazer uma coisa impossível, escrever uma vida de Godard. A editora topou, mas Godard não estava de acordo.
FOLHA - O sr. o contatou?
DE BAECQUE - Eu disse que iria escrever a vida dele.
FOLHA - E como ele reagiu?
DE BAECQUE - Ele me disse: "Você não vai conseguir; de qualquer forma o importante é a obra, não a pessoa".
FOLHA - Evidentemente, o sr. não concorda com isso.
DE BAECQUE - Ao contrário, acho que a vida de Godard tem um duplo interesse. Ela é feita de contradições, de rupturas, de mil encontros. Ele viveu no mundo do cinema de maneira intensa e tem uma vida densa, uma existência rica, ao contrário do que ele mesmo diz. Sua vida é tão fascinante pelo modo como ilumina a vida de seus contemporâneos. Seu cinema e seu modo de viver são o que capta as diferentes épocas que atravessou. Minha ambição é, como digo na introdução do livro, conhecer o gosto do café de Godard. Ele disse de maneira virulenta, um pouco insolente: "De que serve saber que tomo café de manhã?", isso para dizer que a vida não tem importância. Godard tem o gênio de apreender o que faz a vida de uma época; ele é o melhor radar para captar isso e devolvê-lo com um estilo particular.
FOLHA - O sr. diz que seu livro "atrairá o descontentamento de Godard, sua contestação humilhante, até mesmo uma carta de insultos, e o opróbrio dos godardianos do mundo todo". Por quê?
DE BAECQUE - O que me deixa feliz é que o livro está sendo bem recebido pelos não godardianos. Godard o recebeu, mas ainda não se manifestou. Penso que dirá algo sobre ele, pois apresentará "Socialismo" em Cannes, em maio. Acho que irá reconhecer que representa muito trabalho, que é benfeito, mas não poderá deixar de dizer que não é assim que se compreendem seus filmes. E acho que ficará furioso com algumas passagens.
FOLHA - Por exemplo?
DE BAECQUE - Suas relações interpessoais, suas relações com as mulheres. Ele não gosta de falar disso, das rupturas difíceis, dos mortos que o cercam. Acho indispensável falar disso para tornar a vida de Godard compreensível. Penso que não irá reagir bem. Será que vai escrever uma carta, me humilhar em público?
FOLHA - O sr. diz que Godard é, ainda hoje, um dos artistas mais célebres, mais comentados e mais analisados do mundo. Por quê?
DE BAECQUE - É um personagem que fascina muita gente. Cresci vendo filmes como "Salve-se Quem Puder - A Vida", "Passion", "Carmen de Godard". Eu tinha 20 anos. Ao mesmo tempo em que os de Truffaut, como "O Homem Que Amava as Mulheres", "A Mulher do Lado" , que me deram vontade de escrever sobre o cinema, fizeram de mim o que me tornei. Isso me formou.
FOLHA - O sr. diz que Godard "soube moldar seu próprio personagem de bufão midiático, de Diógenes comunicador". Acontece que o bufão é também um melancólico. Ele é tudo e o contrário de tudo, um paradoxo ambulante?
DE BAECQUE - Godard é feito de contrastes, de paradoxos. É extremamente generoso, mas muito centrado em si mesmo, egocêntrico. Também pode ser extremamente doce e violento, pudico e extrovertido, terno e perverso. Mas está mais para o lado da melancolia, de uma forma de tristeza, de tragédia.
FOLHA - De misantropia também?
DE BAECQUE - Sim. É uma pessoa para quem o fato de não estar bem é inspirador. Ele sempre filmou pessoas que carregavam um mal-estar, fez filmes que acabam sempre mal. É essa infelicidade, um estado do ser, o mal-estar, o trauma em relação à história, às mulheres, à família, em relação a si mesmo, à sua própria personalidade, que o inspiram. É muito mais o cineasta de personagens habitados pela infelicidade do que de personagens felizes.
FOLHA - O sr. é autor de uma biografia e um dicionário Truffaut e de um livro sobre a nouvelle vague. O atual cinema francês está à altura de Truffaut e Godard? Quais são os grandes talentos atuais?
DE BAECQUE - Desde a nouvelle vague, desde os anos 60, todos os anos muitos iniciantes fazem um primeiro ou um segundo filme. Isso é muito importante na França, mais que em outros países. É uma constante no cinema francês. De maneira geral, um terço dos filmes franceses são um primeiro ou um segundo filme.
FOLHA - E esses jovens cineastas chegam a construir uma carreira?
DE BAECQUE - Mais ou menos, assim como na nouvelle vague. Naquela época, havia 120 cineastas que fizeram um primeiro filme em três anos e, depois, somente 10 ou 15 continuaram -cerca de 10%. Hoje, é a mesma coisa, talvez um pouco mais. A nouvelle vague legou a essa juventude a vontade de fazer cinema. Ser artista, hoje, passa pelo cinema.
FOLHA - Mas, na França, há o Estado com as subvenções e toda sorte de ajuda...
DE BAECQUE - As subvenções ajudam, mas existe a vontade de fazer cinema quando se é jovem, e isso vem da nouvelle vague. Mas o que falta, hoje, é a polêmica, uma certa violência, rebelião. Isso foi o que Truffaut e Godard encarnaram quando eram críticos, nos anos 60. Hoje, o cinema francês é bastante consensual, falta-lhe aspereza. É muito diversificado, mas falta agressividade. Há herdeiros de um ou de outro.
FOLHA - Justamente. O que Godard representa hoje para um jovem cineasta?
DE BAECQUE - Acho que duas coisas contraditórias: de um lado, o velho babaca no panteão metido a dar lições. Godard gostou de fazer esse papel e acabou detestado por isso mesmo. O velho que vem nos contar como se faz cinema, que era melhor antes. Essa é a imagem do "Godard que pertence ao passado, isso não nos interessa mais". A outra é a de Godard como "meu irmão visionário, a inspiração direta, espécie de Rimbaud". Nas escolas de arte, nas escolas de cinema, essa imagem de Godard é muito importante.
FOLHA - E prevalece sobre a outra?
DE BAECQUE - Podem coabitar. A influência de Godard perdura e é algo que me parece importante -e não só na França.
FOLHA - Logo, ele não é uma figura do passado...
DE BAECQUE - Seus filmes perturbam, estimulam esses jovens, sem passar pela história do cinema. Existem no presente e ainda repercutem -isso é o que faz a força de Godard. O cinema de Truffaut é mais datado, mas tem muita influência por sua vida. Em Truffaut, o que conta é a maneira de viver, de amar o cinema, sua maneira de amar os filmes.
FOLHA - O que mais ficou de Truffaut, em sua opinião, é o lado de crítico de cinema?
DE BAECQUE - É mais o homem Truffaut que tem significado para o cinema. Já em Godard, o que mais fica é a forma, a obra.
FOLHA - E, assim como Godard e Truffaut, o sr. não teve nunca vontade de fazer cinema, de ser cineasta?
DE BAECQUE - Fiz documentários. O último, "Deux de la Vague" [Dois da Onda, escrito por ele e dirigido por Emmanuel Laurent, com estreia no Brasil prevista para 28/5], trata da amizade e da ruptura entre Truffaut e Godard. É um filme de imagens de arquivo, e não é a mesma coisa que fazer cinema como cineasta.
FOLHA - Godard foi acusado de antissemitismo. O que o sr. pensa dessa acusação?
DE BAECQUE - É um contrassenso. Godard é antissionista, seu pensamento se reformou no início dos anos 1970, como denúncia do imperialismo americano e do expansionismo do Estado de Israel, por solidariedade com a causa palestina. Isso o leva a uma visão da história como uma espécie de maldição ligada ao extermínio dos judeus, ao Holocausto, que para ele é o acontecimento central do século 20. Ele não é negacionista; ele diz que as vítimas se transformaram em carrascos.
FOLHA - Godard cultiva o gosto pelo paradoxo e pela provocação. Com "Socialisme", seu novo filme, quem ele quer provocar?
DE BAECQUE - Quer provocar uma discussão sobre a morte do comunismo, como o filósofo Alain Badiou, que faz o papel de um filósofo no filme e diz que "o comunismo é uma ideologia com o futuro diante dela". Acho que se encontraram em torno dessa ideia e se entendem perfeitamente, ao pensarem que o futuro da utopia é o socialismo. Isso é bastante provocador num mundo como o nosso, que quis enterrar o comunismo.

segunda-feira, 5 de abril de 2010






















PRÉ JORNADA INTERNACIONAL DE CINEMA DA BAHIA

- Uma programação do Clube de Cinema da Bahia -
As programações da Pre Jornada contam com o apoio da: Petrobras, Secretaria de Cultura do Governo do Estado da Bahia, Fundação Cultural do Estado da Bahia – DIMAS e Fundação Pedro Calmon, Fundo Nacional de Cultura, CHESF, AECID, Instituto Camões, Consulado Geral de Portugal na Bahia, Banco do Nordeste, Goethe Institut de Salvador.

PRÉ JORNADA INTERNACIONAL DE CINEMA DA BAHIA

Exposição Fotográfica: Guido Boggiani y el Chaco
Uma Aventura Del Siglo XIX ( 1861-1901)


Exposição fotográfica do trabalho pioneiro do pintor e fotógrafo italiano Guido Boggiani (1861-1901). Nome de destaque na pintura naturalista na Itália, o artista interrompeu sua carreira e rumou em 1887 para a América do Sul, passando a pesquisar, sistematicamente, a vida e cultura dos índios do Gran Chaco, região fronteiriça entre Brasil, Argentina e Paraguai. A obra de Guido Boggiani foi salva pelo explorador botânico e etnógrafo tcheco Alberto Vojtech Fric (1882-1944) que conseguiu recuperar as 415 fotos após o episódio de seu desaparecimento. Com medo de terem seus espíritos aprisionados nas fotos, os Chamacocos assassinaram o “bruxo”, denotando que o pioneirismo de Guido Boggiani custou-lhe a vida.

Esta exposição abriu em 2005 a XXXII Jornada Internacional de Cinema da Bahia, em edição de destaque aos POVOS INDÍGENAS DA AMÉRICA DO SUL. Hoje reeditada, reafirma o compromisso da Jornada Internacional de Cinema da Bahia com o universo indígena voltando-se para temáticas de relevância, a exemplo do descumprimento de direitos assegurados pela Constituição Federal aos povos indígenas e o descaso com que são tratados. A falta de compromisso das autoridades com as populações indígenas e a seqüencia de fatos graves que apontam para a extinção de importantes tribos, vítimas de massacres na luta desigual com madeireiros, garimpeiros e gananciosas disputas por terras. A questão indígena, pela gravidade deve estar presente na pauta das discussões de todos os seguimentos que lutam por um mundo mais justo e de iguais condições para todos.

ONDE:
Biblioteca Pública do Estado da Bahia. Rua General Labatut, 27. Barris. Salvador-Bahia. Funcionamento: Seg a Sex das 8h às 22h. Sáb das 8 h às 12h. 09 a 15 de abril de 2010.:Palestra de Abertura sobre Guido Boggiani proferida por Bohumila Sampaio de Araújo. Auditório da Biblioteca, 15:00.

Mostra Povos Indígenas do Brasil, Sala Walter da Silveira, 09 a 15 de abril de 2010, 16h30min. Programação especial de sessões de filmes dedicados à luta dos Povos Indígenas do Brasil.


MOSTRA POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. SALA WALTER DA SILVEIRA. 09 a 15 de abril de 2010.

Introdução

Todo dia é dia de Índio, ou pelo menos deveria ser, afinal é ele o legítimo dono de todas as Terras do Brasil e das Américas. Contudo, tudo isto não passa de utopia, pois a realidade é bem outra...
Historicamente, desde que espanhois e portugueses desembarcaram nas costas do Novo Mundo, a cordial acolhida dos nativos tem sido retribuída ao longo de mais de 500 anos com o genocídio praticado pelo intruso, dito civilizado.
De qualquer modo, aproveitamos este mês de abril para darmos início a programação Pré –Jornada 2010, que este ano terá como tema central, a luta pela salvação do nosso planeta. Afinal, ninguém melhor do que o índio representa a natureza, que através de uma conscientização pela imagem cinematográfica, esperamos contribuir para salvá-la.
A programação de abertura da Pré-Jornada Internacional de Cinema da Bahia acontecerá na Biblioteca Pública do Estado e na Sala Walter da Silveira, de 09 a 15 de abril, compreendendo uma exposição, palestra e mostra de filmes.

Programação:
09.04

Imbé Gikegü Cheiro de Pequi. (2006, 36’, Brasil) (Acervo da Jornada de Cinema da Bahia)

Sinopse: Ligando o passado ao presente, os realizadores kuikuro contam uma historia de perigos e prazeres, de sexo e traição, onde homens e mulheres, beija-flores e jacarés constroem um mundo comum. Realizadores: Takumã e Maricá Kuikuro www.videonasaldeias.org.br

10.04
Xicão Xucuru, 1999, 52’, PE/Brasil. (Acervo da Jornada de Cinema da Bahia)

Sinopse: Desde 1985 o cacique Xicão liderava a resistência do povo Xucuru, lutando pelo reconhecimento e demarcação de suas terras no município de Pesqueira. O trabalho desenvolvido por Xicão acompanhado pela comunidade teve como resultado o resgate do respeito às suas reinvidicações, a melhoria da qualidade de vida. Em maio de 1998, Xicão é assassinado por motivos fundiários, causando revolta no movimento indígena brasileiro. Direção: Nilton Pereira.

11.04
Yã Katu O Brasil dos Villas Boas. 2004, 63’, Brasil. (Acervo da Jornada de Cinema da Bahia)

Sinopse: Dezesseis anos depois de um exílio compulsório imposto pelo governo militar brasileiro dos anos 1960/1980, Orlando Villas Bôas retorna ao Parque Nacional do Xingu para um encontro emocionado com o seu passado e revela ao mundo a sociedade equilibrada, sensível e sofisticada da nação indígena. Na contramão da história, mostra-nos como as diferenças tribais podem resultar em convivência harmônica, culturalmente enriquecedora, e não em guerra. Direção: Nilson Villas Boas.

12.04
O último Kuarup Branco, 2007, 52’, Brasil. (Acervo da Jornada de Cinema da Bahia)

Sinopse: O filme é uma viagem de contato, imersa em um ambiente visual que evoca os estados alterados de consciência nos misteriosos rituais indígenas do Xingu. Neste trajeto, aparece a voz dos índios como protagonista e o espectador é conduzido às mensagens da velha índia Airé, da nação Ikpeng. Direção: Bhig Villas Boas.

13.04
Póstuma-Cretan, 1980, 13’, PR/Brasil. (Acervo da Jornada de Cinema da Bahia)
Sinopse: O filme mostra os acontecimentos na reserva indígena de Manguerinha, no Paraná, que levaram à morte o cacique Angelo Cretan. Direção: Ronaldo Duque

Uma Assembléia Ticuna, 2000, 20’, RJ/Brasil. (Acervo da Jornada de Cinema da Bahia)
Sinopse: O filme localiza uma reunião entre autoridades indígenas e, paralelamente, acompanha a maior expressão cultural desse povo: a festa da moça nova (ritual de iniciação feminino) realizada concomitantemente à reunião de lideranças. Direção: Bruno Pacheco de Oliveira.
Histórias de Avá- O povo invisível, 1998, 19’, RJ/Brasil.(Acervo da Jornada de Cinema da Bahia)
Sinopse: O filme conta a história da tribo de índios Avá-Canoeiro que está ameaçada de extinção e narra a tentativa de se fazer contato com grupos de Avá que se encontram ainda isolados a 500 km da capital do Brasil. Direção: Bernardo Palmeiro.

14.04
Rondon: Amor, Ordem e Progresso (2003, 87’, Brasil) ( Acervo da Jornada de Cinema da Bahia)

Sinopse: O documentário resgata a trajetória de vida do grande sertanista, contada em depoimentos de estudiosos e seguidores - como Darcy Ribeiro e os irmãos Villas Boas -, e ilustrada por imagens da época, traçando o perfil do homem que escreveu sua história junto com as demarcações de nossas fronteiras. Direção: Marco Altberg

15. 04
E14 Encontro das Culturas dos 14 Povos Indígenas da Bahia (2008, 54’, Ba/Brasil) (Secretaria de Cultura/Ba, Irdeb/Ba)


Sinopse
: O E-14 teve como sede a Aldeia Tuxá, na cidade de Rodelas-Ba. Contou com a participação de aproximadamente 500 pessoas, dentre esses 266 representantes indígenas dos povos Atikum, Kaimbé, Kiriri, Kantaruré, Pankararé, Pankaru, Pataxó, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Truká, Tumbalalá, Tupã, Tupinambá, Tuxá, Xucuru-Kariri, quatro representantes por aldeia: um pajé, um jovem, uma mulher e um gestor indígena interessado em elaboração de projetos culturais, que formaram grupos de trabalho com o objetivo de- além de integrarem-se num intercâmbio cultural- apontarem diretrizes à preservação, ao fortalecimento e ao desenvolvimento das culturas indígenas no Estado da Bahia. Realização: Secretaria de Cultura-Ba/ Irdeb-Ba.

Nesta sessão,os convidados que trabalham com a temática indígena, Maria Hilda Paraíso, Hirton Fernandes, Yakuy Tupinambá e Franklin Oliveira Jr. participarão do debate. Coordenador da Mesa de Debate: Professor Guido Araújo.