sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Oficina de Introdução ao Cinema


Plagiando cadáver com batatas degustado ao molho inglês (1)



A Oficina de Introdução ao Cinema coordenada por André Setaro, ainda em seus encontros iniciais, anuncia um marco para descobertas na sétima arte. Uma caminhada pela filmografia dos clássicos, fundamentada pelos comentários de quem dedica- se a buscar os sentidos desta linguagem, indicando-nos que a chave está em desvendar os elos da sintaxe e os elos semânticos, ou seja, perceber que o cinema contém uma nobreza que está subsumida em sua estrutura audiovisual, em seus elos de linguagem.

Nesta direção, nada como seguir as pistas de um filme base para análise, em que os aprendizes possam educar seu olhar tão bombardeado pelo exagero das histórias_ a podridão em que estamos submersos_ para que possam perceber as sutilezas da nobreza estilística e similar ao arqueólogo na busca dos índices, possam descobrir as Fugas. Nada mal para começo de percurso, ou seja, sair dos limites dos cânones da fábula para adentrar-se no âmbito das narrativas, sem esquecer de que estão imbricadas e compõem-se por elos.

O ensaio que tenho a honra de plagiar o título modificando-o, nos apresenta o mago do suspense num dos seus melhores filmes da sua fase final, Alfred Hitchcock (1899-1980) e Frenesi (Frenzy, 1972). (2) Com as ferramentas da crítica literária e da literatura comparada, Davi Arrigucci Jr. nos apresenta uma das melhores análises fílmicas que já li recentemente e possibilidades de articular os elos de linguagem que André Setaro mencionava na abertura da Oficina.
Hitchcock, como nos foi apresentado, deve ser levado a sério e considerado sob a perspectiva da arte, ainda que os procedimentos e artimanhas eivadas de meios cômicos, tal como a ducha de água fria que desprende vapor quente, do assassinato a sangue frio, dentre outros, nos dão conta de um artista moderno de infalível ironia e espírito paródico, que tem por princípio técnico o desmanche de toda seriedade elevada. (3)

Seu cinema expressa a arte de saber construir a destruição_ a arte de destruir_, ou seja, a arte de contar bem uma história e construir um enredo convincente com elementos multifacetados, dispersos e heterogêneos, que dêem conta de possíveis elucidações de um crime, ou talvez, implicados na violência de um assassinato, por exemplo.

Frénésie, palavra francesa para designar um estado mental violento à beira do delírio ou loucura, o filme Frenesi apresenta uma narrativa que irá brincar o tempo todo com várias expressões francesas referentes à paixão amorosa e gastronômica, uma soupe de pouisson inventada pela mulher do detetive da Scotland Yard, um crime de passion atribuído ao ex-marido da proprietária de uma agência de matrimônios separados após dez anos de casamento, repugnantes caille aux raisins e pieds de porc à La mode de Caen servidos ao marido, misturados ao tema central do filme, a seguir, uma série de crimes cometidos por um estrangulador de mulheres, numa caçada que se efetiva pelo uso de uma gravata. O terror apavora Londres, em meio a hortaliças, flores, frutas, legumes, cereais e sobretudo batatas, do grande mercado de Covent Garden à tradicional e elegante praça da Royal Opera House e antigo jardim da Abadia de Westminster.

Passeando com desenvoltura pela biografia e obra de Hitch, Davi Arriguci Jr recorta algumas sequências emblemáticas do filme nos permitindo perceber o método de trabalho do autor e sua sabedoria destrutiva: o corpo estranho que surge às margens do Tâmisa com um nó de gravata literalmente em volta do pescoço acompanhado por um travelling de abertura majestoso, a câmera navega em sobrevôo ao longo do rio, sempre do alto, até que então começa a descer, enquadra e passa debaixo da ponte de Londres de alças erguidas, arrastando-nos com ela nessa visão de cima, por sobre as águas (...).

O nó da gravata que Richard Blaney rearruma em frente ao espelho preparando-se para o trabalho e o laço que o prenderá contra a sua vontade no emaranhado crime e que serve também de instrumento para os assassinatos, fazem parte da ironia dramática tecida por Hitchcock, que certamente não estava despercebido desta fonte, acrescida também da criação de atmosfera propiciada pela música, assinala Arriguci. O nó da gravata, assim concebido, representa um elemento decisivo de armarração interna do enredo enquanto forma artística.

Além do nó da gravata, mais significativo ainda, o alfinete preso à gravata, exerce a função de criar uma caracterização marcante do estrangulador, Bob Rusk, que usa um R com um duvidoso brilhante preso à gravata. Personagem benevolente e paternal mostra-se atento às solicitações e tem a pretensão de elegância e distinção escondendo a vulgaridade e grosseria que o demarca. Analisando os elementos da sintaxe do filme, como um arqueólogo em perseguição aos índices encontrados, Arriguci lembra que o detalhe do alfinete da gravata_magnetiza diversos campos semânticos contíguos_do modo de ser, do ambiente do mercado, dos produtos da alimentação e da comida, da sexualidade, do casamento, do crime, da violência_ articulando-os numa síntese única.

O suspense, o terror e o medo, ingredientes marcantes em Hitchcock, distintos nas diferentes cenas que evidenciarão o estupro e o assassinato de Brenda Blaney, é mais uma afronta à regra, pois anunciado e preparado em conta-gotas, vai-se apresentando aos poucos em gestos repetidos, à vista do espectador. O assassino anuncia seu desejo de condenação de morte à vítima: você é meu tipo de mulher. O violador repete a palavra lovely, diante de uma vítima que busca refúgio numa oração inútil. A ousadia transgressora dessas imagens, diz Arriguci, introduz na cena a difícil poesia do macabro e lembra Edgard A. Poe dos começos da aprendizagem de Hitchcock.

A fusão do macabro e cômico virá a seguir, a próxima vítima Barbara “Babs” Milligan, ao ser assassinada será oculta num saco de batatas. E a célebre frase repete-se: “Não sei se você sabe, Babs, mas você faz meu tipo de mulher.” As inúmeras interpretações das cenas seguintes não serão desenvolvidas neste espaço, mesmo porque repletas de decifrações e jogos de linguagem, um convite à leitura e diálogo para iniciantes na arte de analisar e perceber os elos da sintaxe e da semântica cinematográfica.


NOTAS:
(1) Estas breves notas foram formuladas a partir da Oficina de Introdução ao Cinema, após leitura do ensaio “Cadáver com batatas e molho inglês” de Davi Arriguci Jr. divulgado pelo coordenador da oficina.
(2) Alfred Hitchcock nasceu em Leytonstone, em Essex (atual Londres). Filho de Emma e William Hitchcock, seu pai vendia frutas e verduras, e ele tinha mais dois irmãos. Recebeu uma rígida educação católica na escola londrina St. Ignatius College, cujo ensino era baseado nos ensinamentos do jesuíta Inácio de Loyola. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfred_Hitchcock.
(3) Os extratos de trechos extraídos do ensaio e citado nestas breves notas estão destacados em itálico no corpo do texto.

Setembro de 2007. Stela Borges de Almeida.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Mostra Kenji Mizoguchi.




Cinéfila desde que nasci considerei com disposição a oportunidade de atender ao convite que divulgava a mostra do mestre japonês, mesmo porque raras vezes os filmes clássicos, desta natureza, são exibidos no circuito local e as mostras imperdíveis ainda permanecem no eixo Rio-Sul.


Adianto que ainda não li os artigos dos críticos de cinema e comentaristas do assunto, de modo que vou tecer impressões primeiríssimas, ressalvando que não sou estudiosa e conhecedora da sétima arte, apenas uma apaixonada amadora da tela. Para os filmes subsequentes da mostra, consultei os jornais locais e as fichas técnicas dos filmes.


A Música de Gion (Gion Bayashi, 1953)


Este filme transportou-me para o universo feminino japonês na perspectiva de Mizoguchi. Quase todo ambientado em planos internos, narra à história de iniciação de uma jovem (gueixa) nos mistérios da aceitação e resistência das relações amorosas com o sexo masculino. Trata-se de inserir uma jovem na emocionante aventura com o outro sexo, ritual que envolve um conjunto de aprendizados que requerem talento e preparação para os encontros e embates. Não é qualquer encontro. Representa a primeira relação amorosa com um influente empresário de Kioto, no qual a jovem precisa mostrar-se preparada para a difícil arte do amor. Não se trata de uma escolha pessoal e de encantamento, sinaliza o processo de iniciação em que delicadeza, sedução, beleza, entre outras virtudes, fazem parte do aprendizado.


A película em preto e branco, captando efeitos de luz e sombras, apresenta os personagens num jogo de movimentos lentos e suaves, convidando o espectador à observação dos ambientes, da indumentária, dos gestos e teatralidade das situações apresentadas, dos costumes e tradições japonesas milenares e permanentes. Uma beleza de cenários humanos em movimento.
Centrado nas condições sócio-econômicas que vivia o Japão no período, o filme denuncia as relações de pobreza e subserviência que atingia principalmente as mulheres, impondo-lhes aceitar os limites das relações de poder, reverenciando sempre o mais forte, no caso, facultar aos que detinham posses suas escolhas amorosas. A resistência de Moyei, a jovem iniciante, é retratada numa cena engraçada fazendo a platéia manifestar seu primeiro sorriso. O empresário trava uma luta corporal com Moyei e num plano seguinte reaparece numa cama de hospital com faixas que lhe envolvem a boca, mostrando a impossibilidade de usar sua língua, pelo menos em curto prazo.
Porém, a saída da precariedade e condições de pobreza para a família de Moyei vai-se impondo e a pressão para conduzi-la a aceitação da condição de gueixa determinará sua história e tal como à da sua irmã mais velha, a tradição prevalecerá.

Oharu, a vida de uma cortesã (Saikaku ichidai Onna, 1952)

Acompanhar a mostra exige dedicação. Não consegui acompanhar o rítmo da programação, a distribuição dos filmes requer um cuidadoso trabalho de articulação entre agências do governo e consulados, de modo que o acesso aos filmes se não acontece no circuito previsto, torna-se inviável. Contei com a atenção e fácil comunicação do coordenador da mostra que me possibilitou assistir uma versão do filme, com legendas em inglês.
Oharu, narra a história de uma prostituta no Japão do século XVII, suas recordações e seus desejos. Mizoguchi inspirou-se no romance A vida de uma mulher sensual_ Koshoku Ichidai Onna de Saikaku Ihara (1642-1693), uma obra clássica voltada para análise das relações entre os sexos, sob uma perspectiva crítica.
Refugiada da polícia num antigo templo, Oharu já velha, observa estátuas de samurais e recorda antigos amores, fazendo-nos conhecer sua trajetória. Fora uma jovem atraente enquanto dama de companhia no Palácio do Imperador, cortejada pelo nobre samurai Katsunosuke. Morto este num encontro clandestino vê-se banida com a família tornando-se dançarina e, posteriormente, concubina do importante senhor feudal Matsudaira.
Com o nascimento de um herdeiro, vê-se afastada e devolvida à casa paterna, que a submete à venda. Oharo torna-se cortesã. Permanece nesta condição até que um dos seus clientes será desmascarado como falsário. Busca, então, emprego em casa de um comerciante que irá despedi-la ao descobrir seu passado de cortesã. Breves momentos de paz irão aparecer em sua vida quando decide casar-se com Yakichi, comerciante honesto que será posteriormente assassinado por bandidos. Com Fumikichi, um empregado do comerciante, vive certo período até que este rouba do patrão para tentarem fugir, sendo presos. Com esta trajetória tumultuada por mortes, banimentos, prisão, já envelhecida e doente, Oharu passa a mendigar pelas estradas alimentada pelo desejo de encontrar seu único filho que se tornou o novo senhor do clã Matsudaira.
Belíssima película em preto e branco dos costumes da época, Oharu ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de 1952. Aos cinéfilos ocidentalizados permite um conhecimento das relações de domínio e poder entre os sexos num Japão medieval e nos indica a singeleza e violência dos traços de uma cultura oriental marcada pela tradição. Novamente, neste filme, nos sensibilizam os quadros construídos pela câmara atenta do Mizoguchi. Os planos internos nos interiores dos templos, as seqüencias que acompanham as falas das cortesãs e suas disputas pelo predomínio da beleza, quer trajando suas melhores indumentárias de seda ou quer maquiando-se para agradar seus senhores, são revestidas de imaginação e sedução.

Contos da Lua Vaga (Ugetsu Monogatari, 1953)

As notícias sobre a mostra foram veiculadas nos jornais da cidade com destaque para o filme Contos da Lua Vaga. Referências, principalmente, para o trato poético que Mizoguchi constrói neste filme sobre a representação da história de duas famílias dedicadas a produzir peças em cerâmica. A vida de um oleiro pobre entregue a uma misteriosa dama e à suntuosidade de seu castelo, seus enfrentamentos em plena guerra civil japonesa, revela uma atmosfera de encantamento, permeada por uma assombrosa capacidade de plasmar em imagens em movimento o universo onírico e fantasmagórico de um Japão mergulhado em sangue. (cf. A Tarde, Caderno 2, de 28.07.2007. Adalberto Meireles in O cinema de Mizoguchi). O evento mereceu também destaque do André Setaro, o que significa prestar mais atenção ao assunto. Com o título Supra-sumo de Mizoguchi na Walter da Silveira, Setaro permite ao leitor além de informar-se sobre a mostra, atentar para a singularidade do mestre da cinematografia japonesa e da importância de acesso a uma obra histórica de valor nesta cidade (cf. Tribuna da Bahia, 26.07.2007).
O filme ambientado durante a guerra civil japonesa, em 1583, apresenta uma família que vive do fabrico de utensílios de cerâmica viajando pelas redondezas do Lago Biya, a leste de Kyoto, enfrentando os saques e pilhamentos usuais no período, para vender seus produtos. Dada as dificuldades da empreitada, Genjuro, o pobre oleiro, decide prosseguir viagem com seu cunhado Tobei e mandar de volta para casa sua mulher e filho. Por sorte, os oleiros vendem todas as peças de cerâmica a uma requintada e rica dama que admirada fica encantada pelo trabalho convida Genjuro para conhecer sua mansão. Morando sozinha com uma criada, Wakasa e Gengero envolvem-se num encontro cheio de sedução esquecendo de voltar para casa.
Quanto a Tobei, aproveita a venda das peças para realizar o sonho de tornar-se samurai. Embora sob protestos de sua mulher, compra armas e apodera-se da cabeça de um general decapitado e entrega- o como troféu a um exército inimigo. Deste feito, torna-se general, porém a façanha custa-lhe caro, descobre que sua mulher foi obrigada a prostituir-se, fazendo-o recuar nos seus projetos. Ambos, Genjuro e Tobei, dão conta que se envolveram em fantasias. Genjuro percebe que Wakasa é uma representação fantasmagórica e volta para sua mulher que o acolhe, porém a relação não será mais a mesma.

Há dois níveis de representação, os fatos que acontecem na realidade e os fatos que são produtos de visões e acontecimentos surreais, ambos mesclados numa prodigiosa fusão. As imagens em preto e branco, a beleza e o mistério da confecção das peças em cerâmica que não são destruídas pelos saques dos soldados do Império, a alegria da família do oleiro ao verificar que suas peças tinham sobrevivido ao massacre, tudo isso e muito mais conferiram ao filme o prêmio Leão de Prata no Festival de Veneza em 1953 e a Medalha de Ouro do Festival de Edimburgo, em 1955.

Os amantes crucificados (Chikamatsu Monogatari, 1954)

A narrativa construída inspira-se em uma peça teatral do dramaturgo Monzaemon Chikamatsu (1653-1742) sobre uma história de amor ambientada numa sociedade japonesa medieval em declínio. Neste relato de história de amor impossível, Osan e Mohei serão os protagonistas centrais submetidos aos valores morais predominantes em Kyoto, no final do século XVII.
Ishun, o Grande Impressor, encarregado da decoração do palácio imperial e da publicação de calendários, detém um cargo que lhe dá direito ao uso da espada como os Samurais e o monopólio dos calendários que lhe garante uma renda substancial. Ishun usa dos seus privilégios com arrogância, em sua vida amorosa, porém, sua esposa Osan encontra-se insatisfeita e descontente.
Osan, para resolver dificuldades de seu irmão Doki que quer resgatar uma dívida, pedirá ajuda a Mohei, empregado na oficina do seu marido. Mohei tentará usar a assinatura do Grande Impressor e será descoberto confessando sua culpa sem mencionar o pedido de Osan. Otama, criada da casa apaixonada por Mohei, o defenderá afirmando que ela provocou o incidente. Este incidente acenderá a fúria do Grande Impressor que mandará prender Mohei.
Osan informada que o marido vinha tentando seduzir a criada, Otama, decide surpreendê-lo e desmascarar a infidelidade trocando de quarto com ela. Durante a noite, porém, Mohei escapa da prisão e vai ao quarto de Otama, encontrando Osan. Surpreendidos, são obrigados a fugir e permanecerão encantados e perdidos de amores às margens do Lago Biwa. Apaixonados, decidem correr o risco de enfrentar a cruel e sangrenta perseguição de Ishun.
A crucificação dos amantes revela o entrelaçado jogo amoroso dos apaixonados que transgridem os códigos de uma sociedade em declínio e são submetidos aos castigos que lhes levarão à morte. A poesia de Muzoguchi mostrada na tela no enlevado e melodramático encontro de amantes nos possibilita contemplar e perceber, mais uma vez, sua maestria num belo filme de amor e morte.

O Intendente Sansho (Sansho Sayu, 1954)

O filme tem como fonte o romance de Ogai Mori (1862-1922) que, por sua vez, foi inspirado em conto popular conhecido como Anju e Zushio. Diz a tradição que no final do período Heian, século XI-XII, Tamaki, esposa de Masauji Taira, peregrinava pela praia de Echigo acompanhada por seu filho Zushio, sua filha Anju e uma criada, uma vez que seu marido encontrava-se exilado por tentar defender camponeses pobres. Nesta jornada serão enganados por mercadores de escravos e Tamaki é obrigada a separar-se de seus filhos sendo conduzida à longínqua Ilha Sado. Seus filhos serão vendidos como escravos ao cruel intendente Sansho e a criada se mata.
Dez anos depois, chegará aos domínios do intendente Sansho uma escrava vinda da Ilha Sado que sabe cantar uma canção triste conhecida de Zushio e Anju, é um lamento triste que evoca seus nomes. Os irmãos descobrem, então, que a escrava havia aprendido a canção com uma mulher que a cantava todos os dias na ilha. Certos que se trata de sua mãe, resolvem preparar suas fugas. Na impossibilidade de fugirem os dois, sem que sejam percebidos, Anju atrai os guardas e deste modo, sacrificará sua vida. Zushio conseguirá refugiar-se em Kyoto e apelando para o conselheiro do imperador demonstrará que é filho de Masuji Taira, considerado defensor dos camponeses e escravos.
Nomeado governador de Tango, uma província onde ficava o campo de trabalho do intendente Sansho, Zushio liberta todos os escravos, confisca a propriedade, posteriormente, renunciará ao cargo de governador e seguirá para a ilha Sado à procura de sua mãe. O encontro reveste-se de dor.
Belíssimo filme repleto de poesia. O lamento triste de Tamaki de chamada dos filhos ecoa pelos arredores da ilha até o campo onde eles se encontram, parece transcender à dura realidade em que se encontram escravizados, mostra uma mãe partida pela dor. O filme recebeu o Leão de Prata em 1954, Mizoguchi recebe pela terceira vez consecutiva o prêmio do Festival de Veneza.

A nova saga do clã Taira. O herói sagrado. (Shin Heike Monogatari, 1955).

Inspirado no romance de Eiji Yoshikawa, o filme narra a ascensão e queda do clã Taira e seus enfrentamentos com o clã Geiji. Neste filme, podem-se acompanhar os embates sangrentos e cruéis entre os diferentes clãs na busca da supremacia do poder e domínio, mostrando a supremacia econômica e política do Japão do século XII.
Chamou-me atenção um plano do filme que evidencia a força do chefe do clã ao expulsar um grupo de monges pesadamente armados com seus sabres e que recuam em retirada em massa acuados pelo comando, em gritos de ordem, do chefe rival. O efeito visual desta cena é de fazer inveja a Spielberg.

THE END

A mostra, sem dúvida, trouxe para aos cinéfilos e amantes da sétima arte a oportunidade única de rever, para alguns, ou ver pela primeira vez, para outros, o talentoso trabalho do cineasta japonês. Motivada pelo desejo de querer escrever sobre o tema para poder pensar mais sobre o cinema e suas relações com a cultura e a política, fiquei indecisa e tímida. Resolvi consultar especialistas na temática. Gosto de ouvir os iniciados. E assim, concluo, qualquer pessoa pode amar Kenji Mizoguchi, pensava Gramsci, desde que lhe seja dada condições para perceber a estética da sua poesia. A estrutura da obra cinematográfica, bem isso é outra coisa e continuarei perguntando ao André Setaro.
Acima, cena do filme Contos da Lua Vaga, 1953.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Cinema Mudo. Dinamarca_1927.






O martírio de Joana D’Arc
(La passion de Jeanne D’Arc, 1927).

Pérola do cinema mudo, filmado na França em 1927, desaparecido em sucessivas destruições e proibições, finalmente encontrado numa instituição psiquiátrica na Noruega, mostram os letreiros iniciais do histórico filme de Carl T.Dreyer (1889-1968) recuperado em 1981, numa cópia dinamarquesa do original.

Os autos do processo consultados na Biblioteca de La Chambre, Paris, servirão de testemunho do julgamento de Joana D’Arc por uma corte de juízes da Igreja, registrando o seu penoso e conflitante embate diante de representantes da Igreja, dispostos a arrancarem seu pedido de arrependimento e negação do que consideram um insulto à fé cristã. Seu pecado: Joana D’Arc acredita ser uma serva enviada e filha de Deus. Seu castigo: pelo sacrilégio será queimada viva na fogueira.

O filme mudo, composto pela técnica de closes de rosto, grande maioria das cenas, representava um método para atender ao misticismo e realismo segundo André Bazin, consistindo em tomar o rosto como um documento de expressão. Neste caso, o rosto de Renée Maria Falconetti (1892-1946), atriz de teatro convidada por Dreyer, simboliza o calvário a que está submetida a personagem diante de uma confraria disposta a arrancar-lhe sem piedade uma confissão de arrependimento e culpa pelos pecados que a julgam ter cometido. Seu rosto está dilacerado pela dor, a comunicação dos sentimentos faz-se pelos grandes olhos da personagem, num rosto com traços masculinos, cabelos cortados bem rentes, lágrimas que de vez em quando denotam sua aflição.

Joana D’Arc responde aos seus algozes, jura dizer a verdade, não mais do que a verdade. Querem saber se ela veio para salvar a França, se Deus odeia os ingleses, se o anjo tem asas, se estão vestidos ou nus, se é Deus que a ordena vestir-se como homem, que recompensa espera receber de Deus. O inquérito longo passa pelo escárnio e fúria dos seus algozes. Joana D’Arc tem apenas 19 anos, não sabe ler, está amedrontada diante de tantas acusações.
Em processos inquisitoriais há sempre os personagens maus e os bonzinhos, na realidade e na ficção. Um padre bonzinho tenta conquistar sua atenção, dizer-lhe da sua simpatia. Tenta convencê-la a confessar, não ir para a prisão. Há também os estrategistas, falsificam a assinatura do rei para tentar obter seu arrependimento. Mas a filha de Deus quer apenas a ajuda do Pai. Quer assistir uma missa e professar sua fé cristã. Sem a sua confissão, resta-lhe apenas a câmara de tortura.

A tortura não apenas se faz pelo interrogatório, mas acompanhada pelo escárnio, pela ameaça do fogo do inferno, pela calúnia e acusação de ser representante do diabo, de ter visões do Satã, de ser abandonada sozinha e rejeitada. E a crença firme da acusada: Sozinha, sim, mas com Deus. Resiste às acusações, não se entrega.

O processo demorado leva-a a exaustão. Fraca e abalada Joana D’Arc submete-se à sangria e aceita os sacramentos oferecidos. Como absolvição, não mais será queimada viva, apenas destinada à prisão perpétua. Antes, se não assinar sua declaração de culpa, não será absolvida. Resiste novamente, não assinará. Arrepende-se de ter se submetido às ameaças dos seus algozes. Teve medo de morrer na fogueira, continuará afirmando que é uma enviada de Deus, sua filha. Aceita o martírio.
O processo de preparação para a morte mostra a firmeza de Joana D’Arc para o encontro com Deus no paraíso, acredita que seu martírio levará à sua libertação. Libertação da agonia a que se encontra submetida. Seus algozes exultam. O povo que assiste contesta: Queimaram uma santa!
O filme mudo, em película preto/ branca, fala pelas imagens. Nesta cópia restaurada a trilha musical envolve o espectador no mundo renascentista do século XV, traz dignidade e sobriedade às cenas. A Escola dos Annales vai-se beneficiar, posteriormente, nos seus estudos historiográficos, da atenção à linguagem cinematográfica como um documento valioso para reconstrução da memória e das conjunturas, seguramente será Marc Ferro um dos mais entusiasta defensor desta idéia.

O filme além de reconstruir um documento histórico pelas atas e minutas de um processo de julgamento renascentista, por si só de um valor historiográfico exemplar, denuncia a violência cometida pela Igreja nos atos inquisitoriais. Prática que nos acompanha por milênios. A cópia do filme consultada nos oferece ainda dois depoimentos encantadores: uma entrevista da filha de Renée Falconetti (Joana D’Arc) e um texto de André Bazin comentando o filme.