sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Mostra de Filmes Africanos e da Diáspora.





Ouvinte inscrita na II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (II CIAD) realizada em Salvador, 12 a 15 de julho de 2006, chamou-me atenção a fala do Presidente da Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura (MinC), avaliando os resultados do evento: a conferência produziu resultados políticos entre os chefes de Estado que participaram, para a própria União Africana, para organismos internacionais, sem falar na qualidade dos debates que foram produzidos durante três dias de discussões que integram a IICiad. Além disso, acho eu, gerou polêmica discussão os temas relacionados aos projetos de Lei das Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial, pauta que se destaca nos pleitos da juventude negra brasileira em seus movimentos sociais. A programação de mesas redondas sobre Religião e Herança Cultural e a Mostra de Cinema da África e da Diáspora, esta particularmente, me interessou de perto. Foram selecionados oito filmes, a maioria co-produção de países africanos e europeus (França / Portugal) e dois filmes recentes produzidos no Brasil. A seguir, apresento descritivamente o enredo dos filmes assistidos, procurarei noutro momento oportuno, interpretá-los na perspectiva da linguagem cinematográfica.

O Herói (2003) filme em co-produção Angola, França e Portugal, com direção de Zezé Gamboa, mostra os dramas de um angolano, Vitório, mutilado na Guerra de Independência Angolana que se encontra sem emprego e submetido às discriminações da sociedade local. Perdeu sua perna direita. O filme convida à reflexão sobre os valores da luta nas guerras de independência e a sangrenta luta pela sobrevivência.
Primeiro plano, Vitório recebe uma prótese num posto de saúde de um povoado em Angola. Ele é herói de guerra medalhado e condecorado, porém mutilado. Próximo ao posto médico encontra-se uma gangue de meninos jogando bola e fazendo pequenos furtos pelas imediações. O posto de saúde de extrema precariedade mostra um médico que precisa também de assistência, sugerido por uma câmara que denuncia a apatia e imobilidade do local.
Noutro plano, uma professora primária avisa que a escola entrará num período de suspensão de aulas pela greve e os alunos acatam a notícia com muito contentamento. Repreendidos, ouvem o discurso da professora que comenta, didaticamente, sobre os objetivos de uma greve e recomenda que os alunos estudem, como formas de saída da situação de pobreza.
Manu, o aluno preferido, mora com a avó (Rute de Souza, se não me engano) e a professora visita sua casa demonstrando atenção ao seu comportamento e avanços na escola. Recordam, a professora e avó do menino, a perda do pai de Manu na guerra de independência angolana.
Freqüentando um pequeno bordel do povoado, Vitório conhece uma prostituta, Bárbara, que também perdeu um filho. A prostituta precisa sentir-se consolada pela ausência do filho, Vitório precisa namorar. Mantém os dois uma relação de companheirismo e trocas. Num desses encontros, Bárbara desespera-se por ter sido espancada por um dos seus clientes, Vitório decide apresentá-la à sua família. A gangue de meninos rouba a prótese de Vitório que passa a encontrar mais dificuldades em locomover-se. A professora primária encontra um ex-namorado que saiu de Angola para estudos internacionais e tem um tio que ocupa cargo político, pede-lhe que interfira no sentido de reaver a prótese de Vitório. O tio, por interesses políticos, pretende candidatar-se, decide fazer um apelo numa rádio local para que devolvam a prótese. A gangue de meninos devolve para Manu com receio das reprimendas. O filme tem o mérito de denunciar estigmas e discriminações e provocar reflexões sobre os heróis de guerra. As lutas pela libertação do povo angolano resultaram em vários Vitórios. A sociedade angolana precisa encontrar respostas para acolher seus mártires, heróis e meninos angolanos que vivem agudizados e vitimados pelas mazelas e sofrimentos da vida de pobreza.

As Ruas de Casablanca (Ali Zaoua, 2000) Poderia ser qualquer rua de Salvador, tamanha a semelhança dos personagens com os meninos e meninas caminhantes que encontramos diariamente. O filme, uma co-produção Marrocos e França, acompanha a história de Ali, Kwita, Omar e Boubken, com idades aproximadamente entre dez e doze anos, que percorrem as ruas de Casablanca e sofrem os embates com grupos e gangues rivais na luta pela sobrevivência. Num desses episódios, Ali morre. Os três amigos resolvem dar-lhe um enterro digno, realizando os seus sonhos de marinheiro. A narrativa do filme mostra a busca dos amigos para concretizar o propósito, auxiliados pela mãe de Ali, uma prostituta que mantém o quarto do filho com seus desenhos e objetos. O enterro de Ali vestido de marinheiro deslizando numa embarcação pelo cais mostra o empenho dos amigos que vivem cheirando cola e estigmatizados pela sociedade, submetidos à violência de toda ordem, em resgatá-lo do fosso onde que havia caído no porto onde atracam as embarcações. Os personagens movimentam-se com desenvoltura, merece destaque a participação do menino franzino, Kwita, pela espontaneidade dos gestos e diálogos, representa sem dificuldades os embates com as gangues rivais e mantém conversas com os demais meninos com marcas de realismo.

À espera da felicidade (2002), co-produção Mauritânia-França, traz uma narrativa de inspiração simbólica, planos longos e enfáticos nas cores, nos traços e gestos dos habitantes de uma pequena aldeia na costa da Mauritânia, África. É um filme plasticamente bonito. Mostram poucos diálogos, a câmara vai apresentando os movimentos, as intensas cores das indumentárias, os silêncios entre seus personagens. Abdallah, oriundo de Noandhobov, Mauritânia, visita sua mãe antes de emigrar para a Europa e sente-se um estranho em sua própria terra. Desaprendeu a língua, a sua língua materna. Os movimentos externos aparecem através de uma janela que lembram uma tela de TV, insinua que a comunicação com o exterior se faz por este canal. Noutro plano, um velho da aldeia ensina a um garoto a consertar e instalar fios para acender lâmpadas, o garoto pede-lhe que lhe conte histórias, pede que o velho lhe fale sobre a morte. As cenas da morte do velho com uma lâmpada acesa na mão e a do garoto observando o movimento das ondas do mar afastando-se sugerem um debate sobre o tempo e suas relações com as distâncias. Em contraste, surgem imagens de cidade européia, as diferenças dos ritmos, dos movimentos, contrastam com os silêncios e vazios encontrados no povoado. As embarcações ao longe insinuam que há possibilidades de comunicação, há um futuro. Outro plano mostra um trem que passa e o garoto tenta escapar da aldeia escondendo-se no trem, descoberto é obrigado a voltar. Alguns, entretanto, conseguem sair. A música sugere que os mais velhos ensinam aos mais novos o poder de cantar e tocar, as mulheres fazem chá e se divertem enquanto Abdallah não reconhece mais o som da sua linguagem sente-se estrangeiro em sua própria casa. As imagens do filme são de simplicidade, leveza, cercados de silêncios e vazios do povoado nas costas da Mauritânia, distante e próximo do mundo moderno.

Samba Troré (1992) co-produção Burkina Faso-França, com direção de Idrissa Quédraogo. Troré, o personagem central, após um assalto a um posto de gasolina em que seu amigo morre no tiroteio, foge para sua aldeia levando a mala de dinheiro. Os hábitos, costumes, rituais da aldeia são alterados diante do fato, informando os valores e traços predominantes de uma cultura voltada predominantemente para a agricultura de subsistência. Samba entusiasma-se por Saratou, uma negra africana bonita que tem um filho de outra relação, o Ali. Um casal de amigos, Salif e sua mulher Binta, convivem com as aventuras de Samba para conquistar Saratou e divertidas cenas vão permitir mostrar Binta impondo sua força de matriarca dominando seu companheiro e ridicularizando-o. A vida da aldeia vai-se modificando, Samba utiliza o dinheiro para aumentar a criação de animais e os habitantes da aldeia começam a inquietar-se, principalmente o pai de Saratou, por não saber da procedência do dinheiro. Grávida, Saratou com dificuldades de parto precisa de ajuda médica, a família inicia o transporte em carroça, até encontrar um veículo que possa levá-la em busca de ajuda médica. Samba não a acompanha até a cidade mais próxima, sabe que será preso. A família não entende a atitude dele e decide levar Saratou para outra aldeia, sem que ele possa conhecer o novo filho. O ex-marido de Saratou denuncia-o. As últimas cenas mostram a tentativa de fuga de Samba, avisado por seu amigo Salif que é atingido por uma bala na perna pela milícia ao seu encalço. Samba é preso e Salif, num tom doutrinal, reafirma os pecados do roubo. O filme além de um drama de fundo moral pregando uma mensagem de punição para os que transgridem as regras dos considerados bons costumes, mostra as relações de amizade e companheirismo entre os habitantes do povoado e as trocas solidárias numa aldeia pobre de Burkina-Faso.


Conhecemos pouco do cinema africano. Essa sumária mostra na verdade espelhando nossas diferenças e igualdades, provocaram-me reflexões, sentimentos e atitudes de indignação e estranhamento. A temática social e o cinema político como instrumento de denúncia e aproximação entre os povos,pareceu-me outro resultado importante que Ubiratã Castro talvez quisesse se referir na sua fala de abertura da conferência.

Programação e apresentação da mostra:

O Herói (2003) Angola-França-Portugal.
Direção: Zezé Gamboa.

Samba Troré (1992) Burkina Faso-França.
Direção: Idrissa Quédraogo.

As ruas de Casablanca (2000) Marrocos-França.
Direção: Nabil Ayouch.

Á espera da felicidade (2002) Mauritânia-França.
Direção: Abderrahmane Sissako.

Nha Fala (2002) Guiné-Bissau- Portugal- França.
Direção: Flora Gomes.

Cafundó (2006) Brasil.
Direção: Clóvis Bueno e Paulo Betti.

Roble de Olor (2003) Cuba.
Direção: Rigoberto López;

O dia em que o Brasil esteve aqui (2006) Brasil.
Direção: Caito Ortiz e João Dornelas.

Salvador, julho de 2006.

4 comentários:

Anônimo disse...

Oi Stela, o blog está bonito, leve, gostei do mapa da Africa, deconstruindo a ideia de que é um continente homogeneo, as narrativas dos filmes sao fluidas, comunica, obrigada, beijos, Mary

Jonga Olivieri disse...

Conforme lhe falei, estou postando um comentário neste post mais antigo. Vim conhecendo o seu blog do início para o final, mas resolvi comentá-lo seguindo um caminho em ordem crescente. A ordem certa(?) das coisas.
Muito importante esta "Conferência...". Até porque essencial o conhecimento que tenhamos dos africanos, ou até porque a sua dispersão deu-se forçadamente para o nosso lado.
Somos um pedaço da sua diáspora. Fazemos parte dela.
Outrossim, porque desconhece-mo-los de tal maneira?
É totalmente inacessível a nós, brasileiros, em que a africanidade está aí, explícita nas ruas, nos hábitos nas crendices. Mais, nos Orixás, Iemanjás. Mais ainda: no linguajar, nas expressões, até nos apelidos. Como o meu, tão impregnado de suas influências.
O fato é que o cinema africano é-nos totalmente estranho, distante. Um enigma.
Queria mesmo ter a oportunidade de assistir filmes de Angola, um país irmão, fruto de semelhanças na colonização, e portanto nos hábitos. Pelo menos em alguns deles, certamente.
Gosto de alguns autores angolanos modernos, como já admirava Agostinho Neto, poeta e revolucionário. Condutor da independência, da libertação do jugo europeu, negro pleno de lutas e ideais.
Mas, e isto é importante, queria assisti-los no dia a dia de nossas vidas. Ao passar por um cinema ao acaso. Ou virar um canal e deparar-me com um.
Mas não, se existe é fechado a eventos..., mostras. Talvez. Quando deveria é estar fazendo parte de nosso cotidiano. Não sei se fui claro, claríssimo. Mas o que quero dizer é que há uma distância imposta pela ignorância/indiferença, pelo desconhecimento. Pela ausência.

Matusalém disse...

Olá Stela, parabéns pelo blog, muito rico e interessante. Gostei das dicas dos filmes. Sou professor de Geografia e fiquei curioso em ver os filmes. Se alguém souber como posso adquirir, me ajudem, principalmente o filme O HERÓI. Abraços

Anônimo disse...

Aprendi muito