quinta-feira, 6 de novembro de 2008

De Münsterberg a Emigholz: uma iniciação.











Série da obra de Heinz Emigholz. A intenção da série parece ser a de propor uma experiência perceptual, de conhecimento.



Nunca tinha ouvido falar em Hugo Münsterberg. Consultando a estante de livros de cinema na Biblioteca da Universidade Federal da Bahia, há pouco tempo atrás, localizei a antologia A experiência do cinema, organizada por Ismail Xavier. Folheando numa leitura diagonal, achei que esta antologia deveria compor a pilha de livros em consulta que, pacientemente, tenho tentado percorrer, ainda que saiba uma missão ad eternum (1)

Todos os outros autores citados, Béla Balázs, Maurice Merleau-Ponty, André Bazin, Edgar Morin, Serguéi Eisntein e outros, indicados no índice desta antologia publicada em 1983, fazem parte do repertório que aos poucos tento construir sobre cinema. Estes autores embora consultados, não eram trazidos como primazia num objeto de estudo mais recentemente focado, ou seja, na compreensão da linguagem cinematográfica em suas dimensões sintática e semântica.

Considerado pioneiro, Hugo Münsterberg, psicólogo alemão, professor da Universidade de Harvard, escreveu Photoplay: a psychological study, que segundo I.Xavier, antecipa idéias que iremos encontrar em Rudolf Arnheim (em O cinema como Arte), idéias relativas à psicologia do “fotodrama” e dos princípios gerais de sua estética. Estudo que examina as ilusões de profundidade e movimento contínuo criadas a partir de projeções descontínuas de fotografias estáticas. A aparência de profundidade é aceita pelo espectador que se envolve no “como se” da ficção, mostrando que o espectador não é um elemento passivo, é alguém que usa de suas faculdades mentais para participar ativamente do jogo, preenchendo as lacunas do objeto com investimentos intelectuais e emocionais.

Diz Xavier, expandido as idéias de Münsterberg, o espectador é alguém que usa de suas faculdades mentais para participar ativamente do jogo. Esta concepção estética confere portanto uma posição privilegiada pois o mundo exterior se reveste de formas da consciência. Mais ainda, o cinema supera as formas do mundo exterior e ajusta os eventos às formas do mundo interior numa exaltação da “vitória da mente sobre a matéria”. Neste mundo interior, a atenção, a memória, a imaginação e a emoção ganham relevo especial.

As bases que fundamentam esses princípios são encontradas em Kant, também trazidas por J. Dudley Andrew em As principais teorias do cinema, este, outro livrinho que se encontra na pilha a que me referia anteriormente (2). Interessante verificar como este pioneiro que pensou o cinema indica um ponto de partida para verificarmos em que medida as relações entre a organização das imagens e o movimento da subjetividade operam. Se este princípio mantém-se ativo, ainda hoje, a despeito de uma revolução tecnológica que opera na engrenagem fílmica, é possível perceber a multiplicidade de transformações da subjetividade sob o predomínio das imagens. Ou não? Estou me referindo a uma série de filmes que tive oportunidade de assistir nos Seminários On Line, principalmente os de Heinz Emigholz (3).


Notas:
1. Há vários volumes para consulta. Cf. A experiência do cinema: antologia/Ismail Xavier org. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983.
2. Este livrinho trouxe-me de presente, J. Dudley Andrew. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.
3. As aulas dos Seminários On Line foram reproduzidas e consultadas em 2007/2008. A aula que me refiro, especificamente, intitulada A Região Central de Movimento. Heinz Emigholz e a Imagem-Percepção fizeram parte do quinto seminário.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sobre filmes, livros e pureza.

Neste fim de semana que passou dois episódios fizeram-me pensar mais sobre cinema. Assisti Ensaios Sobre a Cegueira e adquiri o livro de José Saramago. Além disso, tive o prazer de perceber, mais uma vez, que buscar sempre um diálogo com o Jorge Coli que nos brinda com sua coluna todo domingo, nos aproxima cada vez mais da crítica que nos adverte da miopia branca. Segue a transcrição do seu texto: Monstros da Pureza.


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA


Oswaldo Martins, especialista em literatura erótica, é também poeta. Um ou outro de seus poemas, em livros e no blog http://osmarti.blogspot.com, contém palavras mais fortes. Alguns elaboram desejos físicos de maneira delicada e sem evidência imediata. O blog é inteligente, carregado de amor pela literatura; os poemas são bons. Essas qualidades bastaram para que a Escola Parque [no Rio], em que Oswaldo Martins lecionava português, o demitisse, como contou, no domingo passado, o Mais!. A miopia moralista da escola, dos pais, de "psicólogos e juristas" evocados no texto, miopia que desencadeou o caso, assusta pelo "obscurantismo e a certeza dos censores", na expressão do próprio professor despedido. Censura e obscurantismo, no caso, não são singulares e episódicos. Eles se inserem na mentalidade de nossos tempos regressivos, marcados por puritanismos, por fundamentalismos religiosos, pelo maniqueísmo das convicções, pelo gosto doentio em patrulhar, controlar, vigiar e punir. É bem difícil lutar contra tudo isso porque essas manifestações se fazem com parcimônia, gota a gota, disfarçadas, em nome de álibis austeros. Aqui, trata-se de proteger as crianças, que, como todos sabem, são anjinhos imateriais, feitos de etérea e cândida substância, não de carne e osso. Mas quem os protegerá, e a nós todos, do mal que existe na cabeça desses educadores, desses pais, desses psicólogos e juristas, que nunca disseram um palavrão, que estão incólumes de pulsões pecaminosas, e que, senhores da moral, transformaram-se em juízes? Quem nos protegerá dos puros?

Travessuras
Exposição toda carregada de energia, humana e sexual. Seu título é um trocadilho de tom frívolo e bem achado: "Diário de Bolsa". Está na Pinacoteca do Estado de São Paulo e reúne fotografias de Vania Toledo. A maioria é dos anos 1970, até os primeiros 1980. Há nelas uma grande atração pelas festas delirantes, pela noite agitada, pelo mundo gay, por celebridades na moda, que vão de Warhol a Ângela Maria. Todos surgem surpresos em situações inesperadas, incongruentes. São instantâneos que se dilatam no espírito de uma época. A forma das fotografias se submete a algo maior: expandir uma vitalidade nada contemplativa. Nas situações mais ambíguas ou escabrosas, nenhum sentimento de deliqüescência, nenhum voyeurismo sórdido, mas a felicidade de ser, de ter existido ali, naquele momento. O passado volta, não como vestígio em documento antigo: ele dá lições de prazer sem culpa.

Morno
Na galeria Vermelho, em São Paulo, uma exposição intitulada "É Claro Que Você Sabe do Que Estou Falando?". A apresentação explica seu ponto de partida: "Onde está o sexo, mais do que a sexualidade, na produção de uma nova geração de artistas brasileiros?". A mostra não permite descobrir. Se aquilo é sexo, algodão-doce é mais gostoso.

Fagulha
Miniconto extraído do recente "Ruídos Urbanos", de Moacyr Godoy Moreira, pela Ateliê Editorial, com ilustrações de Enio Squeff: "Vivi meses por conta de maria. Do trabalho rotineiro e de maria. Chegava e já ligava para ela, recebia ordens, ia visitá-la, jantava -raramente ia ao cinema ou ao teatro. Uma pessoa difícil. Suave e carinhosa por vezes, cruel e sanguinária por outras. Os versos de Carlos a ribombar: "A chuva me irritava. Até que um dia, descobri que maria é que chovia". Sento-me defronte à calçada, aguardo amigos que chegarão. Há tempos não chegava ninguém. E maria respinga, mas não chove mais."

jorgecoli@uol.com.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

ALMODÓVAR: Impressões




















O livro de trezentas páginas de conversas com Pedro Almodóvar, colhidas por Frederic Strauss e reunidas neste volume, proporcionaram-me maior aproximação com a obra do conhecido e admirado cineasta, ainda que as cenas de seus filmes se intercalassem à sua fala escrita, como numa complementação somatória e necessária à contemplação. A fala de Almodóvar me emocionou em diversas passagens da entrevista (1).

Utilizando como critério chave o período em que foram produzidos, o ex-redator e chefe adjunto da revista Cahiers Du Cinema, dialoga com Almodóvar provocando rememorações da sua filmografia e das condições em que foram produzidas, detendo-se no seu processo criativo e inspirador.

Parece que Almodóvar impregnou-se das marcas fortes de uma cultura edificada por uma família madrilena sem ostentações na qual se imprimiu um perfil inquieto e inventivo do realizador de cinema. Há uma referência sempre evidente ao papel preponderante dos traços matriarcais, a figura da mãe está sempre presente na sua obra, ainda que se faça prevalecer a colaboração de um irmão fraterno e empreendedor, Agustín. Curiosamente, as duas irmãs aparecem num comentário rápido ao final do livro.

Sabemos todos que assistem e gostam de cinema, principalmente dedicados à filmografia de Pedro Almodóvar, que não basta rememorar temáticas e cenas dos seus filmes, é preciso deter-se nos cenários, na dramaturgia, na iluminação, nas cores, na construção dos personagens, na montagem das seqüencias, nas elipses criadas, na diversidade de planos. A fala de Almodóvar sobre seus filmes ganha mais expressão podendo-se rever seus filmes. Pela palavra, não ultrapassamos a força das imagens nem do poderoso melodrama kitsch em imagens.

A seqüencia de sua produção demonstra o labor e empenho de um autor que tem privilegiado as personagens femininas. Em 1980 foram realizados oito filmes longa metragem, quase que um por ano. Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão (Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, 1980), Labirinto de Paixões (Laberinto de pasiones, 1982), Maus hábitos (Entre tinieblas, 1983), Que fiz eu para merecer isto? (Que He hecho yo para mercer esto, 1984), Matador (Matador, 1985-86), A lei do desejo (La ley Del deso, 1986), Mulheres à beira de um ataque de nervos (Mujeres AL borde de um ataque de nervios, 1987), Ata-me! (Ataque!, 1989).

Em 1990, De salto alto (Tacones lejanos, 1991), Kika (Kika, 1993), A flor do meu segredo ) La Flor de mi secreto, 1995), Carne trêmula ( Carne trêmula, 1997), Tudo sobre minha mãe ( Todo sobre mi madre, 1999).
Fale com ela ( Hable com Ella, 2002), Má educação ( La mala educación, 2004) e Volver ( Volver, 2006), completam sua recente saga de uma produção contínua e reconhecida internacionalmente.

Vários caminhos se fazem para investigação da sua obra. Nas academias universitárias, centros de estudos, instituições de ensino e pesquisa, multiplicam-se as monografias, dissertações e teses que se aventuram nas análises fílmicas buscando compreender e interpretar suas mensagens, o significado da sua obra cinematográfica e da sua linguagem. Ainda não mapeei esta literatura, embora considere esse patamar de pesquisa, prefiro aproximar-me afetivamente da sua filmografia valorizando os aspectos subjetivos e relacionados ao plano da emoção e dos sentimentos que as imagens suscitam.

Na mídia eletrônica e nos mais diversos meios de comunicação de massa, atropelam-se os comentários breves e superficiais sobre os significados dos filmes e da obra de Almodóvar, com raras e honrosas exceções. Do que tive oportunidade de conhecer, falta descobrir uma leitura que revele os segredos da sensibilidade madrilena e suas marcas na inspiração e criatividade voraz.
E para terminar, as palavras do Almodóvar:

Minha sensibilidade está inteiramente no filme (Tudo sobre minha mãe), que nesse sentido é tão autobiográfico como um filme sobre um cineasta de La Mancha que acaba de ganhar um Oscar. Além disso, Tudo sobre minha mãe fala de como me tornei cineasta. Quero acreditar que minha educação como espectador se deu com filmes adaptados das obras de Tennessee Williams, especialmente Um bonde chamado desejo. O desejo é o nome de nossa produtora, é a palavra chave do título de um de meus filmes e está também, presente em todos os outros (...).

Notas: Pedro Caballero Almodóvar nasceu em 1950 na província de Mancha em Madri. Em 1970 já em Madri trabalhava numa agência de correios e telégrafos e montava com seu irmão, Agustín, uma máquina de produzir seus filmes, El Desejo. Nesta, dispõe-se hoje de mais de vinte películas. Cf. Conversas com Almodóvar/ Frederic Strauss. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Linguagem Cinematográfica e Almodóvar























A bibliografia apresentada para construir a obra A Linguagem Cinematográfica de Marcel Martin está datada (1).
Centra-se, principalmente, na produção francesa dos anos 50 estendendo-se até 60, basicamente, trazendo referências fundamentais. Dizendo, numa linguagem mais livre, esta obra bebe na fonte de nomes consagrados e, talvez, pouco consultados e pesquisados pelos modernos realizadores cinematográficos. Nesta vamos encontrar a leitura de Serguei Eisenstein (1898-1948) em três trabalhos, sendo dois publicados em Londres e um em Moscou. Esta última versão, na tradução em espanhol, foi objeto de consulta neste blog anteriormente (cf. texto de 19 de outubro de 2007). Referências básicas, também, são os trabalhos de André Bazin, Rudolf Arnheim, René Clair, Edgard Morin, Georges Sadoul e muitos e muitos outros pensadores, artistas e estudiosos voltados para incursões no mundo das artes (2).

Esclarece os editores que a primeira vez que foi editada, em 1955, obteve êxito e esgotou-se rapidamente, com traduções em espanhol, japonês, russas e portuguesas. Devo dizer que este livro editado na década que nasci, só recentemente tive a curiosidade de me deter com mais vagar, uma vez que indicado nas Oficinas de Cinema sob a coordenação de André Setaro. Nesta incursão pela obra, apreendendo os caracteres fundamentais da imagem fílmica e da imagem como elemento básico da linguagem cinematográfica, a matéria prima fílmica, cuja gênese é produto da atividade automática de um aparelho técnico capaz de reproduzir a realidade, diversas questões começam a se impor. De que realidade o autor está falando? É possível apreender a realidade? Sabemos, pela herança das ciências sociais, que realidade é um conceito complexo e intangível. Porém, Martin, refere-se à “realidade material, com valor figurativo”, cuja objetividade reprodutora é indiscutível. A imagem fílmica resultante do registro que a câmara obtém da realidade, em que “a imagem fílmica suscita no espectador um sentimento de realidade muito forte em determinados casos para provocar a crença na existência objetiva do que aparece na tela” (p.18).

Mas ainda, afirma Martin, o cinema dá-nos da realidade uma percepção subjetiva do mundo, uma imagem artística em que o realizador pretende exprimir sensorial ou intelectualmente, utilizando-se da câmara, um aparelho de registro do chamado “real”. Portanto, a realidade estética tem um valor afetivo, é resultante da intervenção e realização de operações de escolhas onde preponderam as subjetividades, no caso, as escolhas/seleções para a realização das imagens. A realidade intelectual tem, mais ainda, um valor significativo. A captação da chamada realidade pela câmara não garante, por si só, a aproximação do real, é preciso buscar os sentidos dos fatos, dos acontecimentos. Os sentidos precisam ser desvendados uma vez que a imagem pode estar carregada de ambigüidades, de falseamentos.

Fala ainda Martin de uma atitude estética. Se a imagem reproduz o real, também afeta os sentimentos, também detém uma significação. Em Eisenstein, a imagem nos conduz ao sentimento e à idéia. Assim, a imagem é percebida como uma realidade estética e o cinema é a representação desta estética.
Iniciamos a leitura desta obra. Fiquemos nas primeiras características fundamentais da imagem fílmica. Devo dizer que bastaria estas trinta páginas iniciais para tentar desvendar uma série de perguntas complexas e que requerem cuidados. Mas não vou ousar fazer isso, aliás, não é prudente para uma iniciante que quer conhecer a linguagem cinematográfica, do ponto de vista dos seus fundadores, adentrar-se pelo que não sabe.

Recentemente revi Fale com Ela (Hable com Ella, Espanha, 2002) de Pedro Almodóvar. A Zahar acaba de lançar livro sobre Almodóvar, a Revista Bravo dedicou um número sobre sua filmografia, tempos atrás. Qual a linguagem cinematográfica expressa por este bruxo?
Respondendo a Frederic Strauss sobre as motivações de seus filmes na primeira fase de vida, ele comenta (3).

Não lia literatura espanhola; comecei aos vinte anos, e ela me apaixonou, sobretudo, os realistas do fim do século XIX. No liceu, mal nos falavam de Rimbaud ou de Genet, mas compreendi que ali havia algo que me interessava e comecei a lê-los, bem como certos poetas malditos. A partir desse momento minha relação com a literatura tornou-se apaixonante, sobretudo através dos autores franceses. Quando cheguei a Madri, em 1968, no momento em que a literatura sul-americana explodia pelo mundo todo, eu lia compulsivamente (...)

Perguntado sobre o gênero do filme Labirinto de Paixões (Laberinto de Pasiones, Espanha, 1982), responde:
(...) marcou todo o meu trabalho o mais radical ecletismo. Isso para mim não é uma atitude intelectual, ainda que esteja convencido de que o ecletismo é um estilo bem “final de século” de contar histórias, porque em períodos como o que vivemos hoje as pessoas voltam-se facilmente para o passado, cada um faz sua própria seleção de histórias desse século e junta, misturando-as, as histórias que lhe agradam. Hoje o ecletismo está presente nas criações musicais, literárias e na moda. Estamos no final do século, e nossa tendência é sobretudo, fazer balanços, não é o momento para se criar novos gêneros, mas para se refletir sobre o que já aconteceu e, e em que todos os estilos são possíveis. Parece-me haver uma coincidência entre esse movimento e o ecletismo dos meus filmes, que é natural e visceral. Isso se deve, sem dúvida, ao fato de eu não ter tido uma educação clássica, de não ter aprendido cinema na escola, de ter demonstrado uma certa indisciplina e de sempre ter mantido minha liberdade. Não que isso tenha um espírito mais original, mas, em todo caso, é um espírito menos ortodoxo.

A filmografia almodovariana, eivada de ecletismo como ele próprio reconhece, não deixa de ter por herança, se não os clássicos no sentido acadêmico tradicional, mas uma linguagem fílmica em que as subjetividades ganham relevo para expressar suas idéias e emoções sobre o mundo e suas relações. Indisciplinado por natureza, expressivo na sua assumida homossexualidade, Almodóvar nos mostra um estilo criativo e singular. Sua linguagem cinematográfica recusa-se a ortodoxia, porém, não podemos negar, fundamenta-se numa base cujos princípios foram pensados e inventados pelos primeiros a que nos referíamos no início desta conversa.


Notas:
1. Conferir a edição de 1955, Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia.
2. Cf. Marcel Martin. A Linguagem Cinematográfica. Lisboa, 1971
3. Dentre a vasta literatura que comenta a filmografia de Pedro Almodóvar, foi lançado recentemente, de Frédéric Strauss, Conversas com Almodóvar. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2008.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Brevíssimo Comentário.















Encontra-se na mesa de trabalho livros sobre cinema.
Divido o tempo entre leituras sistemáticas e consulta às filmografias referenciadas. Dedicação e capacidade para observar diferentes dimensões desta poderosa linguagem, um excelente desafio.

A parte primeira da consulta refere-se a tradição formativa, onde inclui-se o legado deixado por Hugo Munsterberg, Rudolf Arnheim, Sergei Eisenstein, Béla Balázs. Na segunda parte encontro menção à teoria realista do cinema, em Siegfried Kracauer e André Bazin. A Linguagem Cinematográfica, de Marcel Martin, primeira edição datada de 1955, busca trazer as características fundamentais da imagem fílmica, seus elementos básicos, a montagem, os movimentos de câmara, o espaço, o tempo, entre outros.
Por que voltar-se para a teoria do cinema?
Uma das resposta que encontramos, além do prazer do conhecimento, encontra-se na compreensão do funcionamento desta arte, compreender sua linguagem, perceber seus métodos, suas técnicas, suas diferentes formas e modelos, suas formas de inserção no social.
Qual a natureza do filme? Qual a sua relação com a realidade? Como a fotografia e o som se relacionam? O que destingue o cinema das demais artes? Entre outras, estas parecem ser as inquietações dos autores escolhidos, dentre os diversos títulos encontrados para manter o diálogo e para perceber o valor da tradição no enfrentamento do moderno, o cinema hoje parece ter perdido esta memória.


Notas:
1. Andrew, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.
2. Martin, Marcel. A linguagem cinematográfica. Prelo Editora, Lisboa, 1971.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

PARSIFAL























Tenho estado ausente desta página por motivos exclusivamente temporários e contrários ao meu desejo. Para não deixar de atender aos poucos porém constantes que por aqui marcam sua passagem e me perguntam se vou voltar, incluo hoje o texto divulgado no Caderno Mais de 24 de agosto de 2008, em Ponto de Fuga.
Como finalizei comentando, ainda que precariamente, sobre a trilogia de Hans-Jürgen Syberberg, Hitler, um filme da Alemanha (Hitler, Ein Film Aus Deutschland, 1977) na postagem anterior, quis trazer o texto que comenta Parsifal, a última obra de Wagner. Muito obrigada Professor!

JORGE COLI
O s cavaleiros do Graal são castos, isto é, não podem transar, salvo em certas exceções obscuras não explicadas no libreto da ópera.
Estão em declínio porque Amfortas, seu rei, cedeu às tentações da carne e ficou marcado por uma ferida sem cura. Não consegue mais presidir ao ritual que expõe a taça sagrada, o Graal, onde permanece o sangue de Cristo, porque suas dores atrozes aumentam durante a cerimônia.
Surge um novo líder, Parsifal, o "puro louco", que resistiu às seduções de umas moças muito desenvoltas. Elas são as agentes de Klingsor, ex-cavaleiro que se castrara a si próprio buscando, assim, eliminar seus desejos libidinosos.
Klingsor ignorava, porém, que castração não valia como controle dos apetites. Expulso da comunidade dos bons, assume o papel do supervilão, cria um paraíso de mulheres-flores, especialistas em desviar gente boa para o mau caminho.
No final, purificado, Parsifal assume o ritual do cálice sagrado que iluminará para sempre a humanidade.
"Parsifal", a última obra de Wagner, data de 1882. O compositor havia construído, em Bayreuth, na Alemanha, um grande teatro com características peculiares. Determinou que "Parsifal" fosse unicamente representada ali, o que aconteceu até 1913, quando os direitos autorais caducaram.

Drácula
"Parsifal" foi a ópera preferida de Hitler, que devia se imaginar como o redentor de uma Alemanha em decadência. Himmler construiu para os SS, a polícia militarizada dos nazistas, o castelo de Wewelsburg, morada sagrada em que seus agentes se tomavam por modernos cavaleiros do Graal. A sala de reuniões foi desenhada a partir dos cenários do primeiro "Parsifal" em Bayreuth.

Novelo
"Parsifal" não apenas gravita em torno de obsessões universais, como o desejo, a culpa, a regeneração, o sofrimento, o poder, o masculino e o feminino. Enleou-se de maneira inextricável com a história alemã. O jovem diretor de cena norueguês Stefan Herheim criou a nova e estupenda produção de "Parsifal" para o festival Wagner de Bayreuth. Como também é músico, atenta para cada sugestão da partitura. Retoma, com meios modernos, a tradição teatral wagneriana, fascinada pelas mágicas metamorfoses no palco.
Começa dentro da casa de Wagner, que existe até hoje: a casa se transforma em jardim, o jardim em floresta, a floresta em templo. Uma cama, lugar de nascimento, de morte e de prazer, forma o ponto nodal, em que personagens aparecem e somem. Estandartes nazistas se desenrolam com suas suásticas; eles assustam, expondo o que se buscou esquecer: o passado tremendo daquela ópera e daquele teatro que se enfeitava para receber o ditador.
No final, quando tudo está em ruínas, Parsifal se despe de sua armadura que o assemelha à figura emblemática da Germânia; enormes espelhos tremulantes refletem os espectadores no fundo do palco que incorporam a cena. A pomba do Espírito Santo se muda em signo de paz universal. Herheim, apoiado na regência lenta e expressiva de Daniele Gatti e em ótimos intérpretes, trouxe a História para o palco.
As cinco horas, ou quase, de "Parsifal" passaram como se fossem cinco minutos.

Assombro
Titurel, papel breve, mas nevrálgico, em "Parsifal", é interpretado com grande nobreza por Diógenes Randes: 32 anos, um sólido contrato com a ópera de Hamburgo, voz de baixo, ampla, poderosa, timbrada. É o primeiro brasileiro a cantar no mítico teatro de Bayreuth. jorgecoli@uol.com.br

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Estudos Culturais, Racismos e Cinema






















Estas breves anotações realizadas durante o Curso Crítica da Cultura/Estudos Culturais do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade/Facom-Ufba, sob a coordenação da Profa. Dra. Eneida Leal Cunha, tem o objetivo de colocar algumas inquietações dando continuidade ao debate e refletir pontos de vista e incursões ainda em elaboração, própria de quem deseja aproximar-se de um campo de estudo tenso, não hegemônico e, portanto, desafiante.

É conhecido de que a questão multicultural, termo utilizado universalmente e que se expandiu de forma oscilante e repleta de significados, requer inúmeros cuidados ao ser utilizado e requer uma crítica que possibilite a desconstrução do termo-chave (Hall, S. 2003). Não temos intenção de repetir as inúmeras críticas e advertências que os pais criadores dos Estudos Culturais já fizeram, com propriedade, apontando os inúmeros conflitos e disputas internas neste território, tendendo a diluí-los e confrontá-los noutros discursos que insistem em manter sua prevalência e autonomia (Hall, S. 2003). Neste debate, queremos enfatizar a necessidade de uma armação teórica para desmontar e operar sobre o conhecimento, mostrar como se estruturam as hierarquias de poder, evidenciar e desmontar os diferentes discursos e seus processos de manutenção de dominação e hegemonia, marcando os espaços relevantes e de indispensabilidade da teoria, leia-se práxis, buscando fazer prevalecer uma teoria que produza efeitos no real (Bhabha, H. 1998).

Operando nesta direção, em 1975-76, durante o Curso no Collège de France, Michel Foucault apresenta uma brilhante aula sobre a teoria clássica da soberania que serve de quadro para as análises não só da guerra, mais particularmente, da guerra das raças. Mostra como durante todo o século XVIII o tema raça vai ser retomado e ressignificado, como algo diferente do racismo de Estado, em tempos modernos. O tema do poder teorizado por Foucault nos oferece base para compreensão dos diferentes mecanismos de aparecimento, distinção, hierarquização e qualificação das raças consideradas “puras” e “superiores” em contraposição às” impuras” e “inferiores”, nos permitindo pensar a questão do racismo nas distintas sociedades modernas. A construção da racialidade e o papel estruturante do racismo nas sociedades modernas encontra nesta análise alguns elementos chaves para compreensão de um tema recorrente nos Estudos Culturais (Foucault, M. 1999). Falamos do debate da etnicidade e racialidade em contextos multiculturais internacionais e nacionais e como se apresentam nas sociedades modernas.

O racismo, condição indispensável e vital para exercer o direito da vida e da morte dos súditos pelo efeito da vontade soberana, segundo a teoria clássica de soberania vigente no século XIX, baseava-se na relação do tipo biológico “quanto mais às espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados”, a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior, do degenerado, do anormal, constituiu-se em discurso vital para a defesa da vida mais sadia e pura nas esferas políticas que se desenvolveram em grande parte nos séculos XVIII e XIX. Problemas da produção, da natalidade, da morbidade, de vida, acentuadas no início do século XX vão requerer a introdução de mecanismos mais racionais e seguros instalando uma nova tecnologia de poder, o biopoder, diz Foucault. Essa biopolítica ao se instalar, estabelece mecanismos de regulações globais que se exercem através de uma série de instituições, aparelhos de disciplina e de Estado. Neste quadro, o racismo nas sociedades modernas que funciona
e se desenvolve baseado no biopoder, apresenta características mais profundas do que uma velha tradição e uma nova ideologia, não está ligado apenas às mentalidades, vincula-se, especificamente, à técnica do poder. Para Foucault, os Estados considerados assassinos são os mais racistas, ver, por exemplo, a destruição das outras raças como uma das faces do nazismo que generalizou o biopoder e o direito soberano de matar. A sustentação do discurso racista nesta perspectiva, ganha modalidades diferentes a depender de conjunturas históricas e diversidades de arranjos sociais e culturais apresentados pelas sociedades modernas.

Os discursos colonialistas como aparatos de poder tem-se constituído pontos da agenda de estudos de conhecidos e interessados professores/pesquisadores dos Estudos Culturais, nas suas diferentes modalidades e interesses. São conhecidas as incursões em profundidade dos estudos de Eduard Said examinando os discursos europeus que constituem “o Oriente” como uma zona do mundo unificada em termos raciais, geográficos, políticos e culturais. Embora se considere o pioneirismo e originalidade desta teoria, a articulação da questão do desejo e do poder, tomando a leitura do estereótipo em termos de fetichismo, amplia-se e avança nas análises empreendidas por Homi Bhabha, ao analisar a questão dos estereótipos e do racismo. Nestas, são demonstradas que o estereótipo, a discriminação e o discurso do colonialismo são estratégias discursivas e psíquicas que precisam ser mais mapeadas em suas funções e modos de representações complexos (Bhabha, H. 1998).

O exame dos discursos racistas em diferentes narrativas tem fundamentado não só estes estudos como tem demonstrado a visibilidade do tema numa variedade de suportes encontrados tanto na literatura nacional como internacional. No Brasil, entre outros, a coleção História da Vida Privada oferece um conjunto de exemplos de como o tema da raça além de ser um tema tabu, tem prevalecido como idéia de branqueamento não só na literatura de ficção, como em contos para crianças, nos discursos políticos que circularam, principalmente, nos anos 30. Nestes, em grande parte, utiliza-se o processo de miscigenação para sustentar os argumentos da condição de degenerescência da raça. O conceito de raça e harmonia racial aparece nesses discursos de forma estabilizada e naturalizada de forma a negar o preconceito. Representação de um tipo particular de racismo, denominado por alguns autores como racismo silencioso (Schawrcz, L. 1998). Outros trabalhos, por sua vez, tem-se ocupado em demonstrar a construção do discurso colonial que predomina na produção da imagem eurocêntrica (Stam, R. 2006).

Sobre as facetas do racismo silencioso, Kabengele Munanga acrescenta: O racismo brasileiro na sua estratégia age sem demonstrar a sua rigidez, não aparece à luz; é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente em seus objetivos. Essa ideologia é difundida no tecido social como um todo e influencia o comportamento de todos_de todas as camadas sociais e até mesmo as próprias vítimas de discriminação racial. Discutir a questão da pluralidade étnica, e em especial da sua representação nas instituições públicas e nas demais instituições do país, ainda é visto como um tabu na cabeça de muitas pessoas, pois é contraditória a idéia de que somos um país de democracia racial (Munanga, K. 1996:215).

A cinematografia alemã possui um expressivo conjunto de obras que discutem a questão dos estereótipos e discriminações raciais, situando o racismo de Estado como uma poderosa máquina de triturar corpos e fabricar as raças arianas superiores e megalomaníacas. Um primor de exemplo encontra-se na trilogia de Hans-Jürgen Syberberg, denominado Hitler, um filme da Alemanha (Hitler, Ein Film Aus Deutschland, 1977). O filme utiliza três personagens marcantes- Karl May, Richard Wagner e Adolf Hitler- e desmonta a “encenação” Hitler, a “arte” e o espetáculo do nazismo, das grandes concentrações de massa, dos desfiles, da propaganda e do cinema. Através de uma colagem que se aproxima dos princípios estruturais da música, Syberberg tenta explicar Hitler e o nacional socialismo em suas raízes e contextos mitológicos, confrontando-o com os marcos da história e da cultura alemã, num trabalho de poderosa originalidade e de intenções aterradoras, como comentam seus críticos, em ensaios publicados em The New York Rewiew of Books, 21 de fevereiro de 1980 (consultado em texto impresso). A película compõe-se de quatro partes, com sete horas de duração, repleto de densas referências à história cultural da Alemanha, em que o lado subjetivo do fascismo, as orientações místicas, os irracionalismos são permanentes no discurso do cineasta que cria um “espetáculo no tempo presente” como assinala Susan Sontag na sua crítica ao Hitler de Syberberg.

Devo finalizar essas breves notas, uma vez que o instrumento de divulgação na web via blog requer limites de espaço. Vários fios ficaram soltos. Gostaria de convidar a quem se aventurar pela leitura destas anotações, para o contraponto necessário ao diálogo, elos que possibilitam melhores interpretações.

Referências citadas:
1.HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
2.BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 1998.
3.FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
4.STAM, Robert e SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
5.SCHARCZ, Lília. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
6.MUNANGA, Kabengele. O negro recusa a assimilação. In: Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986.
7.Goethe-Institut Salvador-Bahia. Seminários On Line. Hans-Jürgen Syberberg. Aula 3. Outubro de 2007. Cf. HTTP://www.goethe.de/ins/br/sab/pro/semin5/s5aula3.htm