quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Linguagem Cinematográfica e Almodóvar























A bibliografia apresentada para construir a obra A Linguagem Cinematográfica de Marcel Martin está datada (1).
Centra-se, principalmente, na produção francesa dos anos 50 estendendo-se até 60, basicamente, trazendo referências fundamentais. Dizendo, numa linguagem mais livre, esta obra bebe na fonte de nomes consagrados e, talvez, pouco consultados e pesquisados pelos modernos realizadores cinematográficos. Nesta vamos encontrar a leitura de Serguei Eisenstein (1898-1948) em três trabalhos, sendo dois publicados em Londres e um em Moscou. Esta última versão, na tradução em espanhol, foi objeto de consulta neste blog anteriormente (cf. texto de 19 de outubro de 2007). Referências básicas, também, são os trabalhos de André Bazin, Rudolf Arnheim, René Clair, Edgard Morin, Georges Sadoul e muitos e muitos outros pensadores, artistas e estudiosos voltados para incursões no mundo das artes (2).

Esclarece os editores que a primeira vez que foi editada, em 1955, obteve êxito e esgotou-se rapidamente, com traduções em espanhol, japonês, russas e portuguesas. Devo dizer que este livro editado na década que nasci, só recentemente tive a curiosidade de me deter com mais vagar, uma vez que indicado nas Oficinas de Cinema sob a coordenação de André Setaro. Nesta incursão pela obra, apreendendo os caracteres fundamentais da imagem fílmica e da imagem como elemento básico da linguagem cinematográfica, a matéria prima fílmica, cuja gênese é produto da atividade automática de um aparelho técnico capaz de reproduzir a realidade, diversas questões começam a se impor. De que realidade o autor está falando? É possível apreender a realidade? Sabemos, pela herança das ciências sociais, que realidade é um conceito complexo e intangível. Porém, Martin, refere-se à “realidade material, com valor figurativo”, cuja objetividade reprodutora é indiscutível. A imagem fílmica resultante do registro que a câmara obtém da realidade, em que “a imagem fílmica suscita no espectador um sentimento de realidade muito forte em determinados casos para provocar a crença na existência objetiva do que aparece na tela” (p.18).

Mas ainda, afirma Martin, o cinema dá-nos da realidade uma percepção subjetiva do mundo, uma imagem artística em que o realizador pretende exprimir sensorial ou intelectualmente, utilizando-se da câmara, um aparelho de registro do chamado “real”. Portanto, a realidade estética tem um valor afetivo, é resultante da intervenção e realização de operações de escolhas onde preponderam as subjetividades, no caso, as escolhas/seleções para a realização das imagens. A realidade intelectual tem, mais ainda, um valor significativo. A captação da chamada realidade pela câmara não garante, por si só, a aproximação do real, é preciso buscar os sentidos dos fatos, dos acontecimentos. Os sentidos precisam ser desvendados uma vez que a imagem pode estar carregada de ambigüidades, de falseamentos.

Fala ainda Martin de uma atitude estética. Se a imagem reproduz o real, também afeta os sentimentos, também detém uma significação. Em Eisenstein, a imagem nos conduz ao sentimento e à idéia. Assim, a imagem é percebida como uma realidade estética e o cinema é a representação desta estética.
Iniciamos a leitura desta obra. Fiquemos nas primeiras características fundamentais da imagem fílmica. Devo dizer que bastaria estas trinta páginas iniciais para tentar desvendar uma série de perguntas complexas e que requerem cuidados. Mas não vou ousar fazer isso, aliás, não é prudente para uma iniciante que quer conhecer a linguagem cinematográfica, do ponto de vista dos seus fundadores, adentrar-se pelo que não sabe.

Recentemente revi Fale com Ela (Hable com Ella, Espanha, 2002) de Pedro Almodóvar. A Zahar acaba de lançar livro sobre Almodóvar, a Revista Bravo dedicou um número sobre sua filmografia, tempos atrás. Qual a linguagem cinematográfica expressa por este bruxo?
Respondendo a Frederic Strauss sobre as motivações de seus filmes na primeira fase de vida, ele comenta (3).

Não lia literatura espanhola; comecei aos vinte anos, e ela me apaixonou, sobretudo, os realistas do fim do século XIX. No liceu, mal nos falavam de Rimbaud ou de Genet, mas compreendi que ali havia algo que me interessava e comecei a lê-los, bem como certos poetas malditos. A partir desse momento minha relação com a literatura tornou-se apaixonante, sobretudo através dos autores franceses. Quando cheguei a Madri, em 1968, no momento em que a literatura sul-americana explodia pelo mundo todo, eu lia compulsivamente (...)

Perguntado sobre o gênero do filme Labirinto de Paixões (Laberinto de Pasiones, Espanha, 1982), responde:
(...) marcou todo o meu trabalho o mais radical ecletismo. Isso para mim não é uma atitude intelectual, ainda que esteja convencido de que o ecletismo é um estilo bem “final de século” de contar histórias, porque em períodos como o que vivemos hoje as pessoas voltam-se facilmente para o passado, cada um faz sua própria seleção de histórias desse século e junta, misturando-as, as histórias que lhe agradam. Hoje o ecletismo está presente nas criações musicais, literárias e na moda. Estamos no final do século, e nossa tendência é sobretudo, fazer balanços, não é o momento para se criar novos gêneros, mas para se refletir sobre o que já aconteceu e, e em que todos os estilos são possíveis. Parece-me haver uma coincidência entre esse movimento e o ecletismo dos meus filmes, que é natural e visceral. Isso se deve, sem dúvida, ao fato de eu não ter tido uma educação clássica, de não ter aprendido cinema na escola, de ter demonstrado uma certa indisciplina e de sempre ter mantido minha liberdade. Não que isso tenha um espírito mais original, mas, em todo caso, é um espírito menos ortodoxo.

A filmografia almodovariana, eivada de ecletismo como ele próprio reconhece, não deixa de ter por herança, se não os clássicos no sentido acadêmico tradicional, mas uma linguagem fílmica em que as subjetividades ganham relevo para expressar suas idéias e emoções sobre o mundo e suas relações. Indisciplinado por natureza, expressivo na sua assumida homossexualidade, Almodóvar nos mostra um estilo criativo e singular. Sua linguagem cinematográfica recusa-se a ortodoxia, porém, não podemos negar, fundamenta-se numa base cujos princípios foram pensados e inventados pelos primeiros a que nos referíamos no início desta conversa.


Notas:
1. Conferir a edição de 1955, Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia.
2. Cf. Marcel Martin. A Linguagem Cinematográfica. Lisboa, 1971
3. Dentre a vasta literatura que comenta a filmografia de Pedro Almodóvar, foi lançado recentemente, de Frédéric Strauss, Conversas com Almodóvar. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2008.

3 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Como sempre, suas postagens são embasadas e pontuadas de excelentes referenciais. Havia muito tempo que não ouvia falar em Georges Sadoul, por exemplo. Considero este autor uma das maiores expertises em historia do cinema.
Quanto à obra de Almodóvar, ela é densa e expressiva. O realizador é a síntese da expressividade hispânica, latina em seu todo, mas parte de uma expressão que é o cinema como forma de comunicação e arte.

André Setaro disse...

O seu blog está cada vez melhor. No 'post' mais recente, retirou trechos essenciais sobre a imagem e a realidade de "A linguagem cinematográfica", clássico de Marcel Martin, escrito em uma época em que não havia ainda investigações mais perfuratrizes sobre a análise da estrutura da narrativa. É obra pioneira, nesse sentido, escrita antes do descobrimento, pela crítica, do elo sintático e do elo semântico, que viriam a serem refletidos por teóricos como Christian Metz, Jean Mitry, Jean Douchet, Jacques Aumont, entre outros. Ouso recomendar "A significação do cinema", de Chistian Metz (publicado pela Perspectiva, embora esgotado). Parabéns!!
Aqui um trecho que acho essencial e que você, com muita propriedade, destacou no 'post' citado:

"O cinema dá-nos da realidade uma percepção subjetiva do mundo, uma imagem artística em que o realizador pretende exprimir sensorial ou intelectualmente, utilizando-se da câmara, um aparelho de registro do chamado “real”. Portanto, a realidade estética tem um valor afetivo, é resultante da intervenção e realização de operações de escolhas onde preponderam as subjetividades, no caso, as escolhas/seleções para a realização das imagens. A realidade intelectual tem, mais ainda, um valor significativo. A captação da chamada realidade pela câmara não garante, por si só, a aproximação do real, é preciso buscar os sentidos dos fatos, dos acontecimentos. Os sentidos precisam ser desvendados uma vez que a imagem pode estar carregada de ambigüidades, de falseamentos."

Stela Borges de Almeida disse...

Prezado Armando Maynard, lí seu comentário e salvei, mas a maquininha, vez em quando não obedece, levou pra outro espaço. Como guardei seu nome na memória, peço-lhe reenviar-me. Pode ser?
Um abraço,
Stela