sábado, 10 de novembro de 2007

Notas de Estudo: Nouvelle Vague


François Truffaut: escritos sobre cinema.

Todos sabem da importância e influência que a Nouvelle Vague exerceu sobre a cinematografia mundial, ao surgir na França no final dos anos 50, modificando e criando uma nova linguagem cinematográfica e trazendo inúmeros representantes que marcaram e divulgaram uma nova concepção de fazer cinema. Um movimento de renovação da linguagem fílmica, de criatividade, mais voltado para a expressão do que a comunicação, trazendo um enfoque para temáticas do homem contemporâneo, podendo-se afirmar que houve um cinema antes e outro depois da Nouvelle Vague (1).
Não pretendemos repetir as análises já realizadas, são inúmeras, sobre este movimento e suas repercussões na linguagem cinematográfica. Nesta postagem de hoje temos a intenção de evidenciar a presença de um representante deste movimento, expresso na figura do cineasta que chama atenção não só pelo talento e influência que exerceu nas gerações posteriores, como pelas anotações e escritos onde deixou registradas suas percepções e idéias não só do fazer cinema como da própria condição de cineasta e de amigo dos inúmeros companheiros de jornada. François Truffaut foi um dos cineastas franceses que mais escreveu sobre cinema. Em janeiro de 1975, ele expõe suas idéias e interesse por cinema no livro “Os filmes da minha vida”, revelando não só a sua dedicação à sétima arte como o seu envolvimento com o mundo do cinema (2).

Sempre me perguntaram em que momento da minha cinefilia desejei tornar-me diretor ou crítico e para falar a verdade não sei; sei apenas que queria aproximar-me cada vez mais do cinema. Um primeiro estágio consistiu em ver muitos filmes, um segundo em anotar o nome do diretor ao sair do cinema, um terceiro em rever freqüentemente os mesmos filmes e em determinar minha escolha em função do diretor. Naquela época de minha vida, porém, o cinema agia como uma droga, ao ponto do cineclube que fundei em 1947 ostentar o nome pretensioso, mas revelador de Cercle Cinémane (Cícirculo Cinemaníaco). Acontecia-me assistir o mesmo filme cinco ou seis vezes no mesmo mês e ser incapaz de contar corretamente o roteiro porque, nesse ou naquele momento, uma música que se elevava uma perseguição na noite, o choro de uma atriz me entusiasmavam, me fazia decolar e me levavam para mais longe que o próprio filme.

Como sabemos, Truffaut nasce em 1932 e com 52 anos ao se despedir deste mundo deixa uma produtiva obra de mais de vinte e seis filmes, um conjunto de escritos e anotações que revelam seu pensamento não só sobre cinema, mas suas percepções sobre a vida e sobre as relações humanas. São textos que foram publicados, no Cahiers Du Cinéma, entre outros veículos de divulgação, e como crítico e polemista virulento que foi, escreveu não só sobre diretores (Alfred Hitchcoke, Jean Renoir, Orson Welles, Charlie Chaplin e outros) também sobre autores como André Bazin e Pierre-Henri Roché e atores com quem trabalhou, entre eles, Jean-Pierre Leaud, Isabelle Adjani, Faunny Ardant.

Em 1959, Os Incompreendidos marcará uma temática voltada para a infância e seus conflitos, centrada na figura de Antoine Doinel, um estudante parisiense de treze anos, sonhador e turbulento. Comentado sobre seu filme, Truffaut diz:

Aos quinze anos, fiquei internado no Centro de Menores Delinqüentes em Villejuif, tendo sido detido por vagabundagem. Era pouco depois da guerra, havia um recrudescimento da delinqüência juvenil, as prisões infantis estavam cheias. Eu conhecia muito bem o que mostrei no filme: a delegacia com as putas, o camburão, a “gaiola”, a identificação judiciária, a prisão, não quero me estender sobre o assunto, mas posso dizer que o que conheci era mais duro que o que mostrei no filme (3).

Mas não apenas a infância e a juventude mereceram a reflexão do cineasta, Truffaut voltou-se também para a expressão dos sentimentos humanos mais pungentes, revelando uma atenção especial para o que se costuma assinalar como “uma tradição dos grandes cineastas do coração”. Neste métier, a mulher ocupou um certo lugar.

Ora, até o presente os filmes foram feitos por homens para homens; Ingmar Bergman talvez tenha sido o primeiro a abordar certos segredos do coração feminino. E Hiroshima, meu amor poderia muito bem ser o primeiro filme feito verdadeiramente para mulheres, em todo caso o primeiro a nos mostrar não uma boneca encantadora ou uma vamp, mas uma mulher de verdade. Pela primeira vez no cinema, a igualdade da mulher fica evidente desde a primeira imagem até a palavra “Fim”. Em geral menos preguiçosa que os homens, dando provas de uma sensibilidade mais viva e mais agilmente alerta, as espectadoras fazem o esforço que for preciso para acompanhar o jogo do cineasta (...). Em outras palavras, provavelmente são as mulheres que mantêm, no cinema, esse caráter de troca que parece ser, até o presente, privilégio exclusivo do teatro.

Sobre Jeanne Moreau, protagonista de Jules e Jim (1962) Truffaut comenta que ao contrário de atores e atrizes que só conseguiam atuar em conflitos e tensões, num campo de sinistras lembranças, Jeanne Moreau se movia pela compreensão da fragilidade humana deixando-se envolver pela generosidade, ardor, cumplicidade num trabalho de criar e projetar emoções fortes e sentimentos luminosos. Trabalhar com Moureau não o fazia pensar apenas no flerte, mas no amor, comenta.
Em 1969, escrevendo para Unifrance Film Magazine, Truffaut refere-se ao trabalho A Sereia do Missisipe que tem como protagonista principal Catherine Deneuve. Deixa-se, então, revelar suas estratégias de sedução com protagonistas femininas, no caso, a busca da musa bela da tarde. Vejamos:

Eu criara uma imagem de Catherine antes das filmagens de senso de atriz e de que este vinha antes de seu interesse pelo filme. Suspeitava que fosse perfeccionista, logo, sempre desiludida. Não acreditava que estivesse previamente apegada ao filme e, em função excessivamente com detalhes e que pediria explicações e justificações a todo momento. Em suma, a despeito do desejo que eu tinha de trabalhar com ela, me atirava àquele filme com certas prevenções que ela adivinhou imediatamente. Enquanto Catherine estava filmando Um dia em suas vidas nos Estados Unidos, escrevi-lhe para Hollywood e lhe enviei avisos dissimulados como “Em meus filmes, trabalha-se com bom humor” ou então “É proibido achar que faremos uma obra-prima. Tentaremos fazer um filme vivo”.

Por outro lado, a crítica cinematográfica exercida por François Truffaut, polêmica e áspera, atrelou-se à defesa do lema da “política de autores”, ou seja, um filme vale o que vale quem o faz. O filme não era apenas a soma de vários elementos, os protagonistas, os temas, os recursos disponíveis, à linguagem cinematográfica, mas estava ligado à personalidade e talento de seu condutor. Acreditava que o cinema podia emocionar com o mínimo de recursos possíveis e a improvisação tinha um papel especial.

Incansável e persistente conhecedor da filmografia mundial, nos livros que nos deixou seus escritos sobre cinema, François Truffaut menciona e faz referências a mais de trezentos filmes que são apresentados no final de uma das edições sob o título Lista de filmes citados. Nestas indicações um bom roteiro para quem se dedica a memória e retrospectiva dos grandes diretores de cinema. Nestas breves anotações sequer mencionamos o apreço de Truffaut por André Bazin (uma espécie de pai espiritual), às suas primeiras críticas de cinema e a extensa correspondência que desenvolveu com toda uma geração de realizadores inventivos e produtivos que marcaram o movimento da Nouvelle Vague. Mais um motivo para rever seus filmes e apreciá-lo, também, pelos seus escritos.
Cena do filme Jules e Jim( 1962).


Notas:
1. O que foi, afinal, a Nouvelle Vague por André Setaro. Texto divulgado no Curso de Introdução ao Cinema, outubro de 2007. Publicado anteriormente no site Coisa de Cinema em 3/5/2004.
2. Truffaut, François. Os filmes da minha vida. Tradução: Vera Adami. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
3. Truffaut, François. O prazer dos olhos: textos sobre cinema. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005
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9 comentários:

Anônimo disse...

Mamis,

Gostaria de ler sobre "o prazer dos olhos: textos sobre cinema".

Assim que puder me empreste para eu poder acompanhar você nesta descoberta sobre o cinema.

Beijos,

Jonga Olivieri disse...

Muito importante você ter escrito sobre este autor francês, um dos mais expressivos do cinema no século 20.
Truffaut foi muito influenciado por André Bazin*, que lhe abriu caminhos para o “Cahiers du Cinema”, onde foi um dos principais articuladores e publicou um manifesto contra “a tradição da qualidade” do cinema francês, causando então uma acirrada polêmica no meio cinematográfico.
Anteriormente, Truffaut também participara do "Ciné club du Quartier Latin", um boletim sobre cinema repleto de novas idéias.
A “nouvelle vague” francesa (um dos principais movimentos da história do cinema) tem nele um dos principais autores, na teoria e na prática.
Brilhante diretor, sua carreira de tantos filmes (praticamente um por ano), começou com um que nunca assisti: “Uma visita” realizado em 1955, mas “Jules e Jim” (1962), “Fahrenheit 451” (1966), “A noiva estava de preto” (1968), “Noite americana” (1973) ou “A história de adele H.” (1975) são filmes expressivos de seu trajeto pelo cinema. Seu último filme (que também coincidentemente não assisti) foi “De repente num domingo” de 1983.

(*) A importância de Bazin na análise da formação e consolidação do “neo-realismo” do cinema do pós-segunda guerra foi fundamental para o surgimento da “nouvelle vague” francesa.

Stela Borges de Almeida disse...

Flávia, vc. gosta de ler tudinho, oxente! Sugiro que leia, no momento, "o prazer de dar a mamadeira na hora"...
Tenho uma lista aqui dos 100 mais belos filmes que vc. vai gostar muito. Um domingo cheio de descobertas junto ao Stewart e a sua Little Baby. Um beijo da Mamis.

Stela Borges de Almeida disse...

Jonga, a Nouvelle Vague foi um movimento que ganhou expressão nos anos 50/60 e François Truffaut ( 1932-1984) divulga seu primeiro filme em 1955, como vc. bem observa. Gosto muito desse cineasta, assisti seus filmes ainda estudante e agora revendo percebo cada vez mais a generosidade,simplicidade e grandeza que o auto-centramento dos vinte anos nos impede de enxergar.
Gosto muito dos seus comentários, enriquecem e somam. Abs, Stela.

Stela Borges de Almeida disse...

Flavinha, desculpe a resposta meio apressada, sei que vc. acompanha com entusiasmo tudo que escrevo, foi assim no mestrado e no doutorado. O blog é um espaço temporário de reflexão sobre uma temática que considero de maior valor: Cultura e Política, com ênfase em Cinema. Vc. sabe quanto aprecio os livros, os livros que falam de cinema mais ainda, e os filmes que tomam os livros como referência. Pode acompanhar, aliás é um imenso prazer assistir todos os filmes com vc. e levar um lençinho para as sempre imprevistas lágrimas ( risos). Mami.

Anônimo disse...

STELA,

GOSTEI DA SENSIBILIDADE DO RECORTE.
VC TEM UM OLHAR CRÍTICO MUITO BOM .

BEIJOS, ZULEIDE.

Anônimo disse...

Gostei muito dessa postagem, como voce chama, so sugeriria uma linguagem mais fluida em alguma partes, tirando os "como sabemos" ou parecidos, e certos elogios. Amo Truffaut e gostei do texto em particular as citacoes do autor, beijos,Mary.

André Setaro disse...

Seu blog está virando referência para quem gosta de cinema.

Unknown disse...

Obrigada por abrir as portas sobre a história do cinema. É muito bom saber sobre a coragem destes atores, diretores "cinemaníacos" em enfrentar os tabus de sua geração, e tratar de assuntos como a delinquência juvenil no pós-guerra e a mulher numa visão mais real "de carne e osso", assuntos ainda tão atuais.
Beijos
Roberta