quarta-feira, 27 de agosto de 2008

PARSIFAL























Tenho estado ausente desta página por motivos exclusivamente temporários e contrários ao meu desejo. Para não deixar de atender aos poucos porém constantes que por aqui marcam sua passagem e me perguntam se vou voltar, incluo hoje o texto divulgado no Caderno Mais de 24 de agosto de 2008, em Ponto de Fuga.
Como finalizei comentando, ainda que precariamente, sobre a trilogia de Hans-Jürgen Syberberg, Hitler, um filme da Alemanha (Hitler, Ein Film Aus Deutschland, 1977) na postagem anterior, quis trazer o texto que comenta Parsifal, a última obra de Wagner. Muito obrigada Professor!

JORGE COLI
O s cavaleiros do Graal são castos, isto é, não podem transar, salvo em certas exceções obscuras não explicadas no libreto da ópera.
Estão em declínio porque Amfortas, seu rei, cedeu às tentações da carne e ficou marcado por uma ferida sem cura. Não consegue mais presidir ao ritual que expõe a taça sagrada, o Graal, onde permanece o sangue de Cristo, porque suas dores atrozes aumentam durante a cerimônia.
Surge um novo líder, Parsifal, o "puro louco", que resistiu às seduções de umas moças muito desenvoltas. Elas são as agentes de Klingsor, ex-cavaleiro que se castrara a si próprio buscando, assim, eliminar seus desejos libidinosos.
Klingsor ignorava, porém, que castração não valia como controle dos apetites. Expulso da comunidade dos bons, assume o papel do supervilão, cria um paraíso de mulheres-flores, especialistas em desviar gente boa para o mau caminho.
No final, purificado, Parsifal assume o ritual do cálice sagrado que iluminará para sempre a humanidade.
"Parsifal", a última obra de Wagner, data de 1882. O compositor havia construído, em Bayreuth, na Alemanha, um grande teatro com características peculiares. Determinou que "Parsifal" fosse unicamente representada ali, o que aconteceu até 1913, quando os direitos autorais caducaram.

Drácula
"Parsifal" foi a ópera preferida de Hitler, que devia se imaginar como o redentor de uma Alemanha em decadência. Himmler construiu para os SS, a polícia militarizada dos nazistas, o castelo de Wewelsburg, morada sagrada em que seus agentes se tomavam por modernos cavaleiros do Graal. A sala de reuniões foi desenhada a partir dos cenários do primeiro "Parsifal" em Bayreuth.

Novelo
"Parsifal" não apenas gravita em torno de obsessões universais, como o desejo, a culpa, a regeneração, o sofrimento, o poder, o masculino e o feminino. Enleou-se de maneira inextricável com a história alemã. O jovem diretor de cena norueguês Stefan Herheim criou a nova e estupenda produção de "Parsifal" para o festival Wagner de Bayreuth. Como também é músico, atenta para cada sugestão da partitura. Retoma, com meios modernos, a tradição teatral wagneriana, fascinada pelas mágicas metamorfoses no palco.
Começa dentro da casa de Wagner, que existe até hoje: a casa se transforma em jardim, o jardim em floresta, a floresta em templo. Uma cama, lugar de nascimento, de morte e de prazer, forma o ponto nodal, em que personagens aparecem e somem. Estandartes nazistas se desenrolam com suas suásticas; eles assustam, expondo o que se buscou esquecer: o passado tremendo daquela ópera e daquele teatro que se enfeitava para receber o ditador.
No final, quando tudo está em ruínas, Parsifal se despe de sua armadura que o assemelha à figura emblemática da Germânia; enormes espelhos tremulantes refletem os espectadores no fundo do palco que incorporam a cena. A pomba do Espírito Santo se muda em signo de paz universal. Herheim, apoiado na regência lenta e expressiva de Daniele Gatti e em ótimos intérpretes, trouxe a História para o palco.
As cinco horas, ou quase, de "Parsifal" passaram como se fossem cinco minutos.

Assombro
Titurel, papel breve, mas nevrálgico, em "Parsifal", é interpretado com grande nobreza por Diógenes Randes: 32 anos, um sólido contrato com a ópera de Hamburgo, voz de baixo, ampla, poderosa, timbrada. É o primeiro brasileiro a cantar no mítico teatro de Bayreuth. jorgecoli@uol.com.br

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Estudos Culturais, Racismos e Cinema






















Estas breves anotações realizadas durante o Curso Crítica da Cultura/Estudos Culturais do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade/Facom-Ufba, sob a coordenação da Profa. Dra. Eneida Leal Cunha, tem o objetivo de colocar algumas inquietações dando continuidade ao debate e refletir pontos de vista e incursões ainda em elaboração, própria de quem deseja aproximar-se de um campo de estudo tenso, não hegemônico e, portanto, desafiante.

É conhecido de que a questão multicultural, termo utilizado universalmente e que se expandiu de forma oscilante e repleta de significados, requer inúmeros cuidados ao ser utilizado e requer uma crítica que possibilite a desconstrução do termo-chave (Hall, S. 2003). Não temos intenção de repetir as inúmeras críticas e advertências que os pais criadores dos Estudos Culturais já fizeram, com propriedade, apontando os inúmeros conflitos e disputas internas neste território, tendendo a diluí-los e confrontá-los noutros discursos que insistem em manter sua prevalência e autonomia (Hall, S. 2003). Neste debate, queremos enfatizar a necessidade de uma armação teórica para desmontar e operar sobre o conhecimento, mostrar como se estruturam as hierarquias de poder, evidenciar e desmontar os diferentes discursos e seus processos de manutenção de dominação e hegemonia, marcando os espaços relevantes e de indispensabilidade da teoria, leia-se práxis, buscando fazer prevalecer uma teoria que produza efeitos no real (Bhabha, H. 1998).

Operando nesta direção, em 1975-76, durante o Curso no Collège de France, Michel Foucault apresenta uma brilhante aula sobre a teoria clássica da soberania que serve de quadro para as análises não só da guerra, mais particularmente, da guerra das raças. Mostra como durante todo o século XVIII o tema raça vai ser retomado e ressignificado, como algo diferente do racismo de Estado, em tempos modernos. O tema do poder teorizado por Foucault nos oferece base para compreensão dos diferentes mecanismos de aparecimento, distinção, hierarquização e qualificação das raças consideradas “puras” e “superiores” em contraposição às” impuras” e “inferiores”, nos permitindo pensar a questão do racismo nas distintas sociedades modernas. A construção da racialidade e o papel estruturante do racismo nas sociedades modernas encontra nesta análise alguns elementos chaves para compreensão de um tema recorrente nos Estudos Culturais (Foucault, M. 1999). Falamos do debate da etnicidade e racialidade em contextos multiculturais internacionais e nacionais e como se apresentam nas sociedades modernas.

O racismo, condição indispensável e vital para exercer o direito da vida e da morte dos súditos pelo efeito da vontade soberana, segundo a teoria clássica de soberania vigente no século XIX, baseava-se na relação do tipo biológico “quanto mais às espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados”, a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior, do degenerado, do anormal, constituiu-se em discurso vital para a defesa da vida mais sadia e pura nas esferas políticas que se desenvolveram em grande parte nos séculos XVIII e XIX. Problemas da produção, da natalidade, da morbidade, de vida, acentuadas no início do século XX vão requerer a introdução de mecanismos mais racionais e seguros instalando uma nova tecnologia de poder, o biopoder, diz Foucault. Essa biopolítica ao se instalar, estabelece mecanismos de regulações globais que se exercem através de uma série de instituições, aparelhos de disciplina e de Estado. Neste quadro, o racismo nas sociedades modernas que funciona
e se desenvolve baseado no biopoder, apresenta características mais profundas do que uma velha tradição e uma nova ideologia, não está ligado apenas às mentalidades, vincula-se, especificamente, à técnica do poder. Para Foucault, os Estados considerados assassinos são os mais racistas, ver, por exemplo, a destruição das outras raças como uma das faces do nazismo que generalizou o biopoder e o direito soberano de matar. A sustentação do discurso racista nesta perspectiva, ganha modalidades diferentes a depender de conjunturas históricas e diversidades de arranjos sociais e culturais apresentados pelas sociedades modernas.

Os discursos colonialistas como aparatos de poder tem-se constituído pontos da agenda de estudos de conhecidos e interessados professores/pesquisadores dos Estudos Culturais, nas suas diferentes modalidades e interesses. São conhecidas as incursões em profundidade dos estudos de Eduard Said examinando os discursos europeus que constituem “o Oriente” como uma zona do mundo unificada em termos raciais, geográficos, políticos e culturais. Embora se considere o pioneirismo e originalidade desta teoria, a articulação da questão do desejo e do poder, tomando a leitura do estereótipo em termos de fetichismo, amplia-se e avança nas análises empreendidas por Homi Bhabha, ao analisar a questão dos estereótipos e do racismo. Nestas, são demonstradas que o estereótipo, a discriminação e o discurso do colonialismo são estratégias discursivas e psíquicas que precisam ser mais mapeadas em suas funções e modos de representações complexos (Bhabha, H. 1998).

O exame dos discursos racistas em diferentes narrativas tem fundamentado não só estes estudos como tem demonstrado a visibilidade do tema numa variedade de suportes encontrados tanto na literatura nacional como internacional. No Brasil, entre outros, a coleção História da Vida Privada oferece um conjunto de exemplos de como o tema da raça além de ser um tema tabu, tem prevalecido como idéia de branqueamento não só na literatura de ficção, como em contos para crianças, nos discursos políticos que circularam, principalmente, nos anos 30. Nestes, em grande parte, utiliza-se o processo de miscigenação para sustentar os argumentos da condição de degenerescência da raça. O conceito de raça e harmonia racial aparece nesses discursos de forma estabilizada e naturalizada de forma a negar o preconceito. Representação de um tipo particular de racismo, denominado por alguns autores como racismo silencioso (Schawrcz, L. 1998). Outros trabalhos, por sua vez, tem-se ocupado em demonstrar a construção do discurso colonial que predomina na produção da imagem eurocêntrica (Stam, R. 2006).

Sobre as facetas do racismo silencioso, Kabengele Munanga acrescenta: O racismo brasileiro na sua estratégia age sem demonstrar a sua rigidez, não aparece à luz; é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente em seus objetivos. Essa ideologia é difundida no tecido social como um todo e influencia o comportamento de todos_de todas as camadas sociais e até mesmo as próprias vítimas de discriminação racial. Discutir a questão da pluralidade étnica, e em especial da sua representação nas instituições públicas e nas demais instituições do país, ainda é visto como um tabu na cabeça de muitas pessoas, pois é contraditória a idéia de que somos um país de democracia racial (Munanga, K. 1996:215).

A cinematografia alemã possui um expressivo conjunto de obras que discutem a questão dos estereótipos e discriminações raciais, situando o racismo de Estado como uma poderosa máquina de triturar corpos e fabricar as raças arianas superiores e megalomaníacas. Um primor de exemplo encontra-se na trilogia de Hans-Jürgen Syberberg, denominado Hitler, um filme da Alemanha (Hitler, Ein Film Aus Deutschland, 1977). O filme utiliza três personagens marcantes- Karl May, Richard Wagner e Adolf Hitler- e desmonta a “encenação” Hitler, a “arte” e o espetáculo do nazismo, das grandes concentrações de massa, dos desfiles, da propaganda e do cinema. Através de uma colagem que se aproxima dos princípios estruturais da música, Syberberg tenta explicar Hitler e o nacional socialismo em suas raízes e contextos mitológicos, confrontando-o com os marcos da história e da cultura alemã, num trabalho de poderosa originalidade e de intenções aterradoras, como comentam seus críticos, em ensaios publicados em The New York Rewiew of Books, 21 de fevereiro de 1980 (consultado em texto impresso). A película compõe-se de quatro partes, com sete horas de duração, repleto de densas referências à história cultural da Alemanha, em que o lado subjetivo do fascismo, as orientações místicas, os irracionalismos são permanentes no discurso do cineasta que cria um “espetáculo no tempo presente” como assinala Susan Sontag na sua crítica ao Hitler de Syberberg.

Devo finalizar essas breves notas, uma vez que o instrumento de divulgação na web via blog requer limites de espaço. Vários fios ficaram soltos. Gostaria de convidar a quem se aventurar pela leitura destas anotações, para o contraponto necessário ao diálogo, elos que possibilitam melhores interpretações.

Referências citadas:
1.HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
2.BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 1998.
3.FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
4.STAM, Robert e SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
5.SCHARCZ, Lília. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
6.MUNANGA, Kabengele. O negro recusa a assimilação. In: Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986.
7.Goethe-Institut Salvador-Bahia. Seminários On Line. Hans-Jürgen Syberberg. Aula 3. Outubro de 2007. Cf. HTTP://www.goethe.de/ins/br/sab/pro/semin5/s5aula3.htm

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Cultura e Multiculturalismo no Cinema.















Contra a Parede, 2004.

Retomo a postagem hoje para comentar leituras que termino de realizar sobre cinema. A primeira delas, ainda pouco explorada, porém consultada com intenção de rever mais vezes, trata-se do trabalho de Ella Shohat e Robert Stam. (1). Transcrevo a seguir a apresentação do livro, para em seguida colocar algumas questões que se relacionam com a temática da Cultura e dos Estudos Culturais, atividade que venho acompanhando através dos filmes que tenho assistido, e mais recentemente, pela presença em aulas da Pós-Graduação da Facom/Ufba voltada para o tema.

MULTICULTURALISMO E HEGEMONIA EM DEBATE
Leitura obrigatória para pesquisadores, estudantes e para o público interessado por trabalhos que se colocam no limite entre diversas áreas do saber, Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação, de Ella Shohat e Robert Stam, é enfim traduzido para o português, após ter sido lançado há aproximadamente uma década nos Estados Unidos. Shohat e Stam, ambos professores em universidades norte-americanas, possuem o mérito de trabalhar com rigor, inteligência e elegância incomuns. Interdisciplinar sem ser banal, erudito sem ser pedante, o livro consegue impor clareza a uma discussão que por vezes parece “batida”. O Multiculturalismo permeia a discussão. Termo problemático, esta é uma palavra que pode se tornar gasta e esvaziada em debates acadêmicos, jornais ou revistas. Mas não se engane o leitor: para além da moda, o tema é urgente e o livro chega em boa hora, pois numa sociedade de economia globalizada, vale dizer, neoliberal, ou as diferenças são estrategicamente eliminadas ou então são assimiladas, bem embaladas e colocadas à venda no “shopping center” das coisas exóticas. Com um aparato crítico que perpassa múltiplas áreas do saber (teoria da comunicação, antropologia, história, sociologia, psicanálise etc...), e ancorados no domínio e conhecimento sólidos dos discursos e imagens produzidas ao longo do século 20, quando o cinema se tornou um meio de comunicação muito popular, os autores analisam e desvendam lugares comuns do nosso imaginário audiovisual, identificando nele valores morais, políticos e estéticos, produzidos, representados, introjetados e, por fim, naturalizados. É, aliás, por causa da naturalização de tais valores que Shohat e Stam dedicam tantas páginas a esta crítica. Este não é um livro de cinema no sentido estrito do termo (de teoria ou história do cinema), mas um livro sobre cinema num sentido amplo, na medida em que se vale do cinema (inclusive da teoria e da história do cinema) para fazer a genealogia e principalmente a crítica da hegemonia de determinadas idéias (ou representações), que determinaram o jeito de ser e de pensar da sociedade contemporânea, no âmbito da cultura popular, abrangendo ainda meios como a propaganda e a televisão. No debate sobre a cultura e a política, o livro refaz a história das idéias que formaram o imaginário contemporâneo, ou das idéias que venceram. Um exame exaustivo e também uma boa reflexão são feitos acerca dos modelos de representação e auto-representação produzidos pela assim dita sociedade ocidental, além do modo como estes modelos se tornaram cada vez mais tirânicos e excludentes em relação aos modelos ditos periféricos. No primeiro e segundo capítulos, “Do eurocentrismo ao policentrismo” e “Formação do discurso colonialista”, os autores tentam esclarecer quando e como a idéia de uma sociedade ocidental surge. Partem da análise do nascimento do mito de uma cultura superior elaborada ainda no auge da civilização grega, quando foram criados os modelos ainda vigentes de política e cultura. É daí que derivam os conceitos de raça, identidade nacional, Iluminismo, capital e suas oposições necessárias como terceiro mundo, quarto mundo, colônia e periferia. O livro varre a história do cinema, tendo como eixo o desenvolvimento e a construção desses discursos a partir de gêneros muito populares, como o faroeste, a ficção científica e os filmes de guerra e de aventura, e nos mostra como nesses filmes as representações de si e do outro foram longamente gestadas. Desde o início, os autores desenvolvem o conceito de “multiculturalismo policêntrico” como uma alternativa ao pluralismo liberal do termo “multiculturalista”. A vantagem da sugestão de Shohat e Stam está em valorizar cada uma das culturas ao invés da relativização de todas elas. Porque é somente a partir dessas experiências de tensão e resistência que eles acreditam ser possível postular uma alternativa viável de dissolução da hegemonia eurocêntrica de representação, tema reservado ao último capítulo, “A estética da resistência”, que traz à baila temas como a antropofagia cultural, o sincretismo como estratégia artística, as políticas de auto-representação de identidades e as tendências pós-modernas na arte contemporânea, todas elas contra-hegemônicas por natureza.


O questionamento crítico em foco, no cinema e nos livros sobre cinema em sentido amplo, que tenho tido o prazer de aproximar-me, tem-se voltado para a temática da cultura e do multiculturalismo. O que significa esses termos e em que sentido o cinema tem incursionado nesta perspectiva?
Pretendo apenas tentar assinalar alguns pontos iniciais. Os estudos de cultura e seus densificados debates nos anos 90 (cf. Jameson, Frederic) mostram que eles parecem não se identificar tanto com uma planta arquitetônica para novas disciplinas acadêmicas, estão mais relacionados às possibilidades de alianças e projetos que se constituem sem as amarras dos territórios delimitados e canonizados. (2).
Esta tendência tem provocado desconfortos e inumeráveis incômodos não apenas entre os próprios realizadores de estudos e trabalhos sobre cultura, mas também atingindo os assentados estudos historiográficos, num campo de saber tradicionalmente afeto aos historiadores. Mas o que são mesmo os Estudos Culturais e quais suas incursões no cinema?
Diz-se que cultura é uma das duas ou três palavras mais complexas da língua inglesa, considerando-se seu antônimo, a natureza. Para não complicar mais ainda o caminho, tomemos, dentre as definições clássicas de cultura, os significados apresentados por Raymond Williams, entendendo-a como um hábito mental individual, como um estado de desenvolvimento intelectual de toda a sociedade, como o conjunto de artes e como forma de vida global de um grupo de pessoas ou de um povo (3).
Os estudos de cultura parecem estar ligados a “política de identidade” dos novos movimentos sociais, onde o conceito de articulação tem enorme centralidade, referindo-se às intersecções de raça, gênero e classe. Porém, essa interpretação não hegemônica, pode ser interrogada e controversa considerando-se que mesmo os fundadores dos estudos culturais da Escola de Birmingham referem-se ao conceito de intelectual orgânico como peça chave no delineamento destes estudos (4).
Por outro lado, se tomarmos a compreensão de cultura como um conjunto de estigmas que um grupo carrega aos olhos de outro grupo, um veículo ou meio através do qual se dá o relacionamento entre os grupos, tal como expresso em Erving Goffman, as análises dos relacionamentos grupais passam pelo entendimento de formas fundamentais como a inveja, a aversão, o prestígio, entre eles. Os grupos são conflitivos, separam-se e unem-se por mecanismos de solidariedade grupal e mecanismos de isolamento e solidão. Nesta compreensão, a cultura precisa ser entendida também como forma fundamental de relacionamento onde a luta e a violência ocupa espaços. Esta dimensão da cultura precisa ser apreciada.
Os filmes que recentemente tenho assistido, principalmente os denominados de novo cinema turco-alemão, versam sobre essas questões. Não vou narrar esses filmes. Aprendi que o cinema tem uma narrativa que se expressa pela capacidade do realizador em articular os elementos lingüísticos próprios da arte do filme (cf. André Setaro). De modo que não vou narrá-los. Estão incluídos nesta temática, quase todos os últimos filmes de Fatih Akin. Entre eles, Em julho (2000) reprisado inúmeras vezes pelo Eurochannel, Contra a Parede (2004) exibido no Circuito de Arte em várias salas, Atravessando a Ponte-o Som de Istanbul (2005) e Do outro lado (2007). Todos eles versam sobre os novos trabalhadores que foram concretizar o Milagre Econômico Alemão, provenientes da Turquia, das regiões mais pobres do sul da Itália, da Espanha e de países pobres. Vieram para a Alemanha pensando em escapar da miséria, da falta de emprego, na busca de novas oportunidades de vida. Trouxeram suas famílias ou tentarão buscá-las logo que encontram meios, nas suas bagagens traços de uma cultura ancestral repleta de tradições. Um cinema direto, sem interesse pelas buscas formais ou por tudo aquilo que supunha uma complicação da narração e um distanciamento do público massivo, diz Ricardo Parodi. Um cinema que questiona a cultura hegemônica e apresenta uma diversidade de Outros.

Notas:
1.Ella Shohat e Robert Stam. Crítica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
2.Frederic Jameson. Sobre os estudos de cultura. In; Novos Estudos Cebrap, n.39, p.11-48, julho 1994.
3.Terry Eagleton. A idéia de cultura. Lisboa. Temas e Debates, 2002.
4.Frederic Jameson,cit. 1994.
5.André Setaro. Introdução ao Cinema. Artigos publicados na web e consultados em 2007 e 2008.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Conversa sobre Cinema










Em outubro de 2007 iniciamos a postagem Conversa Sobre Cinema.
A idéia era manter diálogos com estudiosas(os), cinéfilos(as), críticos(as) da sétima arte, registrando anotações que do nosso ponto de vista poderiam ampliar concepções, retomar dúvidas, provocar questionamentos.
Pensando em anotações sobre a temática, contamos desta vez com a colaboração de Adolfo Gomes _ http://bressonianas.zip.net/_ que aceitou e foi receptivo ao nosso convite. Apresentamos um roteiro de perguntas que foram abordadas do jeito peculiar e distinto do responsável pela divulgação dos filmes exibidos na Sala Walter da Silveira e que a considera um templo sagrado (1).

Blog: O que significa cinema para você? Qual a sua experiência com o cinema?

Bressonianas: Minha experiência com o cinema é de espectador. Nunca tive vontade de filmar, de me tornar um realizador. Mas nem por isso me considero um admirador passivo. Sempre quis descobrir, ver coisas novas, que podem estar esquecidas num filme de 1920, por exemplo. Então é natural que de espectador logo tenha me transformado em cineclubista. Mais do que a minha formação em jornalismo, minhas passagens como crítico de cinema ou qualquer outra atividade, ser cineclubista é minha universidade, o que me faz melhor como pessoa, intelectual.É o que me honra. Acho que isso explica a minha relação com o cinema. É, para mim, um religar-se com a dimensão sagrada das coisas.

Blog: Quais os seus melhores filmes? Eles influenciaram suas idéias?

Bressonianas: Como diz o Godard, “o que é o estilo, senão o homem”. Minha formação é perpassada pela política do autor. Portanto, vejo o cineasta, sobretudo. Assim, para mim, é mais fácil falar dos cineastas que amo: Godard, Straub/Huillet, Glauber Rocha, Humberto Mauro, Renoir, Pedro Costa, John Ford, Sokurov, entre outros. E os filmes deles me fizeram o que eu sou hoje, minha concepção de cinema. Ainda tenho um longo caminho ao lado desses filmes. Em certo sentido, quero dizer com isso, a mesma coisa que costumo dizer a alguém que não gostou de um filme do Godard, por exemplo: “Então veja de novo, de novo, até gostar. Até você alcançá-lo”. O grande cinema tem que ser exigente. Não podemos esperar apenas um espetáculo de mão beijada.


Blog: E as Bressonianas?

Bressonianas: O blog é parte do que eu sou, de como vejo cinema. Escrevo para continuar o prazer proporcionado pelos filmes, por isso só escrevo por prazer, sem pressões, cobranças ou temporalidades.Todos os críticos deveriam ter essa liberdade.


Blog: E a Sala Walter da Silveira ?

Bressonianas: É, para mim, um espaço de exibição. Portanto algo sagrado, mas não a vejo somente fisicamente, de modo que meu afeto por ela não é abalado por suas limitações atuais, sejam técnicas, sejam de programação. Vejo-a como um instrumento em favor do cinema, de manutenção da memória, de preservação da arte.E de resistência. Por isso a minha relação com ela é religiosa. Vou passar por ela e tenho o prazer - e não apenas a responsabilidade - de honrá-la a cada dia, de honrar a memória do doutor Walter da Silveira que, para além das homenagens oficiais, ritos e cerimônias, mantém-se viva nos filmes que ele amava e que escrevia a respeito. Colocar esses filmes e outros, ao alcance das pessoas, é o melhor que podemos fazer pela sua memória – pelo menos para um cinéfilo como eu (2).


Notas:

(1) Walter da Silveira (1915-1970).
Obras publicadas sobre cinema: O Cine-Teatro Guarani: sua origem, evolução e atualidade. 1919/1995. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1955; A grande feira: origem e significado: Imprensa Oficial da Bahia, 1960; Um filme de transição. In: Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha. Biblioteca Básica de Cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965; Fronteiras do Cinema. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966. Coleção Tempo Novo; Imagem e roteiro de Charles Chaplin. Salvador: Mensageiro da Fé, 1970; A história do cinema vista da província. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978; O eterno e o efêmero/Walter da Silveira. Organização e notas por José Umberto Dias. Salvador: Oiti Editora e Produções Culturais Ltda., 2006.

(2) Bem, essa conversa de cinema que pretendia ser mais uma aproximação com Adolfo Gomes e suas idéias, ocasionou também outro convite, o de aproximar-me, mais ainda, da obra de Walter da Silveira. E nesta prospecção, descobri que o Clube de Cinema da Bahia foi fundado em 1950, ano em que nasci, com a sorte de encontrar uma memória cinematográfica que se mantém e resiste. Nos anos 70/80 asisitimos e convivemos com esta filmografia que tem raízes subsumidas nesta memória.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

andreas dresen: mestre da ironia













País Silencioso ( Stilles Land), 1992
Andreas Dresen


RDA, outono de 1989.
O filme mostra a importância da televisão via satélite, milhares de telespectadores em busca das imagens clichés da felicidade capitalista e as dificuldades de um elenco de atores da RDA em encenar uma peça de Samuel Beckett, Esperando Godot no momento em que há mudanças decisivas na Alemanha com a Queda do Muro, novembro de 1989. Encenar Samuel Beckett naquelas circunstâncias representa uma tomada de posição dos atores frente aos acontecimentos da Queda do Muro.
Ao começar a nova temporada artística num teatro de província alemão decadente, um diretor apresenta a seu elenco um novo colega. O jovem diretor, Kai Frinke, pretende encenar a peça Esperando a Godot de Samuel Beckett. Na primeira reunião da companhia se produz um escândalo: um ator interrompe o discurso do diretor pedindo que se diga algo sobre o que acontece na Hungria e na embaixada de Praga. É tempo em que na embaixada de RFA, em Praga e na Hungria, há numerosos fugitivos da RDA tentando conseguir permissão de saída do Oeste. O diretor e o Secretário do Partido não se envolvem com o incidente. Kaí Frinke se põe a trabalhar com entusiasmo sem deixar-se intimidar pelas circunstâncias. Severas dificuldades causam falta de entusiasmo aos atores da companhia. Os ensaios são pesados e exaustivos. Para o diretor o paralelo entre a situação política e a peça marca o momento: trata-se então de ensaiar e sobretudo apressar a situação desesperada de espera. Quando o protagonista principal, Horst, lhe pergunta onde existem saídas, não sabe responder. Os meios de comunicação da RDA minimizam a agudez da situação e investem contra o Oeste. Os atores buscam emissões da “televisão ocidental” no teatro afetando o trabalho dos ensaios. A Kai Frinke não interessa como se desenvolve a situação atual, conta a encenação. Mas concorda em participar de uma resolução do elenco que exige uma discussão pública e com tal motivo é incluída uma apresentação pública com o escasso público do teatro. A situação política se agrava. Os cidadãos se manifestam, e organizam matinés nas igrejas. Theo vai a Berlim para conseguir uma antena de TV e é detido temporariamente. Egon Krenz, o sucessor de Erich Honecker como Secretário Geral do Partido Socialista Unificado da Alemanha-SED, aparece na TV e fala das mudanças. O fato induz Kai Frinke tenta desenvolver uma concepção mais real da sua encenação. Antes da estréia, 9 de novembro, cai o Muro de Berlim. Uma avaria impede que o elenco se diriga à Berlim num microônibus. A peça estréia afinal, poucos espectadores aparecem, as pessoas tem outros interesses. A ajudante de direção deixa o elenco e vai para Hamburgo e a peça é retirada de cartaz. Kai Frinke decide quedar-se.
As formas de participação nos acontecimentos políticos poderiam se circunscrever às encenações ou deveriam ir mais além em manifestações públicas e atos de protestos que demonstrassem as posições dos atores? Quais os limites de participação? É o diretor jovem da peça, o Kai Frinke, um alienado político por não envolver-se ativamente nas ações de protestos públicas e voltar-se para o mundo do teatro? Qual o significado de encenar-se Samuel Beckett, Esperando Godott numa conjuntura de conflitos e de mudanças da vida política e econômica da Alemanha? O filme País Silencioso traz uma mensagem de inquietação para um tempo sem respostas.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

A ORIGEM DOS MUNDOS










The origin of the world. L'Origine du monde,1866. Paris. Musée D'orsay.

Depois de um longo silêncio em que a luta pela sobrevivência afastou-me das postagens sobre a cultura cinematográfica, trago a esta página o texto do Jorge Coli. Leitora permanente de seus informados e analíticos textos editados na Folha de São Paulo pude perceber, pela resposta ao meu e-mail, que se trata de um interlocutor que nos honraria em participar do diálogo. A seguir a transcrição de seu texto.

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A mostra Courbet é muito bela: beleza da matéria, dos tons graves e surdos, do silêncio meditativo sobre os mistérios telúricos, vegetais ou corpóreos
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
T ermina em Paris uma retrospectiva do pintor Gustave Courbet [1819-77]. Ela irá agora para o Metropolitan Museum de Nova York [de 27/2 a 18/5]. Mostras monográficas importantes reúnem quadros dispersos nos museus do mundo inteiro: é um grande prazer vê-los e compará-los. Têm ainda o sentido de fazer um balanço, de renovar a compreensão, a intuição, do papel que representam hoje esses grandes mestres. As obras de arte possuem um núcleo estável no qual se entrelaçam as pulsões criadoras. No entanto, elas se modificam. Primeiro, fisicamente: o material envelhece e o aspecto se altera com o tempo. Há também deslocamentos que mudam a percepção e afetam o olhar: caso evidente é o das obras religiosas transportadas para os museus. São mutações que diminuem certas características para ampliar outras.
As obras sofrem outras perturbações, originadas pela sucessão dos olhares que, de geração em geração, pousaram sobre elas. Nunca são vistas "nelas mesmas"; são sempre, por assim dizer, traduzidas para a cultura de quem as contempla. Textos críticos, teóricos, históricos sintetizam as sensibilidades de cada geração. Trata-se de enfoques que aderem à obra. Mesmo quando negados ou contestados, continuam pressupostos, ativos e, de um certo modo, passam a fazer parte da própria criação.

Seixo
A retrospectiva Courbet é muito bela. Beleza da matéria, dos tons graves e surdos, do silêncio meditativo sobre os mistérios telúricos, vegetais ou corpóreos. Beleza da gravidade pictural que vai além da idéia, do conceito, da formulação lógica. Courbet escreveu uma vez: "Faço as pedras pensarem".
Nem ele nem o espectador pensam sobre a pedra, é a pedra que pensa, exatamente como no poema de João Cabral de Melo Neto: "Uma educação pela pedra: por lições;/ Para aprender da pedra, freqüentá-la;/ Captar sua voz inenfática, impessoal (...) Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,/ Uma pedra de nascença, entranha a alma".

Inflexões
Os quadros se sucedem nas salas. São paisagens, marinhas, naturezas-mortas, nus femininos, cenas de caça. São as telas que representam a nascente do rio Loue, que atravessa a Franche-Comté, região em que Courbet nasceu, se criou, e à qual permaneceu sempre ligado. Tudo admirável. Porém, se esse aspecto mais fundamente metafísico vem sublinhado, o outro Courbet, o Courbet político, militante socialista, é reduzido a quase nada nesta retrospectiva.
Muitos quadros relevantes, com traços sociais ou de interpretação problemática, estão ausentes: "As Peneiradoras de Trigo", "O Incêndio", "Os Lutadores", "O Mendigo", a singular remadora, em maiô contemporâneo, sem falar dos "Quebradores de Pedra" e do "Retorno da Conferência", obras destruídas, mas que causaram grande impacto quando expostas pela primeira vez e que subsistem em esboços e gravuras. Talvez os curadores busquem evitar as interpretações políticas que, de Proudhon a estudiosos atuais, marxistas e feministas, ingleses ou americanos, têm, em grande parte, dominado as análises sobre o pintor.

Fresta
Em 1977, comemorando o centenário da morte de Courbet, houve outra exposição importante. Contra a vontade dos curadores, ordens poderosas proibiram, por obscenidade, a apresentação do quadro "A Origem do Mundo", que figura um sexo feminino em close. Hoje, é o ponto mais alto da mostra. À volta dele, na sala, gravitam as mais belas mulheres nuas que o artista nos deixou.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

CINEMA LATINOAMERICANO













A postagem de hoje reflete algumas motivações de velhos tempos. O desejo de dialogar com a majestosa Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe no que diz respeito ao verbete sobre Cinema, de comentar do novo (re) encontro com Jorge Luis Borges na capital portenha e de tentar incursionar pelo cinema argentino. Desculpem a ousadia, mas estou sendo sincera.

Dada as gentilezas entre pesquisadores que sabem trocar suas produções, tenho em minha estante o trabalho de Afrânio Mendes Catani que examina a trajetória da Companhia Cinematográfica Maristela (1950-1958), onde estuda os principais problemas do cinema industrial paulista e explora o papel da burguesia industrial na impulsão do movimento cultural desencadeado na São Paulo do pós-guerra. Pois bem, Afrânio apresentou-me o verbete de cinema da enciclopédia, comentou sobre alguns trabalhos e, similar a uma enciclopédia, sabia de todos os filmes e roteiristas, domínio de um extenso mapa para incursionar pela cinematografia latino-americana, em especial, pela cinematografia que me interessava no momento, a produção argentina (1).

Conforme registros de consulta, o cinema chegou à América Latina em 1896, após sua primeira exibição pública em Paris, acompanhado de equipamentos de filmagem, projeção e profissionais da área, predominantemente os italianos. Na Argentina, no começo do século XX, as primeiras filmagens couberam a Eugenio Py, francês, Atílio Lipizzi, italiano que fundou a Companhia Cinematográfica Ítalo-Argentina e Max Glucksmann, austríaco, que estabeleceu o sistema de distribuição vital para o período sonoro. A estes pioneiros somaram-se, Mario Gallo, Edmundo Peruzzi e Federico Valle, italianos que apareceram com o surgimento das primeiras salas exibidoras.

Os primeiros estúdios com laboratórios chegaram com Julio Raúl Alsina, uruguaio ligado à distribuição e exibição das películas. No período do cinema mudo, entretanto, formaram o quadro de diretores, dentre os principais, Edmo Cominetti, Nelo Cosimi, José Agustín Ferreyra, Roberto Guidi, Julio Irigoyen e Leopoldo Torre Ríos.

De 1930 a 1950, a Argentina viveu sua pujante indústria cinematográfica. No início dos anos 30 foram inauguradas várias produtoras, entre elas, Argentina Sono Film, Lumiton e Estudios San Miguel, além de pequenas e médias empresas. Neste período, o cinema argentino, seguindo o modelo de Hollywood, apresentou variadas películas, entre elas: Viento Norte,1937 e Prisioneros de La Tierra, 1939, de Mario Soffici; La Guerra Gaúcha, 1942 de Lucas Demare; La Dama Duende, 1944, de Luis Saslavsk; Las Aguas Bajan Turbias, 1951, de Hugo Del Carril; mais de quarenta filmes de Fernando Ayala e mais de trinta produções de Leopoldo Torre Nilsson . Dentre as principais atrizes figurantes, destacaram-se: Libertad Lamarque, Tita Merello, Amelia Bence, Laura Hidalgo, Mecha Ortiz, Zully Moreno, Delia Garcés, Paulina Singerman e Mirtha Legrand.

Em meados da década de 50, com a formação de cineclubes, associação de classe, lançamento de revistas de cinemas e surgimento de uma geração de curta-metragem, vários nomes ligados ao cinema vão aparecer e, também, destacadas produções, entre elas, Tire Dié, 1958 e Los Inundados, 1961, de Fernando Birri que marcaram os tempos da Escuela de Santa Fé, coordenada por Birri e voltada para o cinema documental.
Nos anos 60, a cinematografia argentina revela-se em destacadas produções, entre elas, El crack, 1959, de José A. Martinez Suárez; Los de La Mesa Diez, 1960, de Simón Feldman; Tres Veces Ana, 1961, de David J. Kohon; Los Jóvens Viejos, 1962, de Rodolfo Kuhn; Intimidad de Los Parques, 1965, de Manuel Antin; Crónica de um Niño Solo, 1965, de Leonardo Flavio. Surge, também, o chamado cinema independente com o Grupo de Los Cinco e o Grupo Cine Liberción, caracterizado pela política de resistência. São produções deste período: Mosaico, La Vida de Una Modelo, 1968, de Néstor Paternostro; Tiro de Gracia, 1969, de Ricardo Becher; The players vs. Angeles Caídos, 1969 de Alberto Fischerman; Juan Lamaglia y Señora, 1970, de Raúl De La Torre; La Hora de Los Hornos, 1968, de Octavio Getino; El Camino Hacia La Muerte Del Viajo Reales, 1971, de Gerardo Vallejo.

Nos anos 70 continua a saga cinematográfica, sendo produzidos, entre outras películas: Güemes, La Tierra em Armas, 1971, de Leopoldo Nilsson; Juan Manuel, 1971, de Manuel Antin; Argentino Hasta La Muerte, 1971, de Fernando Ayla; Bajo El Signo de La Patria, 1971, de René Mugica; Crónica de Una Señora, 1971, Heroína, 1972, El Inferno Tan Temido, 1980, de Raul de La Torre. De La Torre, também, adaptou o romance de Manuel Puig, Publish angelical, 1982. Marcaram ainda as produções de Leonardo Favio com Juan Moreira, 1973, Nazareno Cruz e Lobo, 1975 e Soñar, Soñar, 1976. Leopoldo Nilsson conquistou o Urso de Prata no Festival de Berlim, com Los Siete Locos, 1973.

Meados dos anos 70 para os anos 80, uma das primeiras diretoras do moderno cinema argentino Eva Landeck, uruguaia, destaca-se com Gente em Buenos Aires, 1974; Maria Luisa Bemberg com Camilla, 1984; Luis Puenzo com La Historia Oficial premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, 1985; Carlos Sorin com La película Del Rey, 1986, premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza; Eliseo Subiela com Hombre Mirando al Sudeste, 1987.

Deste levantamento certamente incompleto, provavelmente, alguns filmes deixaram de ser mencionados, observa-se a crescente e expressiva produção, sendo alguns merecedores de prêmios. Trata-se de uma filmografia com predominância da direção masculina com temáticas que enfatizam aspectos histórico-culturais e sociais. Como assinala T.Chacón:
Em um cierto sentido general, y más aun em nuestro país, la actividad cinematográfica há sido ejercida históricamente por varones, y obviamente, el punto de vista masculino há predominado em las realizaciones. Así también tenemos que agregar la concepción patriarcal, hozo que los que se atrevieron hacer cine adoptaran, casi sin excepción, este enfoque, promoviendo um modelo de identificación de carácter sexista, prejuicioso y distorsionado(2).

Faço um parêntese agora para conversar, en un cierto sentido, com Jorge Luis Borges. Reencontro o escritor argentino nascido em Buenos Aires em 1899, no Ateneo Grand Splendid, na Santa Fe, 1850. Embora ele esteja por todas as largas avenidas e calles de Buenos Aires, encontro-o no Gran Café Tortoni acompanhado de Alfonsina Storn Y El Mar e Calos Gardel, sendo visitado por Susan Sontag (1933-2004), Susan Sarandon e outras figuras que vieram de longe conhecê-lo e apreciar sua obra. Entre elas, Discusión, Historia Universal de La Infamia, Ficciones (que ganhou o Permio Nacional de Literatura, 1956) Historia de La Eternidad, El Jardim de Senderos que se Bifurcan, El Aleph, Outras Inquisiciones, El Hacedor, Elogio de La Sombra, El Informe de Brodie, El Libro de Arena, El Oro de Los Tigres, La Rosa profunda, La Cifra, Los Conjurados e muito mais, suas poesias. Em sua homenagem andando pelos Bosques de Palermo, em La Recoleta, Corrientes e arredores, ouvimos, novamente, seus poemas.

AS RUAS
As ruas de Buenos Aires já são minhas entranhas. Não as ávidas ruas, incômodas de turba e de agitação, mas as ruas entediadas do bairro, quase invisíveis de tão habituais, enternecidas de penumbra e de ocaso e aquelas mais longínquas privadas de árvores piedosas onde austeras casinhas apenas se aventuram, abrumadas por imortais distâncias, a perder-se na profunda visão de céu e de planura. São para o solitário uma promessa porque milhares de almas singulares as povoam, únicas ante Deus e no tempo e sem dúvida preciosas. Para o Oeste, o Norte e o Sul se desfraldam_ e são também a pátria_as ruas; oxalá nos versos que traço estejam essas bandeiras( 3).


Nestas ruas, encontramos além do escritor, representantes do moderno cinema argentino. Em Solo Cine, Rodriguez Peña, 402, precisamente. Como já percebemos, o cinema argentino expressou uma certa visão de mundo onde há predomínio de um ponto de vista masculino e patriarcal, há uma certa hegemonia da técnica narrativa centrada nas histórias de época com conotações psicológicas, sentimentais e melodramáticas, com exceções.

Queremos, por supuesto, comentar outro encontro. Desta vez, com a obra de Maria Luisa Bemberg (1922-1995) e sua cinematografia. Diretora, produtora, escritora, ativista de movimentos feministas, fundadora da União Feminista Argentina, Maria Luisa Bemberg deixou um legado de mérito e reconhecimento do seu trabalho. Dentre suas principais realizações, destaca-se: Crónica de Una Señora, 1970 (Prêmio de Interpretação Feminina no Festival de San Sebastián); Triângulo de Cuatro, 1975 (Prêmio outorgado pela Sociedade Argentina de Escritores); Momentos, 1981 (Prêmio de Interpretação Feminina no Festival de Huelva e Chicago; Señora de Nadie, 1982 (Prêmio outorgado pela Sociedade Argentina de Escritores e pelo Festival de Taormina e Panamá; Camila, 1985 (Oscar de Melhor Película Estrangeira outorgado nos Festivais Karlovy Vary e La Habana); Miss Mary, 1986 ( Prêmio de Melhor Película, Atriz e Cenário pelo Festival de La Habana e Festival de Veneza); Yo, La peor de todas, 1990 ( Prêmio no Festival de Chicago, de Cartagena e Havana (4).

Assistimos Camila, Señora de Nadie e Momentos em cópia DVD. Sem dúvida, o trabalho de Maria Luisa Bemberg demonstra inventividade, criatividade e ruptura em direção a uma moderna cinematografia que retrata os conflitos sociais e coloca as vozes femininas em primeiro plano. Así, Bamberg, com su cámara y Poniatowska com su pluma, se propusieron dar luz a determinados rostros históricamente olvidados y dar voz a determinantes silêncios milenários (op.cit). Temos que terminar estas notas, já tão alongadas para este espaço, continuaremos, porém, nossa breve incursão ao cinema porteño, que tanto nos inspira para pensarmos sobre a linguagem cinematográfica, desta vez diretamente na tela mágica.


NOTAS:
1.Latinoamericana: Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe.Coordenador Geral Emir Sader. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, 2006.
2.Cineastas argentinos contemporâneos: identidad, estilo e lenguaje. Texto de Tristán Chacón, consultado na web in: tristan[ arroba]belgrano.unc.edu.ar.
3.Borges, Jorge Luis. Obras Completas
. Vol.1. São Paulo: Globo, 2000. A Companhia das Letras acaba de lançar a Coleção Biblioteca Borges sob a coordenação de Davi Arrigucci Jr e Jorge Schwartz, quase trinta volumes estarão disponíveis para os amantes da literatura mundial contemporânea.
4.Cineastas argentinos contemporâneos, op.cit.