terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

A ORIGEM DOS MUNDOS










The origin of the world. L'Origine du monde,1866. Paris. Musée D'orsay.

Depois de um longo silêncio em que a luta pela sobrevivência afastou-me das postagens sobre a cultura cinematográfica, trago a esta página o texto do Jorge Coli. Leitora permanente de seus informados e analíticos textos editados na Folha de São Paulo pude perceber, pela resposta ao meu e-mail, que se trata de um interlocutor que nos honraria em participar do diálogo. A seguir a transcrição de seu texto.

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A mostra Courbet é muito bela: beleza da matéria, dos tons graves e surdos, do silêncio meditativo sobre os mistérios telúricos, vegetais ou corpóreos
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
T ermina em Paris uma retrospectiva do pintor Gustave Courbet [1819-77]. Ela irá agora para o Metropolitan Museum de Nova York [de 27/2 a 18/5]. Mostras monográficas importantes reúnem quadros dispersos nos museus do mundo inteiro: é um grande prazer vê-los e compará-los. Têm ainda o sentido de fazer um balanço, de renovar a compreensão, a intuição, do papel que representam hoje esses grandes mestres. As obras de arte possuem um núcleo estável no qual se entrelaçam as pulsões criadoras. No entanto, elas se modificam. Primeiro, fisicamente: o material envelhece e o aspecto se altera com o tempo. Há também deslocamentos que mudam a percepção e afetam o olhar: caso evidente é o das obras religiosas transportadas para os museus. São mutações que diminuem certas características para ampliar outras.
As obras sofrem outras perturbações, originadas pela sucessão dos olhares que, de geração em geração, pousaram sobre elas. Nunca são vistas "nelas mesmas"; são sempre, por assim dizer, traduzidas para a cultura de quem as contempla. Textos críticos, teóricos, históricos sintetizam as sensibilidades de cada geração. Trata-se de enfoques que aderem à obra. Mesmo quando negados ou contestados, continuam pressupostos, ativos e, de um certo modo, passam a fazer parte da própria criação.

Seixo
A retrospectiva Courbet é muito bela. Beleza da matéria, dos tons graves e surdos, do silêncio meditativo sobre os mistérios telúricos, vegetais ou corpóreos. Beleza da gravidade pictural que vai além da idéia, do conceito, da formulação lógica. Courbet escreveu uma vez: "Faço as pedras pensarem".
Nem ele nem o espectador pensam sobre a pedra, é a pedra que pensa, exatamente como no poema de João Cabral de Melo Neto: "Uma educação pela pedra: por lições;/ Para aprender da pedra, freqüentá-la;/ Captar sua voz inenfática, impessoal (...) Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,/ Uma pedra de nascença, entranha a alma".

Inflexões
Os quadros se sucedem nas salas. São paisagens, marinhas, naturezas-mortas, nus femininos, cenas de caça. São as telas que representam a nascente do rio Loue, que atravessa a Franche-Comté, região em que Courbet nasceu, se criou, e à qual permaneceu sempre ligado. Tudo admirável. Porém, se esse aspecto mais fundamente metafísico vem sublinhado, o outro Courbet, o Courbet político, militante socialista, é reduzido a quase nada nesta retrospectiva.
Muitos quadros relevantes, com traços sociais ou de interpretação problemática, estão ausentes: "As Peneiradoras de Trigo", "O Incêndio", "Os Lutadores", "O Mendigo", a singular remadora, em maiô contemporâneo, sem falar dos "Quebradores de Pedra" e do "Retorno da Conferência", obras destruídas, mas que causaram grande impacto quando expostas pela primeira vez e que subsistem em esboços e gravuras. Talvez os curadores busquem evitar as interpretações políticas que, de Proudhon a estudiosos atuais, marxistas e feministas, ingleses ou americanos, têm, em grande parte, dominado as análises sobre o pintor.

Fresta
Em 1977, comemorando o centenário da morte de Courbet, houve outra exposição importante. Contra a vontade dos curadores, ordens poderosas proibiram, por obscenidade, a apresentação do quadro "A Origem do Mundo", que figura um sexo feminino em close. Hoje, é o ponto mais alto da mostra. À volta dele, na sala, gravitam as mais belas mulheres nuas que o artista nos deixou.

2 comentários:

Stela Borges de Almeida disse...

Nota: Sobre o autor do texto,Jorge Sidney Coli Junior, informações a seguir:


Graduação em História da Arte e Arqueologia - Universite D'Aix-Marseille I (Universite de Provence) (1973), mestrado em História da Arte e Arqueologia, Universite D'Aix-Marseille I (Universite de Provence) (1974) e doutorado em Filosofia (Estética) pela Universidade de São Paulo (1990). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas. Professor convidado nas Universidades de Paris I (França - 1996) Osaka (Japão - 1998), Princeton (EUA - 1999 - 2000), Paris I Panthéon - Sorbonne (2007); coordenador de área da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, membro - Association des Historiens de l'Art Contemporain, membro da Associação de Intercâmbio Cultural Italo-Brasileira, membro - Brazilian Studies Association, advisor - Web Architecture Magazine, membro - Associationn Internationale des Critiques d'Art, consultor ad hoc - John Simon Guggenheim Memorial Foundation, consultor ad hoc - Universidad de Buenos Aires e membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte - membro da Associação Internacional de Críticos de Arte. Prêmio Gonzaga Duque, ABCA (melhor crítico de arte de 2003). Grande Prêmio Capes "Florestan Fernandes" (2006): orientador para o conjunto das grandes áreas de Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas e Lingüística, Letras e Artes - tese de Maraliz de Castro Vieira Christo, Pintura, história e heróis no século XIX: Pedro Américo e Tiradentes Esquartejado para o conjunto das grandes áreas de Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas e Lingüística, Letras e Artes. Prêmio Capes: orientador na área de História (2006), mesma tese acima. Prêmio de reconhecimento Acadêmico "Zeferino Vaz", 2006, outorgado pela Unicamp. Autor de diversos livros (entre eles "Música Final", "Como estudar a arte brasileira do século XIX", "A paixão segundo a ópera", "Ponto de Fuga", "L'Atelier de Courbet"), ensaios e estudos em revistas e obras coletivas. Tem experiência na área de História, com ênfase em História da Arte e da Cultura Moderna e Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: arte, musica, cinema, estetica e historia da arte.
(Texto informado pelo autor)

Jonga Olivieri disse...

Que bom que está de volta. Talvez somente o tenha notado agora, pois andaste um bom tempo fora do circuito, mas você mudou o título do seu blog, tornando-o mais amplo, ao envolver "cultura, política e cinema".
Muito interessante esta matéria do Jorge Coli sobre o pintor, considerado o fundador do movimento "Realista". Gustave Coubert foi, além disso, um grande amigo de Baudelaire.
E a tela que ilustra a matéria (L'Origine du monde) é de fato uma das mais expressivas de sua obra, já em uma fase considerada erótica de seu trabalho.