segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Declaração da Assembeia dos Movimentos Sociais

FSM Dacar, Senegal, 10 de fevereiro de 2011


Nós, reunidos na Assembleia de Movimentos Sociais, realizada em Dacar durante o Fórum Social Mundial 2001, afirmamos o aporte fundamental da África e de seus povos na construção da civilização humana. Juntos, os povos de todos os continentes enfrentamos lutas onde nos opomos com grande energia à dominação do capital, que se oculta detrás da promessa de progresso econômico do capitalismo e da aparente estabilidade política. A descolonização dos povos oprimidos é um grande desafio para os movimentos sociais do mundo inteiro.

Afirmamos nosso apoio e solidariedade ativa aos povos da Tunísia, do Egito e do mundo árabe que se levantam hoje para reivindicar uma real democracia e construir poder popular. Com suas lutas, eles apontam o caminho a outro mundo, livre da opressão e da exploração.
Reafirmamos enfaticamente nosso apoio aos povos da Costa do Marfim, da África e de todo o mundo em sua luta por uma democracia soberana e participativa. Defendemos o direito à auto-determinação de todos os povos.

No processo do FSM, a Assembleia de Movimentos Sociais é o espaço onde nos reunimos desde nossa diversidade para juntos construir agendas e lutas comuns contra o capitalismo, o patriarcado, o racismo e todo tipo de discriminação.

Em Dakar celebramos os 10 anos do primeiro FSM, realizado em 2001 em Porto Alegre, Brasil. Neste período temos construído uma história e um trabalho comum que permitiu alguns avanços, particularmente na América Latina onde conseguimos frear alianças neoliberais e concretizar alternativas para um desenvolvimento socialmente justo e respeituoso com a Mãe Terra.

Nestes 10 anos, vimos também a eclosão de uma crise sistêmica, expressa na crise alimentar, ambiental, financeira e econômica, que resultou no aumento das migrações e deslocamentos forçados, da exploração, do endividamento, das desigualdades sociais.

Denunciamos o desafio dos agentes do sistema (bancos, transnacionais, conglomerados midiáticos, instituições internacionais etc.) que, em busca do lucro máximo, mantêm com diversas caras sua política intervencionista através de guerras, ocupações militares, supostas missões de ajuda humanitária, criação de bases militares, assalto dos recursos naturais, a exploração dos povos, a manipulação ideológica. Denunciamos também a cooptação que estes agentes exercem através de financiamentos de setores sociais de seu interesse e suas práticas assistencialistas que geram dependência.

O capitalismo destroi a vida cotidiana das pessoas. Porém, a cada dia,nascem múltiplas lutas pela justiça social, para eliminar os efeitos deixados pelo colonialismo e para que todos e todas tenhamos uma qualidade de vida digna. Afirmamos que os povos não devemos seguir pagando por esta crise sistêmica e que não há saída para a crise dentro do sistema capitalista!


Reafirmando a necessidade de construir uma estratégia comum de luta contra o capitalistmo, nós, movimentos sociais:

Lutamos contra as transnacionaisporque sustentam o sistema capitalista, privatizam a vida, os serviços públicos, e os bens comuns, como a água, o ar, a terra, as sementes, e os recursos minerais. As transnacionais promovem as guerras através da contratação de empresas militares privadas e mercenários, e da produção de armamentos, reproduzem práticas extrativistas insustentáveis para a vida, tomam de assalto nossas terras e desenvolvem alimentos transgênicos que tiram dos povos o direito à alimentação e eliminam a biodiversidade.

Exigimos a soberania dos povos na definição de nosso modo de vida. Exigimos políticas que protejam as produções locais que dignifiquem as práticas no campo e conservem os valores ancestrais da vida. Denunciamos os tratados neoliberais de livre comércio e exigimos a livre circulação de seres humanos.

Seguimos nos mobilizando pelo cancelamento incondicional da dívida pública de todos os países do Sul. Denunciamos igualmente, nos países do Norte, a utilização da dívida pública para impor aos povos políticas injustas e antissociais.

Mobizemo-nos massivamente durante as reuniões do G8 e do G20 para dizer não às políticas que nos tratam como mercadorias.

Lutamos pela justiça climática e pela soberania alimentar. O aquecimento global é resultado do sistema capitalista de produção, distribuição e consumo. As transnacionais, as instituições financeiras internacionais e governos a seu serviço não querem reduzir suas emissões de gases de efeito estufa. Denunciamos o "capitalismo verde" e rechaçamos as falsas soluções à crise climática como os agrocombustíveis, os transgênicos e os mecanismos de mercado de carbono, como o REDD, que iludem as populações empobrecidas com o "progresso", enquanto privatizam e mercantilizam os bosques e territórios onde viveram milhares de anos.

Defendemos a soberania alimentar e o acordo alcançado na Cúpula dos Povos Contra as Mudanças Climáticas e pelos Direitos da Mãe Terra, realizada em Cochabamba, onde verdadeiras alternativas à crise climática foram construídas com movimentos e organizações sociais e populares de todo o mundo.

Mobilizemos todas e todos, especialmente o continente africano, durante a COP-17 em Durban, África do Sul, e a Rio+20, em 2012, para reafirmar os direitos dos povos e da Mãe Terra e frear o ilegítimo acordo de Cancún.

Defendemos a agricultora camponesa que é uma solução real à crise alimentar e climática e significa também acesso à terra para quem nela vive e trabalha. Por isso chamamos a uma grande mobilização para frear a concentração de terras e apoiar as lutas camponesas locais.

Lutamos para banir a violência contra a mulherque é exercida com regularidade nos territórios ocupados militarmente, porém também contra a violência que sofrem as mulheres quando são criminalizadas por participar ativamente das lutas sociais. Lutamos contra a violência doméstica e sexual que é exercida sobre elas quando são consideradas como objetos ou mercadorias, quando a soberania sobre seus corpos e sua espiritualidade não é reconhecida. Lutamos contra o tráfico de mulheres e crianças.

Defendemos a diversidade sexual, o direito à autodeterminação do gênero, e lutamos contra a homofobia e a violência sexista.

Mobilizemo-nos, todos e todas, unidos, em todas as partes do mundo para banir a violência contra a mulher.

Lutamos pela paz e contra a guerra, o colonialismo, as ocupações e a militarização de nossos territórios. As potências imperialistas utilizam as bases militares para fomentar conflitos, controlar e saquear os recursos naturais, e promover iniciativas antidemocráticas como fizerem com o golpe de Estado em Honduras e com a ocupação militar em Haiti. Promovem guerras e conflitos como fazem no Afeganistão, Iraque, República Democrática do Congo e em vários outros países.

Intensifiquemos a luta contra a repressão dos povos e a criminalização do protesto e fortaleçamos ferramentas de solidariedade entre os povos como o movimento global de boicote, desinvestimentos e sanções contra Israel. Nossa luta se dirige também contra a Otan e pela eliminação de todas as armas nucleares.

Cada uma destas lutas implica uma batalha de idéias, na que não poderemos avançar sem democratizar a comunicação. Afirmamos que é possível construir uma integração de outro tipo, a partir do povo e para os povos, com a participação fundamental dos jovens, mulheres, camponeses e povos originários.

A assembléia dos movimentos sociais convoca as forças e atores populares de todos os países a desenvolver duas ações de mobilização, coordenadas a nível mundial,para contribuir à emancipação e autodeterminação de nossos povos e para reforçar a luta contra o capitalismo.

Inspirados nas lutas do povo da Tunísia e do Egito, chamamos a que o 20 de março seja um dia mundial de solidariedade com o levante do povo árabe e africano que em suas conquistas contribuem às lutas de todos os povos: a resistência do povo palestino e saharauí, as mobilizações européias, asiáticas e africanas contra a dívida e o ajuste estrutural e todos os processos de mudança que se constroem na América Latina.

Convocamos igualmente a um dia de ação global contra o capitalismo: o 12 de outubro, onde, de todas as maneiras possíveis, rechaçaremos este sistema que destrói tudo por onde passa.

Movimentos sociais de todo o mundo, avancemos até a unidade a nível mundial para derrotar o sistema capitalista!

Venceremos!
Fonte:

Paulo Illes

Coordenador Centro de Apoio ao Migrante - SPM

Declaração da Assembleia dos Movimentos Sociais
Por: CAMI www.cami-spm.org

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

imagens da diáspora


Durante três séculos, milhões de africanos foram obrigados a sair de suas terras para trabalharem como escravos na América Colonial. O Brasil recebeu a maior parte deles – cerca de cinco milhões de indivíduos. A imensa contribuição africana daí advinda não se limitou apenas ao mundo material, mas influenciou de forma marcante a arte, a língua, a religiosidade, a família e a vida do Brasil. Essa diáspora negra resultou numa experiência inovadora, misturando raças e gerando um povo novo no continente americano. Este livro resgata a trajetória africana no Brasil e ressalta a singularidade e a beleza do legado afro-brasileiro, aqui representado pelo traço inconfundível do trabalho da artista plástica Goya Lopes, acompanhado por textos esclarecedores do historiador Gustavo Falcón.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

sobre o cinema africano

Nota: Excelente texto para os que querem aproximar-se do cinema africano; o enderêço do site para consulta e estudos, a seguir.

BUALA
cultura contemporânea africana

http://www.buala.org/


Papel dos festivais na recepção e divulgação dos cinemas africanos

Há cinquenta anos atrás, o cinema africano nascia e se afirmava como um cinema engajado, comprometido social e ideologicamente com as lutas de emancipação que agitavam toda a África nos períodos da descolonização. Mas depois das independências, novas prioridades afastaram os governos africanos do seu cinema. A partir dos anos 70, os cinemas africanos se tornaram de vez filhos da cooperação cultural que sobretudo a França vem mantendo com as suas ex-colônias. Muitas vozes denunciam os efeitos perversos da política de ajuda francesa nas cinematografias africanas. Paradoxalmente, as críticas mais virulentas partem dos próprios cineastas que vêem nesta forma de apoio um freio e um empecilho à emergência de políticas cinematográficas endógenas. Toda a ambiguidade da ajuda ocidental às cinematografias africanas decorre do fato de que ela carrega boa parte das contradições que cercam as relações do ocidente com o Outro e com essas culturas. Olivier Barlet resume assim o paradoxo da relação da ajuda internacional com os cinemas africanos:
“Os sucessos dos filmes africanos fragilizaram esta cinematografia: há muita pressão sobre os conteúdos e a política de ajuda, ao corresponder a uma necessidade ocidental de imagens do sul, tende para uma adaptação às normas de qualidade internacional.” (BARLET, 1996)

Se a ajuda a uma cinematografia estrangeira é ambígua, precisa o autor, não é porque a transforma numa cinematografia assistida - todo o cinema é, aliás, assistido, inclusive Hollywood. O problema é que esta ajuda é baseada no princípio de um gesto bondoso de um centro em relação ao Outro, à sua cultura e ao seu cinema, isto é, um cinema diferente. Isso não deixa de acarretar consequências no plano temático e ideológico nos trabalhos dos cineastas africanos que se sentem cada vez mais impelidos a conformar os conteúdos de seus filmes às expectativas ligadas a esta “solidariedade” interessada, proveniente de uma grande nação de cultura. Para muitos autores, a cooperação cultural da França com as suas ex-colônias é ainda opaca, ela oscila entre a boa consciência, dever moral, vergonha com o passado colonial e interesse geopolítico.

Há mais de quatro décadas que os recursos da cooperação mantêm viva a produção fílmica na África. Por um lado, isso cria um comodismo nos governos africanos que tendem a considerar o cinema como um setor secundário, e não prioritário, nos esforços de desenvolvimento. Por outro, a ajuda que vem de fora retarda o envolvimento do setor privado local na produção cultural e a emergência e consolidação de uma indústria cultural que seria uma alternativa ao desenvolvimento econômico. Enquanto isso não acontecer, os cineastas lidam como podem com a ambiguidade da política cinematográfica francesa. E na falta de uma política de acompanhamento dos filmes no plano da distribuição, todo o cinema africano se tornou um cinema de evento, um cinema para festivais. À necessidade de ajuda à produção de imagens nos países africanos corresponde uma outra demanda por filmes africanos nos festivais consagrados a esta cinematografia do sul: a distribuição.

Todavia, nesta situação de marasmo e de total entrega das cinematografias africanas às políticas pensadas sob medida para elas e de dependência aos festivais organizados para elas, o Burkina Faso figura como exceção. Não somente pela histórica implicação dos sucessivos governos deste pequeno país da África ocidental na atividade cinematográfica, mas também pela organização do maior evento dedicado, de forma bienal, às produções fílmicas de toda a África e de sua diáspora. Neste texto, nosso objetivo não é denunciar nem fazer uma crítica injusta às diversas formas de ingerência da atividade cinematográfica na África. Ao contrário, pegamos nas contradições da dependência do cinema africano da ajuda, dos festivais e da crítica ocidentais como ponto de partida para um esforço de compreensão do valor de outras experiências endógenas que pontuam a história do cinema africano e que buscam quebrar esta dependência. Nesta perspectiva, o Festival Pan-africano de Cinema e Televisão (FESPACO), a Federação Panafricana dos Cineastas (FEPACI) e os esforços do Burkina Faso por um pan-africanismo no cinema africano devem ser percebidos como alternativas à carência de uma política cinematográfica na África.
CHRONIQUE DES ANNÉES DE BRAISE do argelino Mohamed Lakhdar Hamina (1975).

O cinema africano, um cinema de festival


O cinema africano continua sendo feito com grande dificuldade, mas festivais dedicados exclusivamente a filmes africanos se multiplicam nos quatro cantos do mundo. Estes festivais internacionais, que poderiam alavancar o lançamento comercial dos filmes realizados por cineastas africanos, acabam funcionando apenas como única oportunidade de exibição pública. Os maiores festivais europeus são um termômetro que aferem a saúde do cinema feito na África: quando há mais filmes africanos selecionados no festival de Cannes, por exemplo, isso é percebido pelos críticos como um sinal positivo da dinâmica da produção naquele ano. Ao contrário, a ausência dos filmes africanos da seleção oficial do maior festival do mundo durante dois anos consecutivos foi percebida como um sinal alarmante da situação que vem atravessando o cinema africano ao longo destes cinco anos. A relação obsessiva dos cineastas africanos com os catálogos e os calendários dos festivais confirma uma das exceções do cinema africano: trata-se de um cinema de festival e para os festivais.

Desde que desapareceram os cineclubes, os festivais ocupam o campo de encontro e de debate sobre os filmes de outras partes do mundo. Nascem, portanto, de uma vontade legítima de mostrar filmes que nunca teriam acesso às salas ocidentais (BARLET, 1996). A história dos cinemas africanos é inseparável da existência destes espaços reservados à exibição de filmes provenientes de cinematografias ditas periféricas. Para se fazer conhecer, num primeiro tempo, o filme africano precisou de ir ao encontro dos festivais internacionais. Em seguida, são os festivais que vieram procurar o filme africano pois começava a existir e interessar à curiosidade dos cinéfilos ocidentais. Se Cannes é considerado o maior festival do mundo é, em parte, devido à abertura que seus organizadores fazem às produções provenientes das cinematografias do sul. As mais gloriosas páginas da história do cinema africano foram escritas no Festival de Cannes (DELAFIN, 2007). Desde a sua criação, há mais de 60 anos, o festival francês vem reservando um lugar especial aos filmes de cineastas africanos. O reconhecimento e a consagração do cinema africano começaram com o polêmico Chronicle of the Burning Years (Chronique des années de braise) (Palme d’Or 1975) do argelino Mohamed Lakhdar Hamina. Depois foi a vez do cineasta Souleymane Cissé, do Mali, ganhador do Prémio do Júri, por Brightness (Yeelen) (1987). Dois anos depois Idrissa Ouedraogo, do Burkina Faso, arrebatava o mesmo prestigiado prêmio do Júri com o filme The Law (Tilaï) (1989).

Idrissa Ouedraogo, de Burkina Faso, filme THE LAW (1989) Souleymane Cissé
Além destes premiados cineastas, cabe mencionar os casos de cineastas africanos que frequentam de forma assídua o maior festival do mundo. Os pioneiros foram Paulin Vieyra em 1963 com o seu filme Lamb. Sembène Ousmane apresentou Black Girl (La Noire de…) em 1964. Depois de quase 10 anos, graças ao talento do diretor senegalês Djibril Diop Mambety, o cinema africano voltava para a seleção oficial do Festival de Cannes em 1973, na categoria Quinzena dos Realizadores, com o filme até hoje aclamado pela sua audácia estética Journey of the Hyena (Touki Bouki). O mesmo Djibril Diop Mambety voltou para Cannes em 1992 com o seu segundo longa, Hienas (Hyènes).

Durante todo este tempo, os cineastas do Magreb também contribuíram para o reconhecimento do cinema africano em Cannes. Em 1992 Bezness, um filme de Nouri Bouzid, cineasta da Tunísia, foi selecionado na Quinzena dos realisadores. Depois de ser recompensado com Tanit d’Or do Festival de Cartagena na Tunísia, Halfaouine: Child of the Terraces (Halfaouine) de Férid Boughedir foi selecionado em 1990 na Quinzena dos Realizadores. CHILD OF THE TERRACES, de Férid Boughedir (Tunísia, 1990)

A presença de todos esses cineastas em Cannes simboliza a vitalidade do cinema africano. Durante 15 dias de festival, os filmes africanos são vistos pela crítica internacional e competem com filmes de outros países. Mas além da competição e da consagração, Cannes é também uma formidável oportunidade para os cineastas africanos viabilizarem financeiramente a circulação comercial de seus filmes e tecerem contato com produtores para futuros filmes.

Mesmo não dispondo dos mesmos recursos colossais de Cannes, vários pequenos festivais vêm promovendo filmes africanos no exterior. Seus organizadores se contentam, geralmente, com o público formado pelos habitantes de uma determinada localidade que não são forçosamente cinéfilos nem conhecedores do cinema africano1.
BEZNESS, de Nouri Bouzid (1992)

Estes eventos de pequeno porte estão inscritos na agenda de todos os cineastas africanos. É o caso de Afrika Filmfestival. Ocorre anualmente, desde 1996, na cidade de Louvain. A projeção dos filmes e vídeos de África e da diáspora nesta província belga determinou, inclusive, as formas de promoção e de cooperação entre a Bélgica, a região do Brabant flamengo e a África. Para os organizadores, o objetivo é duplo. Permitir, num primeiro momento, ao público ocidental descobrir “a maneira como os próprios africanos se vêem e julgam sua situação, sua história e seus contatos com a Bélgica (Europa)”. Isso favorece um maior diálogo e compreensão entre ambos os lados. Cada ano o Festival de Louvain desenvolve temáticas sócio-culturais que giram em torno da migração, da situação das mulheres africanas no cinema e o passado colonial belga. O segundo objetivo é mais humanitário. Além da programação normal dos filmes africanos em salas de cinema e centros culturais, o festival tem atividades ligadas à cooperação ao desenvolvimento:
“As vozes e as imagens dos colaboradores africanos das instâncias oficiais e não oficiais (ONG) se fazem ouvir ou ver. Pela criação de canais de distribuição e de representação para os produtores de filmes africanos, o festival tenta contribuir para a manutenção desta produção cultural.” (CONVENTS, 2003)

O que todos estes festivais têm em comum é a postura política e militante que caracteriza a ação de seus organizadores. Demonstra uma vontade de passar de um sentimento de curiosidade, de benevolência e de exotismo em relação aos filmes africanos para uma relação espectatorial mais engajada que, em alguns casos, beira o terceiromundismo. Festivais como o African Film Festival (USA), o African Diaspora Film Festival (USA), o Afrika Film Festival (Bélgica) e o Festival de Cannes têm um mesmo objetivo: contornar o insolúvel problema de distribuição e circulação dos filmes africanos e promovê-los junto às populações ocidentais.

Mas a excessiva importância dos festivais fez com que eles acabassem determinando o valor de um filme e as opções estéticas e temáticas dos cineastas africanos. Muitos filmes africanos premiados são acusados de “cultuarem falsos valores e lugares comuns que dão uma imagem artificial e truncada da África.” (VIEYRA, 1975). O peso dos festivais no percurso de um filme africano é hoje objeto das mesmas críticas feitas ao desvirtuamento das cinematografias provocado pela ajuda financeira da cooperação internacional. Férid Boughedir atribui os problemas estéticos do cinema africano contemporâneo àquilo que chama de “festivalidade”, isto é, a atitude que leva os cineastas africanos a formatar os seus filmes às normas e às expectativas do público dos festivais (no fundo, o seu único público) (BOUGHEDIR, 2005). Os cineastas africanos são reféns da “religião que é a cinefilia”. Ora, quando se sabe que o “cinéfilo não gosta forçosamente de um filme pelo que o diretor quis dizer, mas pelo que ele (cinéfilo) quer encontrar neste filme”, é como se todo o cinema africano fosse refém do olhar e das expectativas espectatoriais ocidentais. Sendo assim, várias gerações de cineastas africanos, acabaram por confundir pesquisas estéticas reais com puro estetismo para agradar os críticos ocidentais.
TOUKI BOUKI, de Djibril Diop Mambéty (1973)

As relações ambíguas da crítica eurocêntrica com os filmes africanos
O papel da crítica ocidental tem sido tão decisivo quanto o dos festivais na divulgação, compreensão e aceitação das imagens provenientes da África. A crítica europeia soube bem cedo identificar e circunscrever a recorrência de grandes características temáticas e estéticas no cinema africano. Mas, pode-se dizer também que, ao longo da história dos cinemas africanos, a crítica ocidental elaborou e projetou as suas próprias representações imaginárias sobre as produções fílmicas africanas. A leitura ideológica da crítica eurocêntrica ora cria novos preconceitos, ora não dá mais conta das novidades nos cinemas africanos. Há uma descontinuidade entre as novas temáticas abordadas nos filmes africanos e os horizontes de expectativas dos críticos.

A crítica, como as demais áreas de produção de conhecimento, pode ser portadora da ideologia do seu contexto cultural de produção. A crítica ocidental não escapa desta regra. Como reconhece Barlet, não escapa do preconceito ambiente (BARLET, 1996). Muitas vezes os olhares e as leituras ocidentais sobre as imagens produzidas pelos artistas africanos criam e reforçam a diferença. A relação dos ocidentais com a criação dos artistas dos países do sul permanece terrivelmente marcada por uma atitude neocolonialista que os faz exigir uma “autenticidade” desses artistas. Isso passa por uma flagrante ignorância da existência de uma arte contemporânea e a recusa de uma expressão autônoma que não corresponda às expectativas exóticas ocidentais.

De acordo com Olivier Barlet (BARLET, 1997), duas significações balizam toda a leitura aplicada aos filmes africanos pela crítica francesa e europeia de modo geral: a ingenuidade e a irreflexão. Nos anos 80 os filmes africanos tiveram uma maior visibilidade graças a Festivais e ao interesse da cinefilia ocidental sedenta de uma nova estética cinematográfica. Os filmes de Souleymane Cissé e de Idrissa Ouedraogo2 são incensados pela magia, a “ingenuidade” e o “lado primitivo” que os caracterizam. Na verdade, a suposta ingenuidade do cinema africano decorre de uma apreciação simplista por parte da crítica francesa, incapaz de compreender as imagens produzidas pelo outro. Para o ocidente, a África sempre foi o Outro, um cenário de projeção, o suporte de estereótipos do imaginário coletivo decorrente do cinema colonial: os negros são bons selvagens, eternos festivos antimaterialistas que vivem unicamente do calor social, grandes crianças que, como lembrava o Larousse de 1932, “sua inferioridade intelectual nos impõe proteger (BARLET, 1997)”.
Naquela década de 80, o cinema africano é, ao mesmo tempo, objeto de fascínio e desdém da crítica. No plano cinematográfico a diferença e o exotismo elogiados nos filmes africanos, na verdade, funcionam como um repertório de clichês que impedem um maior exercício crítico para apreender as mudanças que já estão em curso em todas as cinematografias africanas. A condescendência da crítica francesa, de acordo com o autor, assemelha-se à incapacidade de se exercer uma reflexão profunda para apreender os filmes africanos naquilo que têm de singular e universal.

Destas duas atitudes na recepção eurocêntrica decorre a definição do cinema africano como gênero. A leitura da crítica ocidental é reducionista e globalizante. O cinema africano é visto como um todo, independentemente das idiossincrasias que podem se encontrar nos trabalhos dos cineastas africanos em termos de estilo, de gênero e de temática. À recepção ingênua do cinema africano dos anos 80 sucede uma crítica incompreensiva da mudança que atravessa todas as cinematografias africanas e as novas propostas e temáticas abordadas pelos cineastas africanos. A crítica francesa, como lamenta Barlet, continua classificando os filmes africanos na categoria distintiva e globalizante de “filme africano”. Além de reduzir os trabalhos dos cineastas africanos a esta categoria, a crítica não tolera mais o que ela considera a imaturidade do cinema africano e que ela continua tentando apreender por uma única ótica da dicotomia “filmes de cidade vs filmes de campo” que ela mesma criou.
Mesmo se Olivier Barlet prega uma leitura mais subjetiva dos filmes africanos, que possa restituir-lhes esta condição de igual, o cinema e as imagens vindas da África continuam esbarrando nos critérios elaborados pelos discursos valorativos ocidentais. A reflexão crítica, principalmente a francesa, parece ter engessado a análise temática dos filmes africanos. Ingenuidade, filme de gênero, o olhar ocidental sobre os filmes de África os enclausura em critérios redutores que lhes negam a sua estética própria. Isso seria o resultado de uma leitura tipicamente eurocêntrica que consiste em apreender as produções culturais do sul pela única ótica do “Outro”. Proclama-se a diferença do “Outro” antes de aceitar a sua diferença. Para Barlet, não há dúvida que o velho princípio de diferença estabelecido entre cinema africano e cinema ocidental penetra e compromete a atividade crítica e a percepção dos próprios filmes.

Os filmes africanos só começam a ser apreciados essencialmente como são, isto é, como imagens decorrentes de uma outra cultura (e não de uma cultura imaginada e pré-fabricada pelo ocidente) quando emerge um novo público que não compartilha das categorias da crítica eurocêntrica. Para Barlet, “urge estabelecer uma diferença entre grandes e pequenos festivais percebidos como “predadores”, dos festivais que permitem uma efetiva promoção comercial dos filmes junto à mídia e aos profissionais do cinema”. Os próprios cineastas africanos aprenderam, com o tempo, a distinguir entre festivais que brilham pela inteligência da sua programação feita de retrospectivas, seminários e atividades culturais, dos eventos que se destacam por um paternalismo que arrepia e em que a exibição de um filme africano se aparenta a uma ação humanitária (BARLET, 1996).

Por outro lado, é bom notar que em todos estes festivais internacionais as produções africanas são selecionadas e apresentadas como um todo, sob o termo genérico e globalizante de “festival de cinema africano”, independentemente das diversidades e das origens dos próprios cineastas. É difícil imaginar um festival sobre o cinema americano, como o de Deauville, em que encontrar-se-iam, lado a lado, filmes estadunidenses, argentinos, brasileiros ou mexicanos. Inclusive, mesmo quando há um festival sobre o cinema latino-americano os organizadores e o público esperam ver uma variedade de propostas fílmicas que refletissem a diversidade de situação do cinema sul-americano. Com os festivais de filmes africanos, o critério de diversidade não parece ser aplicado. Tudo acontece como se os cineastas africanos participassem de um mesmo movimento cinematográfico oriundo de um mesmo “país”, compartilhassem das mesmas preocupações políticas, estéticas e temáticas. Espera-se dos filmes e dos cineastas africanos uma única e mesma realidade: a África. Os cineastas africanos são os primeiros a fustigarem a atitude reducionista dos críticos ocidentais que não se dão ao trabalho de distinguir a proveniência dos filmes africanos em seus artigos. Esta crítica dos cineastas africanos vale para os organizadores de festivais? Se não há ainda um festival dedicado à cinematografia de um país africano em particular, isto se deve à fraca quantidade de filmes produzidos por país, bem como a características temáticas e formais que seriam comuns a todos os filmes africanos. Mas, por trás desta visão globalizante, há a concepção ocidental de que a África é una. Ora, como sabemos, não há um cinema africano como tampouco há uma África. O próprio Magreb que está dividido entre três países (Argélia, Tunísia e Marrocos) está longe de constituir uma entidade apesar do substrato cultural árabe-islâmico que têm em comum. Portanto o cinema africano não se restringe aos filmes produzidos na África subsaaariana. Inclusive a participação dos cineastas das diásporas negras e magrebinas dos movimentos cinematográficos africanos não é mais vista como uma extrapolação indevida.

Por uma recepção diaspórica dos filmes africanos

Outros festivais e eventos procuram criar uma ponte entre as criações africanas e um público formado pela diáspora negra e africana. Todas as diásporas, como sabemos, estão engajadas num processo de reconstrução daquilo que Anderson Benedict chama de “comunidades imaginadas”3 (HALL, 2003). A relação dos negros ou das populações originárias do norte da África com a terra de origem de seus ancestrais passa, doravante, não somente por uma reconstrução de uma nova “identidade cultural” no além-mar, mas também pelas experiências estéticas proporcionadas pelo contato com as manifestações artísticas e culturais provenientes do continente negro. Os eventos em torno das imagens provenientes da África (cinema ou fotografia) tomam os aspectos de uma mediação cultural em que a experiência de re-identificação simbólica com as culturas africanas opera-se pelo contato com as representações cinematográficas que destacam a presença da herança cultural negra na tela.

A recepção diaspórica do cinema africano problematiza e, ao mesmo tempo, ajuda a entender muitos aspectos da dimensão cultural que se sobrepõe à dimensão estética nos filmes africanos. Se a realização dos filmes por diretores africanos parece proceder diretamente dos esforços para a construção simbólica do conceito de nação pela auto-afirmação através da imagem, o uso destes filmes africanos por uma parte da diáspora africana parece também determinado por fatores de ordem étnica e política (ODIN, 2000)4. A relação da diáspora negra ou norte africana com o cinema e as imagens provenientes da África toma a forma de uma prática de “recepção cultural” (KESSLER, 2000)5, pois os filmes africanos, enquanto manifestações culturais geograficamente marcadas, passam a ser objeto de um novo investimento semântico que supera, muitas vezes, o conteúdo narrativo. Os eventos culturais organizados em torno do cinema africano (que, muitas vezes, incluem a literatura e o artesanato) nos colocam diante de uma situação de prática espectatorial em que novas particularidades culturais determinam os modos de leitura dos filmes africanos. Como os filmes e o público são selecionados e visados na base do critério étnico, há, por parte do público da diáspora, a mobilização de modos de leitura particulares. Assim, um mesmo filme africano poderá ser diversamente interpretado conforme é projetado para um público ocidental num festival na Europa ou para um público negro no contexto de um festival organizado pela diáspora africana.

Outros festivais vão mais longe nesta empreitada de aproximar a África das suas diásporas. Eles integram na sua programação, além dos filmes propriamente africanos, filmes provenientes das próprias diásporas. Este tipo de ponte entre os dois mundos confirma, às vezes, a própria vitalidade das cinematografias provenientes das diásporas negras e árabes.
As políticas e ideologia das programações dos festivais confirmam, desta forma, a emergência de um público cinematográfico diaspórico no meio da história dos cinemas africanos.
BLACK GIRL de Sembène Ousmane (1964)

Por um festival africano

Paralelamente a estes festivais ocidentais, os africanos sentiram, num determinado momento da sua história, a necessidade de organizar seus próprios festivais. Seriam espaços de exibição de filmes em terra africana, que propiciassem a oportunidade para federar os cineastas africanos e os da diáspora em tornos de ideais e valores coletivos. Grandes ou pequenos, estes festivais africanos permitem um contato entre os filmes, os cineastas africanos e seus públicos locais. Os cineastas africanos, então, impõem-se uma escolha no momento da primeira exibição do seu filme: ou procuram por grandes festivais promocionais (Cannes, Berlin, Veneza) - neste caso estariam privilegiando uma notoriedade e uma maior visibilidade internacional para os seus filmes - ou, ao contrário, apostam num reconhecimento africano e optam por exibir seus filmes nos festivais panafricanos (Ouagadougou, Cartagena), privilegiando o público local.

Desde a resolução apresentada pelo Groupe Africain de Cinema, que se concretizou pela organização do primeiro festival mundial dedicado às artes negras, que ocorreu em 1966 em Dakar, os grandes eventos culturais na África têm sido parte dos desafios e das prioridades dos artistas, cineastas, intelectuais e governos. O Festival de Dakar se transformou, pela circunstância, num palco para a primeira exibição pública dos primeiríssimos filmes que acabavam de ser realizados por cineastas africanos.6 O festival das artes negras, é bom lembrar, constitui um marco na história da cultura africana nesse período pós-colonial. É uma espécie de coroamento e consagração do pensamento e idéias estéticas desenvolvidas pelos autores que idealizaram o movimento da negritude7. A organização de um festival dedicado à celebração das artes negras tinha um caráter altamente político, pois através desse encontro procurava-se reconciliar a África com ela mesma depois de séculos de escravidão e de colonialismo. Nesse primeiro encontro cultural em solo africano, o objetivo era duplo: reunir e juntar os artistas negros ou de origem africana com aqueles que vivem no resto do mundo, a fim de permitir uma confrontação e um retorno às fontes e afirmar a unidade da arte negra na sua diversidade. Mas, por outro lado, buscava-se enfatizar a contribuição cultural do negro. No seu discurso inaugural, o então Presidente do Senegal e um dos idealizadores da negritude, Leopold Sedar Senghor, afirmava a respeito da arte negra: “são os europeus que a descobriram, os negros africanos preferiram vivê-la, e são os artistas e escritores europeus, de Pablo Picasso a André Malraux, que a definiram”. Doravante caberia aos próprios negros africanos definirem os contornos e as características estéticas e filosóficas da arte negra.

Senghor, mais tarde no seu discurso de abertura do colóquio sobre a “arte negra na vida do povo”, declarava que o Festival das artes negras visava, antes de tudo, à “elaboração de um novo humanismo que, desta vez, inclui a totalidade dos homens sobre a totalidade de nosso planeta Terra”. Embora o evento fosse exclusivamente reservado à afirmação da força e o valor das manifestações negras e africanas, não há dúvida de que o humanismo e o universalismo que alicerçavam as teses de Senghor sobre a negritude o obrigassem, de certa forma, em conceber o festival como uma ocasião onde se realizava o seu sonho de “se chegar a uma melhor compreensão internacional e inter-racial”. Por outro lado, Senghor aproveita essa oportunidade para “afirmar a contribuição dos artistas e escritores negros das grandes correntes universais de pensamento e permitir aos artistas negros de todos os horizontes ‘confrontar os resultados de suas pesquisas’”. O cinema africano ainda não existe de fato na época em que as bases teóricas da negritude são lançadas. Porém, o ideal da negritude se encontra no centro das primeiras aventuras cinematográficas africanas. O cineasta africano, assim como os demais artistas, é convocado a ter um compromisso com a cultura local, mas sem esquecer que sua obra deve se inserir no diálogo das culturas e participar de um universalismo das civilizações que, como sabemos, será criticado por algumas correntes da teoria pós-colonialista.
BAB SEBTA, filme de Pedro Pinho e Frederico Lobo (2008)

FESPACO: um festival panafricano para um cinema africano.

O sonho de federar os cineastas africanos em torno de um mesmo evento cultural teve sua manifestação mais expressiva e simbólica na criação do FESPACO. O Festival Panafricano de Cinema e da Televisão de Ouagadougou nasce de um esforço conjugado de um grupo de cineastas africanos com o apoio do governo de Burkina Faso. É um caso raro e bem sucedido de parceria entre instâncias públicas e cineastas naquilo que poderia ter servido de exemplo de política cinematográfica na África.
Ao ajudar a criar o Festival de Ouagadougou em 1970, o governo de Burkina Faso não visava apenas dar uma vitrine internacional à produção fílmica do seu país. Pretendia transformar este evento cinematográfico no maior espaço de encontros e de intercâmbio entre os cineastas de todos os países africanos. Se é verdade que a maioria dos filmes selecionados e premiados não conseguem ser distribuído nas salas de cinema africanas, o FESPACO tem o mérito de ser popular junto dos habitantes de Ouagadougou que, em situações normais, não se empolgam com os filmes africanos: “em uma semana eles assistem, entusiasmados pelo evento, um número impressionante de filmes. Às vezes difíceis e legendados, projetados em todas as salas da capital” (BARLET, 1996).

As ambições panafricanistas do FESPACO transcendem os limites do Burkina Faso, país anfitrião. Os seus organizadores o concebem como uma grande missa para celebrar todos os cinemas e a imagem da África e da diáspora negra. É no próprio prêmio do Fespaco que muitos reconhecem claramente as ambições panafricanistas do maior festival dedicado ao cinema negro-africano sobre solo africano. Em 1972, os organizadores do Festival Panafricano do Cinema de Ouagadougou instituíam o prêmio l’Étalon de Yennenga. Este prêmio recompensa o longa-metragem que, além das suas qualidades técnicas, foi o que melhor descreveu as realidades da África. A cada edição do Fespaco, e através deste prêmio, espera-se dos cineastas africanos filmes que apresentem uma imagem justa do continente negro, isto é, uma imagem que não deva ser necessariamente angelical, mas tampouco estereotipada. Stanislas B. Meda (2006) dedicou uma tese de doutorado ao prêmio do FESPACO, com o seguinte título: « o filme africano diante da competição: análise dos prêmios Étalon de Yannenga de 1972 a 2005 ». Ele parte de uma análise dos diferentes filmes premiados para chegar a grandes características comuns a todos eles. De 1972 a 2005, diz o autor, as obras que chamaram a atenção do júri são filmes que denunciam mazelas culturais e todos os tipos de freios a qualquer desenvolvimento na África. Enquanto alguns filmes estigmatizam a ação colonial ou dos missionários, considerada como « fator de inibição dos valores positivos da África », os outros valorizam o passado glorioso de uma civilização já aniquilada pelos efeitos da dominação estrangeira e a aculturação (MEDA, 2006).

Os objetivos do FESPACO permanecem, em muitos aspectos, a defesa da expressão mais concreta do panafricanismo que domina todas as produções artísticas africanas8. Com o passar do tempo, em virtude destes objetivos federativos, o Festival abriu suas portas para produções cinematográficas provenientes da diáspora negra. Os ideais políticos e ideológicos da FEPACI e do FESPACO refletem a missão que os cineastas africanos se atribuem.

O duplo compromisso dos cinemas africanos: construção identitária nacional e defesa do panafricanismo.

Na gestação dos estados-não-nações da África assistimos a uma espécie de imbricação do modo de representação cinematográfica com os modos de produção de imagens e ideais próprios que cada governo tenta forjar no plano local. Os cinemas africanos surpreendem os projetos de construção nacional na sua gênese e na sua fase mais política e ideológica do que cultural. MUEDA, MEMÓRIA E MASSACRE, de Ruy Guerra (Moçambique, 1979/80)Este encontro começou no momento da descolonização e prosseguiu com o período das independências quando muitos novos estados africanos viram no cinema uma forma de expressão artística e política de sua soberania no plano simbólico. Foi na África do norte, particularmente no Egito e no Magrebe, que o movimento de “descolonização” da história e das consciências pelo cinema foi mais intenso. A revolução nasseriana de 1953 traduziu-se em uma radical investida nacionalista na área cultural e cinematográfica. As sucessivas tentativas de nacionalização das empresas cinematográficas no país, a partir de 1962, desembocaram na criação de um organismo geral do cinema e da televisão responsável por toda a cadeia produtiva do cinema. O cinema egípcio passou a ser administrado pública e ideologicamente pelo estado. A intervenção nacionalista do governo de Nasser no cinema egípcio inaugurou o modelo de produção estatal no país. Mas não eliminou totalmente os empreendimentos das iniciativas privadas que, desde os primeiros anos da história do cinema egípcio, permitiram a emergência de um embrião de modelo de produção industrial. Com a construção de grandes estúdios com Ramsès, o cinema egípcio destacou-se na produção de filmes de gênero musical com enredos que lembra os filmes de Bollywood e que continua fazendo a sua fama na África e no resto do Oriente Médio e em todo o mundo árabe.

Med Hondo, da MauritâniaDiferentemente do Egito (onde a nacionalização foi precedida por uma gestão privada do cinema), a história do cinema em boa parte de outros países africanos começa com um envolvimento dos jovens estados africanos na cadeia de produção e distribuição. Os primeiros africanos produzidos com a ajuda de seus governos africanos tiveram como vocação destilar imagens positivas da África e acabar com a dominação colonial pela imagem. Com Soleil Ô (1970), o diretor Med Hondo de Mauritânia realizava não somente um filme poético em forma de ode às belezas da África, bem como se livrava a uma crítica da colonização, o que confere a este filme um caráter altamente político.

Desde o início da independência, todos os jovens governos africanos priorizam a promoção do cinema em suas agendas. Alguns países começaram nacionalizando ou controlando o circuito de importação e distribuição dos filmes e programas audiovisuais.
Posteriormente organizaram o seu próprio mercado audiovisual nacional para assegurar um auto-financiamento das produções locais. O modelo vigente era, então, a gestão pública da cadeia produtiva. O sucesso da nacionalização do cinema em Burkina Faso em 1969, na Argélia e na Guiné Conakry encorajou outros estados africanos a nacionalizar o setor cinematográfico. O Senegal decretou um monopólio nacional de importação de filmes em 1974, enquanto países como Benin, Madagascar, Somália, Congo e Sudão criaram organismos públicos para organizar o mercado da importação e distribuição de filmes. No entanto, foi em Burkina Faso que a implicação do Estado na gestão da atividade cinematográfica foi mais sistemática e seguiu princípios políticos e ideológicos claros. O interesse dos sucessivos governos deste pequeno e pobre país da África ocidental por seu cinema o transformou num caso excepcional.

O cinema em Burkina Faso: um caso à parte


Historicamente o Burkina Faso é um caso atípico nas cinematografias dos países africanos subsaarianos. É o único país que mantém um esforço constante para sustentar e viabilizar a atividade cinematográfica. Na antiga Alta-Volta (hoje chamado Burkina Faso), o governo cria a partir de 1961, um ano após a independência, um setor dedicado exclusivamente ao cinema dentro do ministério da comunicação. Em agosto de 1960, realizou-se o primeiro cinejornal do país, À minuit l´indépendance (À meia-noite a independência). Como o nome indica, esse filme registrava de forma documental as cerimônias que precederam a proclamação da independência do país. Mais tarde, este primeiro setor cinematográfico estatal no Burkina Faso seria responsável por toda a gestão do cinema no país, notadamente com a produção de filmes essencialmente educativos e de divulgação agrícola e sanitária junto à população rural. Mesmo com estrutura de produção precária e com poucos técnicos, o Burkina Faso já havia realizado 26 filmes em dez anos de independência. A maioria desses filmes eram curtas-metragens (30 a 40 minutos): 7 documentários de “interesse nacional” e 19 filmes pedagógicos. (VIEYRA, 1975)

Em 1970 o estado participa intensamente do mercado cinematográfico do país. Depois de um desentendimento com as empresas de distribuição francesas (Secma e Comacico), o governo da época nacionaliza todo o setor, inclusive, passa a controlar as salas de cinema, antes de criar uma empresa nacional de distribuição e comercialização dos filmes (Sonavoci, depois transformada em Sonacib). Essa gestão pública do circuito de exibição naquela época se traduziu por um esforço de melhoramento das condições das salas de cinema existentes no país. As tentativas de elaborar uma política de auto-gestão do cinema nacional contribuíram para fazer do Burkina Faso um caso excepcional na África negra. Ao exonerar os filmes africanos de qualquer tributação, o governo conseguiu aumentar em 25por cento as receitas do setor. Os impostos cobrados dos filmes estrangeiros permitiram “a este país pobre de ter um dos cinemas mais dinâmicos do continente” (BARLET, 1996). Cabendo à empresa estatal, Sonacib, repassar 15por cento deste imposto a um Fundo de Promoção e de Extensão da atividade. Este fundo foi responsável, durante muito tempo, pela produção de vários filmes do Burkina Faso. Mesmo com as recentes dificuldades da Sonacib devido à queda da receita de bilheteria nos cinemas, este modelo de controle público do setor cinematográfico distingue o Burkina Faso do restante da África ocidental, onde todo o circuito de distribuição e de exibição continua nas mãos de grupos estrangeiros (libaneses e franceses).

EU, UM NEGRO, Jean Rouch (1959)
Nos anos 80, com a chegada de um militar no poder e a instauração de uma revolução cultural9, os esforços do governo de Burkina Faso com o seu cinema tomam, muitas vezes, dimensões ideológicas mais profundas. Com o governo revolucionário instaurado pelo presidente-militar Thomas Sankara, o cinema nacional, e juntamente com ele, o FESPACO, passou a ter maior ressonância, pois correspondia aos anseios políticos e ideológicos do momento, isto é, uma forma de resistência àquilo que se considerava ainda como resquícios do colonialismo e do imperialismo ocidental francês na África, mas também um modelo de integração cultural dos povos africanos. Hoje, os esforços do Estado de Burkina Faso estão voltados para a formação de profissionais do cinema e do vídeo, notadamente, com a criação do Instituto Regional da Imagem e do Som (IRIS). Um dos raros centros de formação audiovisual na África ocidental, recebe estudantes e professores provenientes de todos os países da sub-região.
Esta implicação ideológica do Estado de Burkina Faso com o cinema o transformou no palco privilegiado de grandes encontros realizados entre cineastas e intelectuais para debater medidas e resoluções que viabilizassem a adoção de políticas cinematográficas na África. Não é à toa, portanto, que este país foi palco de lançamento das bases da criação da federação panafricana dos cineastas. A FEPACI é, até hoje, a máxima concretização do sonho de panafricanismo que anima os pioneiros do cinema africano. O cinema exige um trabalho coletivo, é um processo de criação conjunto. Os cineastas africanos entenderam cedo que poderiam ser parceiros na discussão de diretrizes e políticas junto aos governos. A história do cinema africano é pontuada de experiências associativas que exprimem esta vontade de superar os obstáculos e participar de processos políticos de forma coletiva. O esforço dos cineastas africanos de se organizarem no período da descolonização traduz, como lembra Clément Tabsoba, “o engajamento dos cineastas do continente negro para um combate anti-imperialista (TAPSOBA, 2005)”. Paulin Soumanou VieyraPaulin Soumanou Vieyra e outros cineastas ao criarem o “Groupe Africain de Cinema” em 1952 tinham um objetivo claro: fazer filmes africanos, mas, sobretudo, insistir na importância da cultura no combate pela independência. O grupo desempenhou um papel determinante na redação de textos e resoluções para o desenvolvimento da arte na África (TAPSOBA, 2005). Muitas dessas resoluções proclamavam a necessidade dos africanos apropriarem-se do cinema como meio de despertar as consciências e incentivava a criação de um festival sobre a arte africana. Preocupado com a existência de verdadeiras medidas de acompanhamento do jovem cinema africano, o grupo chegou a preconizar, durante o primeiro colóquio sobre a arte negra, a criação de um organismo inter-africano de cinematografia que teria sua sede em Dakar (Senegal). Esse organismo estaria encarregado da organização regular de encontros entre profissionais africanos da área, da formação de cineastas, técnicos e comediantes africanos, e da adoção de medidas que favorecessem o desenvolvimento de todos os setores da indústria cinematográfica. A organização das “Jornadas Cinematográficas de Cartagena” (JCC) em 1966 na Tunísia e da “Semana do Cinema Africano” em 1969, que lançou as bases do FESPACO em 1972, são concretizações de algumas recomendações do Grupo de Vieyra à classe cinematográfica africana. As ações do Groupe Africain de Cinema englobavam reivindicações políticas e ideológicas, como também propostas concretas endereçadas aos governos africanos para o empreendimento de consistentes políticas cinematográficas na África. O grupo de Vieyra não atuou isoladamente. Seus esforços estiveram coordenados e alinhados ao combate político e estético dos poetas e escritores africanos e da diáspora pela emancipação e revalorização da imagem do povo negro.

Os cineastas organizam-se em torno de uma entidade jurídica a partir de 1970 com a criação da Federação Panafricana dos Cineastas (FEPACI), resultante dos ideais políticos e panafricanistas do Grupo de Cinema africano. Essa entidade dá um passo adiante no engajamento coletivo do cinema africano que inclui tanto os cineastas da África negra quanto do Maghreb. O FEPACI retoma o discurso do Grupo de Vieyra pela adoção de políticas cinematográficas na África. Muitas decisões de nacionalização do cinema por alguns governos foram tomadas com o incentivo e o aval ideológico da Federação dos cineastas africanos. A FEPACI não somente preconizava uma maior organização entre os cinemas africanos, bem como recomendava um maior envolvimento dos estados africanos no setor cinematográfico.

Os cinemas africanos e o panafricanismo

FESTIVAL PANAFRICANO DE ARGEL, de William Klein (Argélia 1969) Não somente todas as gerações de cineastas africanos apresentam uma diversidade temática e estética em suas obras, como seus trabalhos são reveladores de uma descontinuidade nas respostas frente aos desafios políticos e sociais ao longo da história da África. Se falamos de « gerações cinematográficas » é mais pelo compromisso com as questões de construção identitária e nacional do que propriamente por questões de divergência de ordem puramente estética. Independentemente da forma ideológica ou pragmática como elas encaram a relação ambígua mantida com a França e a herança colonial e neo-colonialista, todas estas gerações de cineastas africanos têm em comum um compromisso com a questão da construção da identidade nacional. Esta questão é problematizada de forma mais ou menos intensa dependendo da geração e época; mas a questão perpassa todos os filmes produzidos do norte ao sul da África. Às vezes a questão da valorização das culturas locais transborda o âmbito nacional para desaguar na perspectiva da construção do panafricanismo ou no nacionalismo árabe-muçulmano.

Que tipo de esclarecimento e problematização o cinema feito na África traz ao debate sobre as implicações diretas e indiretas no processo de construção da nação? À primeira vista a resposta parece difícil por várias razões. Primeiro, porque a atividade cinematográfica é ainda incipiente e quase inexistente em muitos países africanos. Por outro lado, se a África não é uma nação, os países que a compõem estão longe de se constituírem em entidades nacionais plenas. Conceber os filmes africanos10 em termos de cinematografias nacionais pode parecer algo excessivo na medida em que este conceito pressupõe a existência de um projeto consensual de construção de valores comuns em torno dos quais as comunidades étnicas se reconheçam. Como sabemos, após a descolonização da África, à emergência de novos estados não sucedeu automaticamente uma consciência nacional ou nacionalista a ponto de fragilizar as clivagens étnicas. Ao contrário, a conquista da soberania e do direito à auto-determinação na África deu lugar a movimentos de reivindicações identitárias de cunho étnico-tribal no interior de cada Estado. Entretanto, se partimos da premissa que o cinema, como as outras formas artísticas - independentemente da quantidade de filmes produzidos por ano - tem um compromisso particular com o processo de construção da consciência nacional, há de se procurar nos filmes africanos indícios daquilo que Frodon chama de “projeção nacional” (FRODON, 1998). A apropriação do cinema pelos povos africanos nos faz vislumbrar uma outra forma de problematização da figuração da nação pelo cinema?
O compromisso do cinema africano com a construção de uma identidade cultural deve ser procurado para além dos limites das fronteiras artificiais e fictícias herdadas da colonização e que definem os contornos dos estados modernos africanos. Diante de uma realidade desoladora e desesperadora, a África vive ou sobrevive graças aos seus mitos fundadores. Esse passado mirabolante e glorioso narrado pelos griots11 funciona como uma estratégia de superação e de revanche ao colonialismo. As grandes epopéias transmitidas pela tradição oral e pela literatura servem de refúgio e de matéria-prima para a construção de uma identidade cultural local, mas também continental. As raízes do sonho do panafricanismo (sempre renovado e fracassado) devem ser buscadas neste elan coletivo e quase natural dos artistas de todos os países africanos em se apropriar dos mitos coletivos na sua criação artística. Os grandes impérios e personagens da era pré-colonial não têm mais fronteira. Na sua dimensão cultural, os cineastas realizam, no panafricanismo, aquilo que os governantes não conseguem concretizar politicamente: a integração da África a partir de velhos mitos e novos valores em que se reconhecem todos os africanos, independentemente de sua nacionalidade. O que leva muitos autores a dizer que o lugar da cultura africana, nas suas diferentes manifestações e expressões (música, literatura oral ou escrita, artesanato e artes, estética e obras criativas), foi sempre contribuir aos ideais coletivos, porém sem negar uma função de humor, de jogo e de divertimento.

Enquanto no ocidente e nas sociedades modernas pós-capitalistas as grandes narrativas ficcionais mecânicas continuam relegando as lendas e a própria literatura à segundo plano, nas sociedades tradicionais africanas elas são os substratos da tradição oral que alimentam os imaginários e a narrativa cinematográfica. O engajamento político e panafricanista do cineasta não se traduz apenas por uma volta incessante e esquizofrênica para o passado, mas o situa também no presente. Nos filmes africanos os temas fortes da atualidade são abordados sem complacência. O espaço fílmico funciona de maneira genérica e simbólica. A representação de um fato e de uma realidade sócio-política em um determinado país não vale apenas para este país, ela concerne simbolicamente a todos os países africanos. Os filmes Andanggaman (Roger Gnoan M’Bala, 2000) e Guimba- Um tirano, uma época (Guimba, un tyran une époque) (Cheick Oumar Sissoko, 1995) representam esta situação. GUIMBA, UM TIRANO, UMA ÉPOCA, de Cheick Oumar Sissoko (1995)Em Guimba, Cheick Oumar Sissoko recorre a lenda de um chefe tradicional tirano (Guimba) para problematizar uma das pragas da maioria dos estados africanos: a tirania hereditária instaurada de forma implacável pelos dirigentes africanos depois das independências. A história de dominação cega que Guimba e seu filho impõem aos seus próprios congêneres acontece numa cidade do Sahel, mas poderia ser transposta a qualquer país da África. Em Andanggaman, Roger Gnoan M´Bala vai mais longe. Ao revisitar o tema da escravidão, o cineasta de Costa do Marfim não se contenta com uma representação lamuriante desse momento doloroso da história da África. Ao contrário, ele põe em cena a controvertida participação dos chefes tribais no tráfico negreiro. Esta reconstituição histórica põe em questão, de forma crítica, a responsabilidade dos chefes de Estados africanos.
O engajamento panafricanista dos cineastas (que se afirmou em 1969, de forma programática, através da criação da FEPACI) se reflete, portanto, na diversidade dos temas abordados e dos espaços geográficos que servem de pano de fundo às ações. Esta tendência é mais nítida, inclusive, nos trabalhos da nova geração de cineastas africanos que não hesitam em situar a ação de seus filmes em vários países. Os dois documentários realizados em câmera digital pelo senegalês Moussa Touré se situam neste viés. o sengalês Moussa Touré que dirigiu 5x5 (2005)No filme 5x5 (Moussa Touré, 2005), é a poligamia que é o assunto principal. Toda a intriga ocorre num cortiço modesto onde a câmera explora, sem cair no denuncismo, as facetas desta prática ainda vigente e comum a vários países africanos. No seu primeiro documentário também rodado com câmera digital, Nous sommes nombreux (Somos numerosas, 2003), Moussa Touré aborda a realidade das mulheres congolesas estupradas durante a guerra. Para ele, como para a maioria dos cineastas africanos da jovem geração, a câmera digital proporciona uma maior facilidade para filmar, mas, sobretudo, uma maior facilidade de se deslocar e capturar a realidade africana em todas as suas nuances e nos diversos lugares do continente.

Conclusão

A economia cultural e particularmente a economia política do cinema ainda não fazem parte da realidade dos países africanos. Ora, num mundo globalizado onde há pouco espaço para as culturas e expressões artísticas dos países periféricos, urge para os governos africanos ganhar outra batalha por sua emancipação cultural. Para isso precisam se dotar de verdadeiras políticas culturais e inserir o cinema entre suas prioridades.
Depois da primeira década das independências, o movimento de apoio à emergência de cinematografias definitivamente engajadas na luta pela afirmação de uma identidade própria sofreu uma grande inflexão. As singularidades dos cinemas africanos encontram-se nas contradições que pontuam a própria história das políticas cinematográficas na África. As medidas de acompanhamento da produção e circulação dos filmes na África é uma longa história de sucessivas rupturas no esforço de apoio público às produções locais. Em alguns países, a aventura das televisões públicas africanas fez declinar os esforços governamentais de apoio ao cinema nacional. A partir daquele período, a produção cinematográfica começou a estagnar e vive desde então uma paralisia.
A salvação das cinematografias africanas vem de fora da África. Enquanto as televisões públicas se transformaram num instrumento político de propaganda e desinformação, os cinemas africanos rumam em direção ao cinema de autoria graças a diversas formas de ajuda internacional que sustentam os esforços de produção e de distribuição (OKALA, 1999). Paradoxalmente é o ocidental, através de seu olhar, das suas teorias, de seus festivais e da sua crítica cinéfila, seus mecanismos de apoio aos cineastas africanos e seus festivais, que vai fazendo a promoção das produções cinematográficas provenientes do Continente Negro. Assim, para muitos autores, a aventura cinematográfica na África negra não passa de uma busca de identidade própria e de reapropriação da sua própria realidade. Fazer cinema na África procede, antes de tudo, de uma problemática existencial que envolve o olhar, isto é, uma reconquista do olhar sobre si (BARLET, 1996). Este esforço implica uma reavaliação do papel dos festivais internacionais e panafricanos na promoção dos filmes africanos.

Referência bibliográfica:
BARLET, Olivier. Les cinéma d´Afrique noire : le regard en question. Paris : éditions L´Harmattant, 1996. p.228, 255, 278, 279, 280, 281
………………………………“Le regard Occidental sur les images d´Afrique » in Africultures nº1 (outubro 1997), dossiê « La critique en questions » Paris : l´Harmattan
………………………. “L´ Exception Africaine ». In Africultures n°45, dossiê «Cinéma : l’ exception Africaine » Paris : l´Harmattan, 2002
………………………… « Postcolonialisme et cinéma : de la différence à la relation », in Africultures n°28, (maio 2000), dossiê « Postcolonialisme : inventaire et débats », Paris : L’Harmattan, p. 56-65.
………………………….. « Les nouvelles stratégies des cinéastes africains », Paris. in Africultures n°41, dossiê « L’Africanité en questions », out. 2001, Paris : L’Harmattan, p.69-76.
–––––––– « Les Nouveaux paradoxes des cinémas d’Afrique noire », in Africultures 65 (Outubro 2005), Paris : L’Harmattan , p. 39–40.
BARROT, Pierre. Nollywood : le phénomène vidéo au Nigeria. Paris : l´Harmattan. Collection « Images Plurielles ». 2005
BOUGHEDIR, Ferid. « Cinémas nationaux et politiques cinématographiques en Afrique noire : Du rêve Sud-Sud à la défense de la diversité culturelle ». In Afriques 50: Singularités d’un cinéma pluriel, Paris : L’Harmattan, Collection “Images plurielles”, 2005
CONVENTS, Guido. L’ Afrique? Quel cinéma ? Un siècle de propagande colonial et de film africains. Envers-Belgique : Éditions EPO, 2003, p. 333-338
DELAFIN, Antoinette. « Des africains sur la Croisette » publicado no dia 22/05/2007 no site RFI: http://www.rfi.fr/actufr/articles/089/article_52046.asp e acessado no dia 27 de Junho de 2007.
DIAWARA Manthia. « La littérature africaine et l’Expédition rwandaise ». In Africultures, n°48 , dossiê « Afrique et art contemporain ». Paris : l´Harmattan, 2002
FRODON, Jean-Michel. La Projection Nationale: Cinéma et Nation. Paris: Editora Odile Jacob, 1998
…………………………….(org.): Au sud du cinéma: Films d´Afrique, d´Asie et d´Amérique latine. Paris: Cahiers du cinéma, 2004.
GARDIES, André. Cinéma d´Afrique noire francophone: l´espace miroir. Paris: Éditions l´Harmattan, 1989.
HALL, Stuart. “Da Diáspora: identidades e mediações culturais.” Belo Horizonte: editora UFMG. 2003
KESSLER, Frank. “Le cinéma des premiers temps et la construction des faits spectatoriels”. “Réseaux: Cinéma et Réception”. Paris, vol18, N.99, 2000, p.75-95
LEQUERET, Elisabeth. “Le cinéma Africain: un continent à la recherche de son propre regard”. Paris: Cahiers du Cinema (Les Petits Cahiers), Scérén-CNDP. 2003.
MEDA, Stanislas Bemile. Le Film Africain face à la Competition: Analyse des Prix ÉTALON DE YENNENGA de 1972 À 2005. Tese de doutorado defendida na IUT Michel de Montaigne-Université de Bordeaux 3, no dia 15 de Dezembro de 2006.
ODIN, Roger (orgs). “La question du Public, approche sémio-pragmatique”. “Réseaux: Cinéma et Réception”. Paris, vol18, N.99, 2000, p.51-71
OKALA, Jean-Tobie, «Les télévisions Africaines sous tutelle ». Paris: L´Harmattan, 1999
TAPSOBA Clément, «Cinéastes d’Afrique noire : parcours d’un combat révolu». in Afriques 50: Singularités d’un cinéma pluriel, Catherine Ruelle(org.). Paris : L’Harmattan, Collection “Images plurielles”, 2005, p. 147-151.
VIEYRA, P. Soumanou. Le cinéma Africain : des origines à 1973. Paris : ed. Présence Africaine, 1975, p. 324

Publicado originalmente em Cinema no Mundo: indústria, política e mercado, de Alessandra Meleiro (Org.)


1. Neste aspecto didático, é bom citar o caso exemplar do Festival des Cinémas d’Afrique du pays d’Apt (Vaucluse-França) que, além de incluir na sua programação alguns filmes selecionado no FESPACO, organiza debates e encontros entre cineastas africanos e o público jovem das escolas.
2. É bom lembrar que foi no Festival de Cannes que foram revelados estes dois grandes cineastas africanos, notadamente graças aos seus respectivos filmes Brightness (Yeelen) em 1987 e The Law (Tilaï, 1989) em 1990
3. Citado por Stuart Hall (2003), a respeito da re-invenção do conceito de nação pela diáspora caribenha na Inglaterra.
4. 4. Os estudos da recepção de viés semio-pragmático têm se esforçado para destacar a importância destas determinações extra-textuais sobre a atividade de leitura fílmica.
5. Este conceito é utilizado por Yuri Tsivian para analisar as particularidades culturais que informam a leitura do fenômeno cinematográfico na Rússia no período do primeiro cinema.
6. Havia 26 filmes inscritos e representando 16 países africanos, num total de 135 filmes provenientes de 29 outros países.
7. Conceito e movimento de reivindicação e de afirmação dos valores culturais negros. O termo negritude foi lançado pelos poetas Leopold Sedar Senghor, Aimé Césaire e Leon Damas.
8. Além, do FESPACO, é bom mencionar o caso do festival do cinema africano de Khouribga, que está na sua décima edição e acontece no Marrocos. É um festival que nasceu da tradição do cineclubismo na África.
9. Em 1984, em reação àquilo que era considerado marca do colonialismo, o nome do país, Alta Volta, muda para Burkina Faso (Terra dos homens íntegros, em língua local).
10. A categoria « cinemas da África » se refere ao conjunto da produção cinematográfica dos 54 países africanos, ao trabalho de mais de 850 diretores (entre os quais mais de 430 realizadores egípcios) e a um total de mais de 8 800 filmes. Este censo é da mediateca de Ciné3Mondes (uma das maiores fontes de documentação sobre o cinema africano online). http://www.cine3mondes.fr/
11. Espécie de trovador e narrador de epopéias: memória viva nas culturas orais da região do Sahel.

por Mahomed BambaAfroscreen | 4 Julho 2010 | cinema, cinema africano, Fespaco, festivais