quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Sobre Kieslowski




















Em continuidade ao itinerário Krzystof Kieslowski, procurei aproximar-me o mais perto possível das inquietações do sagrado. Desta vez simularei uma entrevista com uma das estudiosas da sua obra. Nesta proposta parcial busquei e consegui através do Programa Comut da UFBA, localizar um trabalho de quem quis dedicar-se a pesquisar com maestria o inquieto e perseverante realizador que deixou um legado para a sétima arte (1). Segue uma breve conversa.

BLOG_ Professora qual a problemática da obra de Kieslowski, existe uma questão chave?

Andréa Martins_ Krzystof Kieslowski é um cineasta de longa tradição documentária. Entre as décadas de 60 e 70, ele realizou uma média de trinta documentários para a televisão polonesa e alguns vídeos. Com L’Amateur, seu primeiro longa metragem de ficção (1979), dá início a uma nova fase na sua carreira que culmina com a realização da trilogia: Trois couleurs: Bleu, Trois couleurs: Blac e Trois couleurs: Rouge. Todos os seus filmes ficcionais, do mais antigo aos mais recentes, se articulam em torno da mesma questão perturbadora: Como “dar a ver”, como se utilizar da imagem sem impor ao espectador o lugar de um juiz, o lugar de um voyeur? Como se utilizar da imagem sem que ela imponha uma verdade?

BLOG_ Sabendo que sua origem inicial se realiza no campo do documentário como se constrói este processo de criação?

Andréa Martins_ Kieslowski se vê constantemente tomado por questões perturbadoras e assim se expressa: “(...) quando filmo um longa metragem, sempre sei como ele terminará. Quando filmo um documentário, eu ignoro. E isto é apaixonante: Ignorar como terminará o plano que estamos filmando e, ainda, o filme inteiro. Para mim, o documentário é uma forma de arte superior à forma ficcional, pois a vida é bem mais inteligente que eu. Ela cria situações bem mais interessantes do que as que eu possa inventar...” Não é àtoa que nosso cineasta nunca se contenta com um determinado final para os seus filmes de ficção: roda geralmente vários términos.

BLOG_ As possibilidades ilimitados de términos (nos documentários e filmes de ficção), em sua obra, podem ser consideradas um recurso estilístico?

Andréa Martins_ Não se trata de um recurso estilístico, apenas. O que está em questão no conjunto da obra está para além destes artifícios de construção. Somente para o filme La Double Vie de Veronique, ele afirma ter pensado em, pelo menos, quinze finais diferentes e só não os rodou por falta de tempo. Para Kieslowski, “é só na montagem que se sabe qual é a alma do filme, e não antes, na filmagem”.

BLOG_ Gostaria de insistir nesse ponto, o da criação das imagens. Existiria uma melhor imagem para expressar um ponto de vista para este realizador?

Andréa Martins_ O problema da escolha dos finais em Kieslowski é o problema da imposição de um sentido, de escolha de um significado que uma imagem pode implicar. Nosso cineasta se recusa a organizar a imagem em torno de uma unidade significativa qualquer. Sua imagem diz pouco, quase nada. É necessário que imaginemos que façamos nossas hipóteses e nossos próprios finais. Esta recusa em seguir uma lógica narrativa determinada não se reflete apenas na possibilidade de vários finais. As trajetórias de cada personagem também estão sempre expostas a uma eventualidade qualquer, a um encontro qualquer que subverte a retidão de seus percursos e faz oscilar suas certezas mais arraigadas.

BLOG_ Alguns apressados comentaristas costumam confundir esta abertura para diferentes percursos com algo tipo “go to pelo acaso” sem perceber que há uma recusa ao fechamento dentro de um esquema lógico formal e até mesmo ideológico e moral.

Andréa Martins_ É. Na verdade não se trata de captar acasos, mas, antes, de um olhar que está absolutamente atento aos fios invisíveis, aos sinais que se tecem no decorrer de cada trajetória, no movimento de cada percurso narrativo.

BLOG_Em 1989 Kieslowski realizou dez médias-metragens para a televisão polonesa, a série O Decálogo. Pouco divulgado no Brasil, embora já distribuído em DVD, parece mostrar a recusa sistemática em relacionar cada mandamento a um filme particular. Apresenta-se, também nesta série, a escolha pela problematização, instância fundamental no movimento de sua obra.

Andréa Martins_Ao invés de ilustrar em imagens os mandamentos, Kieslowski transforma estas dez injuções em dez problemas dez vezes formulados. Não há uma única imagem a sugerir o bem e o mal, o justo ou o injusto, a submissão ou a transgressão à lei. Nosso cineasta não pensa estes dualismos fáceis. As condutas a escolher se esboçam à medida que cada personagem se vê confrontado com situações perturbadoras, inquietantes, terríveis e, a partir daí que começam os problemas... Como respeitar os princípios morais? Como respeitar as leis, os mandamentos?

BLOG_Professora, em Três Proposições para uma Imagem: A Trilogia de Kieslowski, a senhora diz que Kieslowski põe em relevo as idéias de liberdade, igualdade e fraternidade oriundas do século XVIII para pensá-las hoje, dentro de uma Europa “sem fronteiras”. Gostaria de continuar na próxima postagem esta temática na tentativa de detalhar mais o significado desses valores na obra de Kieslowski e seu entendimento de um novo mapeamento da Europa (2).

Andréa Martins_Aguardando seu contato via e-mail para avançar, mesmo porque a questão da representação cinematográfica na perspectiva do tempo e não da estrutura, através do estudo específico da trilogia de Kieslowski, sequer foi, ainda, mencionada (2).

Notas:
1.O título do trabalho consultado, a seguir, Três Proposições para Uma Imagem: A Trilogia de Kieslowski apresentado em 1995 à Universidade Federal do Rio de Janeiro por Andréa França Martins, na qualidade de Dissertação de Mestrado, foi publicada, posteriormente, pela Editora Sete Letras, RJ.

2.ATENÇÃO: esta entrevista é pura ficção, qualquer semelhança com dados da realidade devem ser recusados. O contato com a autora do trabalho, logo que possível, transformará o desconhecimento da obra de Kieslowski “na construção de um pensamento onde as certezas mais arraigadas e incorrigíveis desfalecem”.