sábado, 27 de junho de 2009

















O visual é essencialmente pornográfico, isto é, sua finalidade é a fascinação irracional, o arrebatamento; nessa ótica, pensar seus atributos transforma-se em algo complementar se não houver disposição de trair o objeto; os filmes mais austeros, por sua vez, extraem por força sua energia da tentativa de reprimir os próprios excessos (em vez de tirá-la do esforço mais ingrato de disciplinar o espectador). Assim, filmes pornográficos são apenas a potencialização de uma característica comum a todos os filmes, que nos convidam a contemplar o mundo como se fosse um corpo nu.

Certamente sabemos disso com maior clareza hoje, porque nossa sociedade começou a nos apresentar o mundo-agora, em grande parte, um conjunto de produtos de nossa própria criação- exatamente como um corpo, que se pode possuir com os olhos e de que se podem colecionar as imagens. Se ainda fosse possível uma ontologia desse universo do visual, do ser como algo acima de tudo visível, com os outros sentidos derivando dele; todas as lutas de poder e de desejo têm de acontecer aqui, entre o domínio do olhar e a riqueza ilimitada do objeto visual; é irônico que o estágio mais elevado da civilização (até agora) tenha transformado a natureza humana nesse único sentido multiforme, o qual, com toda certeza, nem mesmo o moralismo pode ainda querer restringir. Este livro defenderá a idéia de que a única maneira de pensar o visual, de inteirar-se de uma situação em que a visualidade é uma tendência cada vez mais abrangente, generalizada e difundida é compreender sua emergência histórica. Outros tipos de pensamento precisam substituir o ato de ver por outra coisa; apenas a história, entretanto, pode imitar o aprofundamento ou a dissolução do olhar ( 1).

Tudo isso para dizer que filmes são uma experiência física e como tal são lembrados, armazenados em sinapses corpóreas que escapam a mente racional. Baudelaire e Proust mostraram-nos como as memórias são na verdade parte do corpo, mais próximas do odor ou do paladar que da combinação das categorias de Kant; ou talvez fosse melhor dizer que memórias são, acima de tudo, recordações dos sentidos, pois são os sentidos que lembram, e não a “pessoa” ou a identidade pessoal. Isso pode acontecer com livros, se as palavras forem suficientemente sensórias; mas sempre se dá com filmes, quando já vimos muitos e, inesperadamente, revemos um. A única coisa que consigo me lembrar sobre uma ida ao Exeter Theater em Boston, há mais de vinte anos, para assistir a um filme soviético, é de um desapontamento consciente; quando o vi novamente na semana passada, afloraram gestos nítidos, que me haviam acompanhado todo esse tempo sem que eu soubesse; meu primeiro pensamento-como pude esquecê-los?-é seguido pela conclusão proustiniana de que eles tiveram de ficar ignorados ou esquecidos para que assim pudessem ser lembrados.

Mas a mesma coisa se dá com o tempo real, na passagem de um dia para outro; as imagens do filme da noite anterior marcam a manhã, impregnando-a de lembranças semiconscientes, de modo a despertar um alarme moralizador; como o visual de que é parte, mas também essência e concentração, um emblema e todo um programa, o cinema é um vício que deixa suas marcas no próprio corpo. Assim, é inconcebível que uma atividade que ocupa uma parte tão grande em nossas vidas se restrinja a uma disciplina especializada, bem como que se pretenda alguma vez escrever sobre ela sem uma grande dose de auto-indulgência.

Texto de Fredric Jameson. Introdução in Marcas do Visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

Notas:
(1)O arrebatamento, a fascinação, a contemplação, o possuir com os olhos, eis algumas das ações que Fredric Jameson assinala na introdução deste livro que trata do universo visual, centrando na idéia de que para pensar sobre a visualidade hoje como tendência abrangente na sociedade contemporânea, requer percebê-la na sua emergência histórica. Neste sentido, a memória dos filmes que assistimos durante toda a nossa vida é um legado que trazemos, por vezes até ocultos, mas que florescem ocasionalmente acompanhando-nos semiesqueçidos, pois diz êle, o cinema é um vício que deixa suas marcas no próprio corpo.

(2)A foto do post foi-me enviada por um amigo que passeando a trabalho pelo continente europeu e sabendo do meu interesse pela filmografia de Pedro Almodóvar, quis me dizer o quanto seus filmes são assistidos e admirados. Neste cinema observa-se o cartaz do filme Volver.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Mostra Marguerite Dura: Impressões























Em período de festas juninas regionais a Sala Walter da Silveira ousa apresentar a Mostra Marguerite Duras e a Mostra Hans-Jürgen Syberberg, entre outros destaques, a merecer atenção dos amantes da sétima arte (1).

Assistindo O homem atlântico (L’ homme atlantique, Fra, 1981) e As crianças (Les enfants, Fra, 1984) quando da presença do estudioso da filmografia de Marguerite Duras, Professor Maurício Ayer, várias perguntas vão tecendo e provocando conhecimento e interesse pela obra escrita e pelas inéditas películas daquela que escreveu as imagens de dezenove filmes, nove dos quais incluídos na mostra. A programação completa da mostra encontra-se, também, no Setaro’s Blog. Inexplicavelmente, não encontramos na imprensa local a devida cobertura merecida. Enigmas baianos?

Neófita nesta filmografia, porém, atenta a sua itinerância na terra, considero pertinente ater-me ao filme que será exibido hoje:
India Song (Fra, 1974, 120 min). Eis a sinopse pela própria autora.

As pessoas às vezes dizem que minha obra é feita como a música é feita. Se eu posso ter uma opinião, eu acho que é verdade. Pelo menos para India Song é verdade. Marguerite Duras.

É a história de um amor, vivido nas Índias, nos anos 30, numa cidade superpopulosa às margens do Ganges. Dois dias dessa história de amor são evocados. A estação é a da monção de verão. Quatro Vozes – sem rosto – falam dessa história.
As Vozes não se dirigem ao espectador ou ao leitor. Elas são de uma total autonomia, falam entre si. Não sabem que são ouvidas. As Vozes conheceram, leram, a história desse amor há muito tempo. Algumas se lembram melhor que outras. Mas nenhuma se lembra completamente, e, tampouco, nenhuma a esqueceu por completo. Não se sabe em nenhum momento quem são as Vozes. No entanto, pela maneira que cada uma tem de se esquecer ou de se lembrar, elas se fazem conhecer mais do que por sua identidade.
O enredo é uma história de amor imobilizada na culminância da paixão. Emtorno dela, uma outra história, a do horror – fome e lepra mescladas na umidade pestilenta da monção – imobilizada também num paroxismo cotidiano.
A mulher, Anne-Marie Stretter, esposa de um embaixador da França nas Índias, agora morta – seu túmulo está no cemitério inglês de Calcutá –, como que nasceu desse horror. Ela fica em meio a isso com uma graça onde tudo se abisma, num inesgotável silêncio. Uma graça que as Vozes precisamente tentam rever, porosa, perigosa, e perigosa também para algumas das Vozes.
Ao lado dessa mulher, na mesma cidade, um homem, o Vice-cônsul da França em Lahore, em desgraça em Calcutá. No seu caso, é por sua cólera e pelo assassinato que ele se une ao horror indiano. Uma recepção na Embaixada da França terá lugar – durante a qual o Vice-cônsul maldito gritará seu amor por Anne-Marie Stretter. Isto, diante dos olhos da Índia branca. Depois da recepção, ela irá às ilhas da foz do Ganges pelas estradas do Delta.

Notas: (1). A programação completa encontra-se em www.dimas.ba.gov.br e a curadoria da mostra em Salvador-Bahia está sob a responsabilidade de Adolfo Gomes, estudioso cineclubista, dedicado e conhecedor do ofício.

(2) Maurício Ayer. Filmografia Comentada de Marguerite Duras. In: Marguerite Duras Escrever Imagens, Rio de janeiro, 2009. A foto que ilustra o post encontra-se no catálogo da mostra.