sexta-feira, 2 de maio de 2008

Cultura e Multiculturalismo no Cinema.















Contra a Parede, 2004.

Retomo a postagem hoje para comentar leituras que termino de realizar sobre cinema. A primeira delas, ainda pouco explorada, porém consultada com intenção de rever mais vezes, trata-se do trabalho de Ella Shohat e Robert Stam. (1). Transcrevo a seguir a apresentação do livro, para em seguida colocar algumas questões que se relacionam com a temática da Cultura e dos Estudos Culturais, atividade que venho acompanhando através dos filmes que tenho assistido, e mais recentemente, pela presença em aulas da Pós-Graduação da Facom/Ufba voltada para o tema.

MULTICULTURALISMO E HEGEMONIA EM DEBATE
Leitura obrigatória para pesquisadores, estudantes e para o público interessado por trabalhos que se colocam no limite entre diversas áreas do saber, Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação, de Ella Shohat e Robert Stam, é enfim traduzido para o português, após ter sido lançado há aproximadamente uma década nos Estados Unidos. Shohat e Stam, ambos professores em universidades norte-americanas, possuem o mérito de trabalhar com rigor, inteligência e elegância incomuns. Interdisciplinar sem ser banal, erudito sem ser pedante, o livro consegue impor clareza a uma discussão que por vezes parece “batida”. O Multiculturalismo permeia a discussão. Termo problemático, esta é uma palavra que pode se tornar gasta e esvaziada em debates acadêmicos, jornais ou revistas. Mas não se engane o leitor: para além da moda, o tema é urgente e o livro chega em boa hora, pois numa sociedade de economia globalizada, vale dizer, neoliberal, ou as diferenças são estrategicamente eliminadas ou então são assimiladas, bem embaladas e colocadas à venda no “shopping center” das coisas exóticas. Com um aparato crítico que perpassa múltiplas áreas do saber (teoria da comunicação, antropologia, história, sociologia, psicanálise etc...), e ancorados no domínio e conhecimento sólidos dos discursos e imagens produzidas ao longo do século 20, quando o cinema se tornou um meio de comunicação muito popular, os autores analisam e desvendam lugares comuns do nosso imaginário audiovisual, identificando nele valores morais, políticos e estéticos, produzidos, representados, introjetados e, por fim, naturalizados. É, aliás, por causa da naturalização de tais valores que Shohat e Stam dedicam tantas páginas a esta crítica. Este não é um livro de cinema no sentido estrito do termo (de teoria ou história do cinema), mas um livro sobre cinema num sentido amplo, na medida em que se vale do cinema (inclusive da teoria e da história do cinema) para fazer a genealogia e principalmente a crítica da hegemonia de determinadas idéias (ou representações), que determinaram o jeito de ser e de pensar da sociedade contemporânea, no âmbito da cultura popular, abrangendo ainda meios como a propaganda e a televisão. No debate sobre a cultura e a política, o livro refaz a história das idéias que formaram o imaginário contemporâneo, ou das idéias que venceram. Um exame exaustivo e também uma boa reflexão são feitos acerca dos modelos de representação e auto-representação produzidos pela assim dita sociedade ocidental, além do modo como estes modelos se tornaram cada vez mais tirânicos e excludentes em relação aos modelos ditos periféricos. No primeiro e segundo capítulos, “Do eurocentrismo ao policentrismo” e “Formação do discurso colonialista”, os autores tentam esclarecer quando e como a idéia de uma sociedade ocidental surge. Partem da análise do nascimento do mito de uma cultura superior elaborada ainda no auge da civilização grega, quando foram criados os modelos ainda vigentes de política e cultura. É daí que derivam os conceitos de raça, identidade nacional, Iluminismo, capital e suas oposições necessárias como terceiro mundo, quarto mundo, colônia e periferia. O livro varre a história do cinema, tendo como eixo o desenvolvimento e a construção desses discursos a partir de gêneros muito populares, como o faroeste, a ficção científica e os filmes de guerra e de aventura, e nos mostra como nesses filmes as representações de si e do outro foram longamente gestadas. Desde o início, os autores desenvolvem o conceito de “multiculturalismo policêntrico” como uma alternativa ao pluralismo liberal do termo “multiculturalista”. A vantagem da sugestão de Shohat e Stam está em valorizar cada uma das culturas ao invés da relativização de todas elas. Porque é somente a partir dessas experiências de tensão e resistência que eles acreditam ser possível postular uma alternativa viável de dissolução da hegemonia eurocêntrica de representação, tema reservado ao último capítulo, “A estética da resistência”, que traz à baila temas como a antropofagia cultural, o sincretismo como estratégia artística, as políticas de auto-representação de identidades e as tendências pós-modernas na arte contemporânea, todas elas contra-hegemônicas por natureza.


O questionamento crítico em foco, no cinema e nos livros sobre cinema em sentido amplo, que tenho tido o prazer de aproximar-me, tem-se voltado para a temática da cultura e do multiculturalismo. O que significa esses termos e em que sentido o cinema tem incursionado nesta perspectiva?
Pretendo apenas tentar assinalar alguns pontos iniciais. Os estudos de cultura e seus densificados debates nos anos 90 (cf. Jameson, Frederic) mostram que eles parecem não se identificar tanto com uma planta arquitetônica para novas disciplinas acadêmicas, estão mais relacionados às possibilidades de alianças e projetos que se constituem sem as amarras dos territórios delimitados e canonizados. (2).
Esta tendência tem provocado desconfortos e inumeráveis incômodos não apenas entre os próprios realizadores de estudos e trabalhos sobre cultura, mas também atingindo os assentados estudos historiográficos, num campo de saber tradicionalmente afeto aos historiadores. Mas o que são mesmo os Estudos Culturais e quais suas incursões no cinema?
Diz-se que cultura é uma das duas ou três palavras mais complexas da língua inglesa, considerando-se seu antônimo, a natureza. Para não complicar mais ainda o caminho, tomemos, dentre as definições clássicas de cultura, os significados apresentados por Raymond Williams, entendendo-a como um hábito mental individual, como um estado de desenvolvimento intelectual de toda a sociedade, como o conjunto de artes e como forma de vida global de um grupo de pessoas ou de um povo (3).
Os estudos de cultura parecem estar ligados a “política de identidade” dos novos movimentos sociais, onde o conceito de articulação tem enorme centralidade, referindo-se às intersecções de raça, gênero e classe. Porém, essa interpretação não hegemônica, pode ser interrogada e controversa considerando-se que mesmo os fundadores dos estudos culturais da Escola de Birmingham referem-se ao conceito de intelectual orgânico como peça chave no delineamento destes estudos (4).
Por outro lado, se tomarmos a compreensão de cultura como um conjunto de estigmas que um grupo carrega aos olhos de outro grupo, um veículo ou meio através do qual se dá o relacionamento entre os grupos, tal como expresso em Erving Goffman, as análises dos relacionamentos grupais passam pelo entendimento de formas fundamentais como a inveja, a aversão, o prestígio, entre eles. Os grupos são conflitivos, separam-se e unem-se por mecanismos de solidariedade grupal e mecanismos de isolamento e solidão. Nesta compreensão, a cultura precisa ser entendida também como forma fundamental de relacionamento onde a luta e a violência ocupa espaços. Esta dimensão da cultura precisa ser apreciada.
Os filmes que recentemente tenho assistido, principalmente os denominados de novo cinema turco-alemão, versam sobre essas questões. Não vou narrar esses filmes. Aprendi que o cinema tem uma narrativa que se expressa pela capacidade do realizador em articular os elementos lingüísticos próprios da arte do filme (cf. André Setaro). De modo que não vou narrá-los. Estão incluídos nesta temática, quase todos os últimos filmes de Fatih Akin. Entre eles, Em julho (2000) reprisado inúmeras vezes pelo Eurochannel, Contra a Parede (2004) exibido no Circuito de Arte em várias salas, Atravessando a Ponte-o Som de Istanbul (2005) e Do outro lado (2007). Todos eles versam sobre os novos trabalhadores que foram concretizar o Milagre Econômico Alemão, provenientes da Turquia, das regiões mais pobres do sul da Itália, da Espanha e de países pobres. Vieram para a Alemanha pensando em escapar da miséria, da falta de emprego, na busca de novas oportunidades de vida. Trouxeram suas famílias ou tentarão buscá-las logo que encontram meios, nas suas bagagens traços de uma cultura ancestral repleta de tradições. Um cinema direto, sem interesse pelas buscas formais ou por tudo aquilo que supunha uma complicação da narração e um distanciamento do público massivo, diz Ricardo Parodi. Um cinema que questiona a cultura hegemônica e apresenta uma diversidade de Outros.

Notas:
1.Ella Shohat e Robert Stam. Crítica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
2.Frederic Jameson. Sobre os estudos de cultura. In; Novos Estudos Cebrap, n.39, p.11-48, julho 1994.
3.Terry Eagleton. A idéia de cultura. Lisboa. Temas e Debates, 2002.
4.Frederic Jameson,cit. 1994.
5.André Setaro. Introdução ao Cinema. Artigos publicados na web e consultados em 2007 e 2008.